Apesar do grande talento do diretor Paul Thomas Anderson, Sangue Negro (“There Will Be Blood”, EUA, 2007) não é o canto de ganância e loucura, de tragédia e ironia que é O Tesouro de Sierra Madre (1948, dir.: John Huston), exemplo maior do gênero. Apesar dos ricos encadeamentos e associações entre os elementos: o subjetivo e o objetivo, a natureza e o homem, os diversos valores, os dilemas, o psíquico e o social, o micro e o macro, falta-lhe a harmonia e o equilíbrio que há nas grandes obras. Em alguns aspectos, falta também o aprofundamento temático (na situação, na personagem, e em suas múltiplas relações). O protagonista, Daniel Plainview, mesmo com o talento absoluto do ator Daniel Day-Lewis, não passa de um daqueles “self-made men” excêntricos que Hollywood não se cansa de elogiar (O “American Gangster” de Ridley Scott é apenas o exemplo mais recente). O mestre-sala e porta-bandeira do sonho americano, ao mesmo tempo.
Suas idiossincrasias, suas forças e fraquezas, suas contradições são no fundo simples e esquemáticas, apesar – repito – do virtuosismo absurdo de Day-Lewis. Daniel Plainview (o sobrenome significa, ironicamente, “visão plana, achatada”) não é o herói (ou vilão, ou anti-herói) shakespeariano que se tem em, por exemplo, no Michael Corleone (Al Pacino) da série O Poderoso Chefão (“The Godfather”), de Francis Ford Coppola. É claro que isso não seria em princípio um defeito. E se o filme quisesse mostrar, de fato, um homem pequeno e ridículo que se acha por demais grande? (Aí, toda a afetação de Daniel Day-Lewis ficaria muito bem empregada). Mas, se fosse este o caso, seria mais interessante o filme adotar uma postura irônica – ou, pelo menos, suficientemente distanciada – em relação ao personagem, coisa que Paul Thomas Anderson não fez.
Contudo, por outro lado, Sangue Negro não é tão apologético assim em relação ao seu herói, e isso faz parte das qualidades do filme, que podem ser atribuídas ao seu diretor. Paul T. Anderson filma a ascensão de Daniel Plainview com um tom de estranhamento, presente principalmente na trilha sonora: graças a ela, a primeira imagem do filme é, ao mesmo tempo, de uma naturalidade tranqüila e de um estranhamento que leva quase ao pânico. Esse estranhamento – que transforma em misterioso e amedrontador algo que é, em princípio, familiar – faz parte da estética surrealista (eu já discuti o processo neste blog, na postagem referente ao Eraserhead de David Lynch). Surrealismo que está mais presente e evidente em Embriagado de Amor (“Punch-Drunk Love”, 2002) e especialmente em Magnólia (1999), ambos de Anderson, que surgiu para a fama com Boogie Nights (1997).
Dentro de um “surrealismo realista”, também são muito fortes algumas outras imagens da película: 1. a imagem do trabalho árduo de garimpagem feito por Plainview no começo do filme: é a solitária, persistente e angustiante luta do homem contra a natureza, para penetrar na mãe-terra e extrair dela algum sustento e algum sonho (pena que o resto do filme não invista muito nesta temática); não há qualquer fala nos quase 10 primeiros minutos de filme, concentrados nesta tarefa ao mesmo tempo tão cotidiana mas digna de um Prometeu (eis o bom Cinema); 2. o rosto negro de Day-Lewis, coberto de petróleo; 3. a torre de perfuração em chamas dia e noite, com o jorro incandescente do “ouro negro”; 4. os cultos protestantes para lá de “pentecostais”; 5. o rosto sempre imutável (com um leve sorriso quase irônico) do calado filho de Daniel Plainview, H. W. (aliás, esta sigla significa o quê?).
