O Neo-Realismo já está aí há mais de 60 anos e tem o seu papel mais do que sedimentado na História do Cinema. Entretanto, como são poucos os filmes, de quaisquer lugares e épocas ao longo do último meio século, que logram alcançar o tamanho frescor, a naturalidade, a paixão forte e sincera pelas coisas as mais pequenas da vida e do mundo que movem os mestres italianos! Eles nos fazem sentir algo que transcende a experiência estética. Vemos um filme neo-realista com o mesmo gosto com que vemos a vida em si, testemunhando-a ou vivenciando-a diretamente. A impressão com que se fica ao se terminar de ver um filme italiano do pós-guerra é a impressão de um enriquecimento da nossa própria experiência de vida. Filmes assim são os mais gostosos de se ver. Gostosos como é gostoso mastigar um pedaço de bolo de chocolate.
Repito: não se trata de uma experiência estética racionalmente elaborada e racionalmente apreendida; mas de uma experiência puramente sensorial. É o viver mais essencial, o prazer e a dor mais essenciais. Tais idéias não são nenhuma descoberta, mas a gente nunca se cansa de se surpreender ao ver e rever os clássicos italianos. Seu efeito nunca se esgota. É a constante redescoberta, um (re)nascimento a todo momento para a novidade do mundo. Talvez por isso esses filmes focam tanto a figura da criança – como neste Vítimas da Tormenta (“Sciuscià”, 1946) – ou na do velho – caso de Umberto D, dos mesmos Vittorio de Sica (direção) e Cesare Zavattini (roteiro). A criança e o velho são as criaturas mais próximas das experiências fundamentais, das sensações essenciais, da vida mais pura que mais se apresenta no seu começo e no fim.
Vítimas da Tormenta é a história de dois jovens engraxates – Pasquale Maggi e Giuseppe Filippucci – que, ingenuamente, se envolvem numa trama de crime e castigo. Ambos são praticamente meninos de rua e o filme concentra a força narrativa na amizade dos dois (e nos seus trágicos conflitos). Como as melhores fitas do Neo-Realismo, esta aqui está repleta de elementos simbólicos (o cavalo que representa a união e, posteriormente, a desunião entre os dois garotos), tanto na fotografia – que é belíssima, são verdadeiras pinturas, o que é comum na Escola Italiana – quanto na montagem, onde mais se revela a discussão moral, a tese do filme (o que também é comum no cinema italiano do pós-guerra): veja-se a ligação por corte seco entre o plano que mostra o diretor do presídio juvenil onde estão presos Giuseppe e Pasquale, inspecionando a (parca e péssima) comida do refeitório, e o plano seguinte, que mostra os verdadeiros bandidos (por cujos crimes os dois rapazes estão pagando) refestelando-se numa farta cantina.
Contudo, é na fotografia que este filme parece realizar os seus maiores feitos estéticos. Os impressionantes contrastes de luz natural lembram a iluminação dos nossos sonhos ou de lembranças remotas da infância. Mas Giuseppe e Pasquale não estão sonhando, infelizmente. Estas figuras pequenas se vêem arremessadas de um lado para outro em um mundo por demais crescido, por demais adulto. Alguns planos filmados ao ar livre, na cidade real (um dos princípios neo-realistas), com os magníficos contrastes da luz e da contra-luz solar, adquirem uma forte impressão onírica, ou de fantasia. Mas o maior contraste é o de tal impressão e a realidade pesada dos fatos sofridos pelos personagens. Aqui a pureza da luz não lava o mundo de sua sujeira, de sua escuridão. Mas fica a tensão, a batalha persiste.
A arte neo-realista se faz pela realidade mais cotidiana e banal que é irremediavelmente afetada pela tragédia – elemento de ruptura que deveria ser o mais incomum, mas não é. A repetição acaba arrancando da tragédia o seu aspecto intrínseco de mais absurdo, bizarro, inaceitável. Acabamos por nos acomodar a ela. Isso se faz visível num plano exemplar de Vítimas da Tormenta, um tipo de plano comum também em outros filmes da escola, utilizando a bela profundidade de campo (o recurso mais interessante da Sétima Arte): no escritório da “FEBEM” italiana, vemos em primeiro plano o escrivão lendo em voz alta a sentença dos dois garotos (Giuseppe e Pasquale) que acabaram de chegar; estes permanecem em pé diante da mesa com rostos desconsolados. Enquanto apresenta as acusações, o escrivão não faz mais do que manter a cabeça baixa (sem olhar uma vez sequer para os meninos), fixa no papel, e coçar de leve a orelha direita, tediosamente...
