Perguntas perigosas: Como reinventar um gênero – ainda mais um gênero já antigo e bastante trabalhado – mantendo-o vivo e respirando por seus próprios pulmões o tanto quanto for possível? Caso não se consiga realizar essa (eterna) reinvenção, a dúvida assombrosa ficará sendo: Em que ponto um determinado gênero poderá ser considerado esgotado? Quando e como perceberemos que não dá mais para criar coisas novas, nem para repetir o que já foi criado? Mas estas são perguntas intransigentes, e a verdadeira sabedoria nunca está nos extremos. Portanto, talvez o que se deva questionar é: Em que medida a originalidade é necessária? Será que ela é necessária, em primeiro lugar? Não confundir originalidade com criatividade. Toda obra precisa ser criativa, mas quase toda criatividade sempre trabalha com parâmetros já determinados, trabalhando-os, transformando-os e expressando-os à sua própria maneira, sem necessariamente reformulá-los em seu “DNA”, o que daria origem a novos parâmetros – isso é muito raro em Arte e geralmente é uma tarefa reservada aos grandes gênios inventores.
De qualquer modo, segundo as respostas que se derem às perguntas propostas, poder-se-á gostar mais ou gostar menos de Os Indomáveis (“03:10 to Yuma”, EUA, 2007, dir.: James Mangold). Pode-se não gostar tanto dele, mas dificilmente será um filme desgostável; pois, na pior das hipóteses, a mais nova produção do diretor de Johnny e June (2005), Garota, Interrompida (1999) e Cop Land (1997) tem tudo o que as maiores realizações do gênero possuem de melhor e de mais estimulante. Para quem gosta de filmes de “bangue-bangue” (mas não só), é um prato cheio. Estão ali todos os motivos temáticos e visuais que fazem a “cara” dos faroestes: a disputa mais ou menos legal por terras e território; o dilema de um homem dilacerado pelos diversos deveres: o dever moral para com a família, o dever moral para consigo mesmo, o dever cívico, o dever financeiro-profissional; a questão dos índios; a questão do progresso civilizador (representado mais uma vez pela chegada da linha férrea), em conflito com a ocupação dos pioneiros; o “oeste selvagem”: as gangues de bandoleiros impiedosos; o ataque às diligências;
os saloons e quartos de hotel; as prostitutas; os jogos de cartas (geralmente trapaceados); a guerra civil americana; as cidadezinhas sitiadas por tiroteios e aterrorizadas por bandidos bagunceiros; os pistoleiros rápidos no gatilho; as sublimes paisagens naturais (o sertão oceânico onde se passam esses épicos); os meninos corajosos que querem ser homens a todo custo (naquele contexto, eles precisam mesmo ser); está tudo lá. Só não há nenhum duelo homem a homem... Quanto ao cinematógrafo, estão lá tanto o rigor formal e o olhar paisagístico de John Ford e Anthony Mann, quanto o prazer de filmar e os olhares de Sérgio Leone e de Samuel Fuller, focados nos rostos em primeiro plano. Todos esses motivos típicos – e outros – estão intimamente inter-relacionados, e podem ser resumidos na santíssima trindade dos valores do Romantismo do século XIX: honra – amor – lealdade. A história de Os Indomáveis parece uma mistura de Matar ou Morrer (“High Noon”, 1952, dir.: Fred Zinnemann) com O Preço de um Homem (“The Naked Spur”, 1953, dir.: Anthony Mann), com uns toques de Era Uma Vez no Oeste (“Once Upon a Time in the West”, 1968, dir.: Sérgio Leone).
Apesar das aparentes referências, não se pode dizer exatamente que o filme seja uma “homenagem” aos clássicos, pois, em princípio, trata-se da refilmagem de uma fita (“03:10 to Yuma”, que recebeu no Brasil o título de O Galante e o Sanguinário, de 1957, dirigida por Delmer Daves) que pertence a uma época em que John Ford ainda não tinha feito O Homem Que Matou o Fascínora (“The Man Who Shot Liberty Valence”, 1962). Ou seja, um tempo em que a mitologia e os valores do velho oeste ainda estavam bem vivos e reinantes. Assim, as identificações entre Os Indomáveis e o western clássico talvez estejam mais para uma questão de irmandade genética do que para uma herança espiritual. Mas, de qualquer modo, não vi o filme original e não posso dizer mais nada. Os Indomáveis pode não ser tão filosófico, até transcendente, quanto as melhores obras de John Ford, mas é tão competente, digno e valoroso quanto os faroestes de Anthony Mann. Algum espírito mais malicioso talvez diga que este filme é apenas tão interessante quanto um espetáculo do “Beto Carrero World”. Mas o que é o gênero e o que é o espetáculo, afinal de contas, senão isso mesmo?