Mas há coisas que deixam a desejar. O desenlace que teve a personagem de H. W. parece muito sumário para a importância que o rapaz vinha tendo ao longo do filme. No conjunto das grandes ambições temáticas do roteiro, algo acabou ficando de lado, esquecido assim como o Sr. Plainview se esquecera do Sr. Bandy. Como eu disse no começo, é difícil juntar e trabalhar equilibradamente tantos elementos. O todo corre muito o risco de ficar desigual, assimétrico, apesar de muitos elementos e momentos serem da mais alta grandeza. O melhor da história é, com certeza, a relação entre o barão do petróleo Daniel Plainview e o jovem pregador Eli Sunday. Ambos são o mesmo tipo de homem: inteligentes, ambiciosos até as raias da obsessão, talentosos – até virtuosos – no que fazem, manipuladores das vontades alheias: são grandes vendedores, discursadores.
Entretanto, cada um representa uma força que é a mais eternamente oposta e antagonista da outra: Plainview é o mestre da matéria, enquanto Sunday é o mestre do espírito. É a velha antítese entre os planos platônicos. Não obstante, como todo bom platônico também deve saber, esses planos vão se misturar, interferindo mutuamente um no outro, dialeticamente. A linha narrativa que realmente interessa no filme, a que tem maior força e significado, é a que se desenvolve entre o relacionamento Plainview / Sunday: no seu começo, desenrolar e conclusão. Temos aqui um verdadeiro tour de force, que só pode dar certo quando se dispõe de atores capazes para tanto: assim sendo, palmas para Daniel Day-Lewis e para Paul Dano. Boa parte das mais de duas horas e meia da projeção poderiam ser reduzidas e condensadas em torno das cenas que envolvem esses dois personagens, seja cada um em si mesmo, seja na relação entre eles. Mas é pelos passos desequilibrados deste Sangue Negro que eu acabo ficando com Onde Os Fracos Não Têm Vez na disputa do Oscar de melhor filme, neste domingo.
Suas idiossincrasias, suas forças e fraquezas, suas contradições são no fundo simples e esquemáticas, apesar – repito – do virtuosismo absurdo de Day-Lewis. Daniel Plainview (o sobrenome significa, ironicamente, “visão plana, achatada”) não é o herói (ou vilão, ou anti-herói) shakespeariano que se tem em, por exemplo, no Michael Corleone (Al Pacino) da série O Poderoso Chefão (“The Godfather”), de Francis Ford Coppola. É claro que isso não seria em princípio um defeito. E se o filme quisesse mostrar, de fato, um homem pequeno e ridículo que se acha por demais grande? (Aí, toda a afetação de Daniel Day-Lewis ficaria muito bem empregada). Mas, se fosse este o caso, seria mais interessante o filme adotar uma postura irônica – ou, pelo menos, suficientemente distanciada – em relação ao personagem, coisa que Paul Thomas Anderson não fez.
Contudo, por outro lado, Sangue Negro não é tão apologético assim em relação ao seu herói, e isso faz parte das qualidades do filme, que podem ser atribuídas ao seu diretor. Paul T. Anderson filma a ascensão de Daniel Plainview com um tom de estranhamento, presente principalmente na trilha sonora: graças a ela, a primeira imagem do filme é, ao mesmo tempo, de uma naturalidade tranqüila e de um estranhamento que leva quase ao pânico. Esse estranhamento – que transforma em misterioso e amedrontador algo que é, em princípio, familiar – faz parte da estética surrealista (eu já discuti o processo neste blog, na postagem referente ao Eraserhead de David Lynch). Surrealismo que está mais presente e evidente em Embriagado de Amor (“Punch-Drunk Love”, 2002) e especialmente em Magnólia (1999), ambos de Anderson, que surgiu para a fama com Boogie Nights (1997).
Dentro de um “surrealismo realista”, também são muito fortes algumas outras imagens da película: 1. a imagem do trabalho árduo de garimpagem feito por Plainview no começo do filme: é a solitária, persistente e angustiante luta do homem contra a natureza, para penetrar na mãe-terra e extrair dela algum sustento e algum sonho (pena que o resto do filme não invista muito nesta temática); não há qualquer fala nos quase 10 primeiros minutos de filme, concentrados nesta tarefa ao mesmo tempo tão cotidiana mas digna de um Prometeu (eis o bom Cinema); 2. o rosto negro de Day-Lewis, coberto de petróleo; 3. a torre de perfuração em chamas dia e noite, com o jorro incandescente do “ouro negro”; 4. os cultos protestantes para lá de “pentecostais”; 5. o rosto sempre imutável (com um leve sorriso quase irônico) do calado filho de Daniel Plainview, H. W. (aliás, esta sigla significa o quê?).