A graça dos filmes neo-realistas está nesses pequenos detalhes: no contraste entre a “coçadinha” acima e a gravidade da situação em que se encontram os garotos. Contrastes simples assim têm muito significado e dão bastante matéria para reflexão. Tais sutilezas só se encontram nas melhores obras da arte cinematográfica.
Repito: não se trata de uma experiência estética racionalmente elaborada e racionalmente apreendida; mas de uma experiência puramente sensorial. É o viver mais essencial, o prazer e a dor mais essenciais. Tais idéias não são nenhuma descoberta, mas a gente nunca se cansa de se surpreender ao ver e rever os clássicos italianos. Seu efeito nunca se esgota. É a constante redescoberta, um (re)nascimento a todo momento para a novidade do mundo. Talvez por isso esses filmes focam tanto a figura da criança – como neste Vítimas da Tormenta (“Sciuscià”, 1946) – ou na do velho – caso de Umberto D, dos mesmos Vittorio de Sica (direção) e Cesare Zavattini (roteiro). A criança e o velho são as criaturas mais próximas das experiências fundamentais, das sensações essenciais, da vida mais pura que mais se apresenta no seu começo e no fim.
Vítimas da Tormenta é a história de dois jovens engraxates – Pasquale Maggi e Giuseppe Filippucci – que, ingenuamente, se envolvem numa trama de crime e castigo. Ambos são praticamente meninos de rua e o filme concentra a força narrativa na amizade dos dois (e nos seus trágicos conflitos). Como as melhores fitas do Neo-Realismo, esta aqui está repleta de elementos simbólicos (o cavalo que representa a união e, posteriormente, a desunião entre os dois garotos), tanto na fotografia – que é belíssima, são verdadeiras pinturas, o que é comum na Escola Italiana – quanto na montagem, onde mais se revela a discussão moral, a tese do filme (o que também é comum no cinema italiano do pós-guerra): veja-se a ligação por corte seco entre o plano que mostra o diretor do presídio juvenil onde estão presos Giuseppe e Pasquale, inspecionando a (parca e péssima) comida do refeitório, e o plano seguinte, que mostra os verdadeiros bandidos (por cujos crimes os dois rapazes estão pagando) refestelando-se numa farta cantina.
Contudo, é na fotografia que este filme parece realizar os seus maiores feitos estéticos. Os impressionantes contrastes de luz natural lembram a iluminação dos nossos sonhos ou de lembranças remotas da infância. Mas Giuseppe e Pasquale não estão sonhando, infelizmente. Estas figuras pequenas se vêem arremessadas de um lado para outro em um mundo por demais crescido, por demais adulto. Alguns planos filmados ao ar livre, na cidade real (um dos princípios neo-realistas), com os magníficos contrastes da luz e da contra-luz solar, adquirem uma forte impressão onírica, ou de fantasia. Mas o maior contraste é o de tal impressão e a realidade pesada dos fatos sofridos pelos personagens. Aqui a pureza da luz não lava o mundo de sua sujeira, de sua escuridão. Mas fica a tensão, a batalha persiste.
A arte neo-realista se faz pela realidade mais cotidiana e banal que é irremediavelmente afetada pela tragédia – elemento de ruptura que deveria ser o mais incomum, mas não é. A repetição acaba arrancando da tragédia o seu aspecto intrínseco de mais absurdo, bizarro, inaceitável. Acabamos por nos acomodar a ela. Isso se faz visível num plano exemplar de Vítimas da Tormenta, um tipo de plano comum também em outros filmes da escola, utilizando a bela profundidade de campo (o recurso mais interessante da Sétima Arte): no escritório da “FEBEM” italiana, vemos em primeiro plano o escrivão lendo em voz alta a sentença dos dois garotos (Giuseppe e Pasquale) que acabaram de chegar; estes permanecem em pé diante da mesa com rostos desconsolados. Enquanto apresenta as acusações, o escrivão não faz mais do que manter a cabeça baixa (sem olhar uma vez sequer para os meninos), fixa no papel, e coçar de leve a orelha direita, tediosamente...
A graça dos filmes neo-realistas está nesses pequenos detalhes: no contraste entre a “coçadinha” acima e a gravidade da situação em que se encontram os garotos. Contrastes simples assim têm muito significado e dão bastante matéria para reflexão. Tais sutilezas só se encontram nas melhores obras da arte cinematográfica.
Um comentário:
Sou apaixonado por outro movimento europeu, o expressionismo alemão, mas quanto ao neo-realismo é algo que sempre quis me aprofundar mas que no final das contas acabava não tendo contato algum. Interessante seu texto sobre o movimento.
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