Às vezes, e em alguns círculos, se fala em “filme de gênero” como se fosse uma coisa menor; mas deve-se pensar e analisar com muito cuidado. Os Indomáveis não precisa ser melhor do que um western típico, mas também não pode – e não é – pior. Faz muito jus à tradição, sem acrescentar nada a ela, mas sem lhe ser subserviente. O filme não exala aquele “oba-oba” idiota das “homenagens” feitas por um diretor-fã (coisa de Tarantinos da vida). Este filme não quer se mostrar, apenas mostrar. É uma obra de concepção e realização aplicadas, feita por gente que estuda o gênero do faroeste e procura reproduzi-lo como se estivéssemos na época áurea desse tipo de filme. No roteiro, temos o rancheiro Dan Evans (Christian Bale), que está sendo pressionado a abandonar suas terras em função da construção de uma linha férrea. Desprovido de recursos financeiros por causa da temporada de estio, ele acaba aceitando o “trampo” de ajudar a conduzir sob mira de revólver o perigosíssimo líder da gangue de assaltantes mais temida de toda a região, Ben Wade (Russell Crowe), até a estação de Contentown, onde o bandido deverá ser colocado no trem das 03:10 da tarde que o levará para a prisão de Yuma.
Logicamente, o bando de Wade, que continua à solta, fará de tudo para resgatá-lo. Até onde a compensação financeira deste trabalho valerá os riscos para Evans? E quanto ao valor moral e cívico da missão? Ben Wade é capaz de escapar por conta própria a qualquer momento da jornada, mas a simpatia que sente por Evans faz com que o criminoso aceite e jogue o jogo de prisioneiro-e-captor, curioso de descobrir até onde Evans é capaz de jogá-lo. Até onde vai a vontade, a persistência e a integridade do pobre rancheiro? Qual é sua real motivação? Wade vislumbra no interior de Evans um homem forte, um homem de valor, mas cuja força e valor ainda precisam vir mais à tona, serem dilapidados e canalizados. A afeição que o bandido sente pelo rancheiro não se deve a qualquer valor “cristão” (apesar de Wade gostar de recitar de cor versículos da Bíblia e de gabar-se de tê-la lido inteira), mas ao fato de Ben reconhecer em Evans uma vontade individual como a sua, impetuosa e íntegra (qualquer que seja essa vontade, não importa se “boa” ou “má”).
Eis o único valor que interessa de fato no Velho Oeste. Esse valor iguala num plano superior mocinho e bandido, esse valor é o que está por detrás dos indivíduos-lenda do velho oeste, estejam eles dentro ou fora da lei. Dan Evans diz ao próprio filho que quer ser o homem que levou (ou tentou levar) Ben Wade até o trem de Yuma quando “nobody else would” (“ninguém mais o faria – o queria fazer). O interessante é que ele diz “would”, e não “could” (o que equivaleria a “quando ninguém mais o poderia fazer”). Vê-se então que o único valor, a única competência, a única atribuição que importa é a da vontade, a do querer. Nem que seja a vontade de um único homem contra as vontades unidas de todos os outros (inclusive daqueles que deveriam ser seus aliados). Já viu esse filme?...