Mas há coisas que deixam a desejar. O desenlace que teve a personagem de H. W. parece muito sumário para a importância que o rapaz vinha tendo ao longo do filme. No conjunto das grandes ambições temáticas do roteiro, algo acabou ficando de lado, esquecido assim como o Sr. Plainview se esquecera do Sr. Bandy. Como eu disse no começo, é difícil juntar e trabalhar equilibradamente tantos elementos. O todo corre muito o risco de ficar desigual, assimétrico, apesar de muitos elementos e momentos serem da mais alta grandeza. O melhor da história é, com certeza, a relação entre o barão do petróleo Daniel Plainview e o jovem pregador Eli Sunday. Ambos são o mesmo tipo de homem: inteligentes, ambiciosos até as raias da obsessão, talentosos – até virtuosos – no que fazem, manipuladores das vontades alheias: são grandes vendedores, discursadores.
Entretanto, cada um representa uma força que é a mais eternamente oposta e antagonista da outra: Plainview é o mestre da matéria, enquanto Sunday é o mestre do espírito. É a velha antítese entre os planos platônicos. Não obstante, como todo bom platônico também deve saber, esses planos vão se misturar, interferindo mutuamente um no outro, dialeticamente. A linha narrativa que realmente interessa no filme, a que tem maior força e significado, é a que se desenvolve entre o relacionamento Plainview / Sunday: no seu começo, desenrolar e conclusão. Temos aqui um verdadeiro tour de force, que só pode dar certo quando se dispõe de atores capazes para tanto: assim sendo, palmas para Daniel Day-Lewis e para Paul Dano. Boa parte das mais de duas horas e meia da projeção poderiam ser reduzidas e condensadas em torno das cenas que envolvem esses dois personagens, seja cada um em si mesmo, seja na relação entre eles. Mas é pelos passos desequilibrados deste Sangue Negro que eu acabo ficando com Onde Os Fracos Não Têm Vez na disputa do Oscar de melhor filme, neste domingo.
4 comentários:
Nossa, eu to revoltado com os cinemas daqui que não colocaram o filme em cartaz. Indignado seria a palavra mais sensata. Ótima crítica.
Ciao!
Não sei, pode até não ser o filme perfeito, mas eu já considero uma obra-prima (como comentei lá no blog). De qualquer forma concordo com vários pontos do seu texto, mas sem dúvida minha maior torcida no Oscar vai mesmo para "Sangue Negro".
eu amei o filme e não tenho nenhuma ressalva. beijos, pedrita
Wally: o circuito de cinema no Brasil é uma desgraça mesmo! Cansei de ver muitas cidades (pequenas, médias ou até grandes) que possuem várias academias de musculação, shopping centers, etc; mas, quando se trata de cultura, com cinemas, livrarias e outras coisas, é um deserto só...
Valeu pelas opiniões relativas a "Sangue Negro", pessoal. Como, pelo que eu vi, sou quase o único a fazer ressalvas a ele, confesso que fiquei com medo de como eu poderia ser interpretado... Mas o que vale mesmo é o debate e a troca de opiniões e argumentos diversificados! Essa é a graça e o tesão de se discutir filmes coletivamente, em blogs, na internet como um todo, etc.
Esses dias, li que Paul Thomas Anderson disse em entrevistas que um filme de cabeceira que ele sempre via enquanto estava rodando "Sangue Negro" era "O Tesouro de Sierra Madre"... Esse filme é justamente o que mais e primeiro me vinha na cabeça quando estava vendo "Sangue Negro".
Gostei muito de "Sangue Negro", mas acho que a obra-prima de verdade mesmo é "O Tesouro...". PT Anderson tentou, tirou ótima nota, valeu o esforço, mas não chegou exatamente lá... Esta é a única ressalva que eu faço, no fundo, ao filme.
Abraços a todos!
Postar um comentário