sábado, fevereiro 09, 2008

Bom Dia


Bom Dia (1959), de Yasujiro Ozu, é dotado de uma graça muito semelhante àquela que sentimos nos filmes de Jacques Tati, particularmente em Meu Tio (1956). Ambas as obras são construídas com um rigor formal bastante rígido: a fotografia e a montagem são meticulosamente sóbrias e calculadas com minuciosa exatidão. Mas, para quem assiste a esses filmes, eles se mostram com uma surpreendente leveza, deliciosamente graciosa. Essa leveza vem do conteúdo apegado ao cotidiano mais banal, trabalhado com humor sutil e com sensível humanismo, expressos numa forma exata que só faz por agraciá-los e engrandecê-los sem exagerá-los. É com muito gosto que vemos películas assim, com um gosto bastante tranqüilo, com verdadeira paz de espírito. O cinema de Ozu é altamente contemplativo, de uma maneira bem “zen”, oriental, numa visão que dosa com invejável equilíbrio gravidade e bom humor.

Em Bom Dia, o rigor quase ritualístico da forma está na câmera “ajoelhada”, identificada ao olhar das crianças que são o foco deste filme; também está no uso muito consciente da profundidade de campo em 3 ou 4 planos de fundo sucessivos, cada um demarcado por batentes de portas, paredes ou outros objetos de cenário que funcionam para demarcar a perspectiva. O olhar da câmera de Ozu mantém sempre uma profundidade incrível. Na composição dos quadros, também é bem evidente o jogo de linhas retas que vão se interseccionando, formando figuras quadriláteras, um xadrez que está em tudo: na arquitetura das casas, na sua decoração interna, nas portas, janelas e cortinas, nas roupas das personagens e nas roupas de cama. E, o mais importante de todos os objetos no filme: o quadrado que forma a tela da televisão que é o mote central da intriga.

O trabalho com a cor também é muito bem cuidado: chamam a atenção os tons pastéis que predominam nos interiores das casas e no vestuário dos seus habitantes, rompidos aqui e ali por um vermelho bem vivo, vermelho este que atravessa numa listra o suéter bege dos dois meninos protagonistas, que lutarão contra seus pais para ganharem uma TV. Será este vermelho a marca da nova geração num Japão “moderno” e ocidentalizado? De qualquer modo, a grande harmonia entre todos os elementos visuais faz deste filme uma verdadeira pintura. Contudo, se juntarmos os elementos visuais estáticos (objetos de cenário, figurino, a fotografia fixa sem qualquer movimento de câmera) aos elementos visuais móveis (os atores – que são praticamente as únicas “coisas” dotadas de movimento no filme – e a montagem minimalista, apegada ao corte seco, construindo junto com a trilha sonora um tom geral muito leve para a narrativa de um cotidiano o mais banal) e aos elementos sonoros (que também são “móveis”: as falas mansas e os silêncios tensos, os ruídos baixos, a trilha sonora meio cômica – o que nos remete a Tati), então, não teremos mais uma pintura, mas uma canção.

Ozu e Tati estão longe de fazerem musicais, mas seus filmes são como canções. Eis a impressão, a sensação e a emoção maior que eles nos passam. Bom Dia é uma canção que se ouve com os olhos. As imagens valem por si só, por sua beleza humilde e por sua realidade comum. O enredo não importa, a intriga é reduzida ao mais essencial: um pedaço da vida do dia-a-dia, com as suas pequenas vontades e frustrações, enganos e desenganos, medos e esperanças. É claro que Ozu não despreza as questões psicológicas ou sociais, tudo isso está lá: um retrato das classes trabalhadoras do Japão dos anos 50, em vias de recuperação veloz sob o domínio norte-americano. A fascinação e desejo das crianças pela TV, o aposentado que tem de trabalhar como vendedor ambulante para complementar a renda da família, as fofocas e pequenas intrigas entre as vizinhas (que se resolvem de maneira tão banal e ilógica quanto surgiram), os flertes entre a jovem tia dos meninos e o professor de inglês deles.

Entretanto, para o cineasta, esses fatos todos não são elementos para a construção de uma tese, mas apenas fatos; e fatos acima de tudo humanos. Fatos que são mais interessantes de se viver ou de se testemunhar, do que de se ficar refletindo sobre eles com todo o veneno das abstrações teórico-racionalistas. E o que também é muito importante: mostrar tais fatos usando toda a arte e a poesia despretensiosa do cinema. Nestes pontos, o Neo-Realismo nipônico de Bom Dia é mais realista do que algumas obras dos italianos. O que significa o título “Bom Dia”? Ele mostra justamente a importância e o significado intrínseco das coisas cotidianas que para muitas pessoas não têm importância ou significado alguns. A linguagem que caracteriza a função fática da linguagem verbal é discutida num momento-chave da história: quando os meninos fazem greve de silêncio para se rebelarem contra ela, motivo que só será compreendido pelos adultos mais jovens – o professor e a tia dos garotos.

Mas o filme em si é uma grande defesa da poesia desta forma de linguagem, que não valerá de verdade pela sua mera definição acadêmica (de acordo com o lingüista Roman Jakobson, a função fática de expressões como “bom dia” e “como o dia está bonito hoje” serve para que se estabeleça o contato ou canal entre emissor e receptor numa situação de comunicação verbal, ou para que se mantenha vivo esse contato ou canal), mas pelo seu significado poético, ou seja, através da beleza de tais expressões em si mesmas e pela maneira como elas vão construindo a beleza das relações e das histórias humanas do dia-a-dia. O valor poético das coisas pequenas, simples e banais, em si mesmas. Valor esse que muitas vezes só é captado e compreendido pelo olhar fascinado da criança. Eis o filme de Ozu, mais do que qualquer pretensão “sociológica” que se lhe atribua. Bom dia!

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