De qualquer modo, segundo as respostas que se derem às perguntas propostas, poder-se-á gostar mais ou gostar menos de Os Indomáveis (“03:10 to Yuma”, EUA, 2007, dir.: James Mangold). Pode-se não gostar tanto dele, mas dificilmente será um filme desgostável; pois, na pior das hipóteses, a mais nova produção do diretor de Johnny e June (2005), Garota, Interrompida (1999) e Cop Land (1997) tem tudo o que as maiores realizações do gênero possuem de melhor e de mais estimulante. Para quem gosta de filmes de “bangue-bangue” (mas não só), é um prato cheio. Estão ali todos os motivos temáticos e visuais que fazem a “cara” dos faroestes: a disputa mais ou menos legal por terras e território; o dilema de um homem dilacerado pelos diversos deveres: o dever moral para com a família, o dever moral para consigo mesmo, o dever cívico, o dever financeiro-profissional; a questão dos índios; a questão do progresso civilizador (representado mais uma vez pela chegada da linha férrea), em conflito com a ocupação dos pioneiros; o “oeste selvagem”: as gangues de bandoleiros impiedosos; o ataque às diligências;
os saloons e quartos de hotel; as prostitutas; os jogos de cartas (geralmente trapaceados); a guerra civil americana; as cidadezinhas sitiadas por tiroteios e aterrorizadas por bandidos bagunceiros; os pistoleiros rápidos no gatilho; as sublimes paisagens naturais (o sertão oceânico onde se passam esses épicos); os meninos corajosos que querem ser homens a todo custo (naquele contexto, eles precisam mesmo ser); está tudo lá. Só não há nenhum duelo homem a homem... Quanto ao cinematógrafo, estão lá tanto o rigor formal e o olhar paisagístico de John Ford e Anthony Mann, quanto o prazer de filmar e os olhares de Sérgio Leone e de Samuel Fuller, focados nos rostos em primeiro plano. Todos esses motivos típicos – e outros – estão intimamente inter-relacionados, e podem ser resumidos na santíssima trindade dos valores do Romantismo do século XIX: honra – amor – lealdade. A história de Os Indomáveis parece uma mistura de Matar ou Morrer (“High Noon”, 1952, dir.: Fred Zinnemann) com O Preço de um Homem (“The Naked Spur”, 1953, dir.: Anthony Mann), com uns toques de Era Uma Vez no Oeste (“Once Upon a Time in the West”, 1968, dir.: Sérgio Leone).
Apesar das aparentes referências, não se pode dizer exatamente que o filme seja uma “homenagem” aos clássicos, pois, em princípio, trata-se da refilmagem de uma fita (“03:10 to Yuma”, que recebeu no Brasil o título de O Galante e o Sanguinário, de 1957, dirigida por Delmer Daves) que pertence a uma época em que John Ford ainda não tinha feito O Homem Que Matou o Fascínora (“The Man Who Shot Liberty Valence”, 1962). Ou seja, um tempo em que a mitologia e os valores do velho oeste ainda estavam bem vivos e reinantes. Assim, as identificações entre Os Indomáveis e o western clássico talvez estejam mais para uma questão de irmandade genética do que para uma herança espiritual. Mas, de qualquer modo, não vi o filme original e não posso dizer mais nada. Os Indomáveis pode não ser tão filosófico, até transcendente, quanto as melhores obras de John Ford, mas é tão competente, digno e valoroso quanto os faroestes de Anthony Mann. Algum espírito mais malicioso talvez diga que este filme é apenas tão interessante quanto um espetáculo do “Beto Carrero World”. Mas o que é o gênero e o que é o espetáculo, afinal de contas, senão isso mesmo?
Às vezes, e em alguns círculos, se fala em “filme de gênero” como se fosse uma coisa menor; mas deve-se pensar e analisar com muito cuidado. Os Indomáveis não precisa ser melhor do que um western típico, mas também não pode – e não é – pior. Faz muito jus à tradição, sem acrescentar nada a ela, mas sem lhe ser subserviente. O filme não exala aquele “oba-oba” idiota das “homenagens” feitas por um diretor-fã (coisa de Tarantinos da vida). Este filme não quer se mostrar, apenas mostrar. É uma obra de concepção e realização aplicadas, feita por gente que estuda o gênero do faroeste e procura reproduzi-lo como se estivéssemos na época áurea desse tipo de filme. No roteiro, temos o rancheiro Dan Evans (Christian Bale), que está sendo pressionado a abandonar suas terras em função da construção de uma linha férrea. Desprovido de recursos financeiros por causa da temporada de estio, ele acaba aceitando o “trampo” de ajudar a conduzir sob mira de revólver o perigosíssimo líder da gangue de assaltantes mais temida de toda a região, Ben Wade (Russell Crowe), até a estação de Contentown, onde o bandido deverá ser colocado no trem das 03:10 da tarde que o levará para a prisão de Yuma.
Logicamente, o bando de Wade, que continua à solta, fará de tudo para resgatá-lo. Até onde a compensação financeira deste trabalho valerá os riscos para Evans? E quanto ao valor moral e cívico da missão? Ben Wade é capaz de escapar por conta própria a qualquer momento da jornada, mas a simpatia que sente por Evans faz com que o criminoso aceite e jogue o jogo de prisioneiro-e-captor, curioso de descobrir até onde Evans é capaz de jogá-lo. Até onde vai a vontade, a persistência e a integridade do pobre rancheiro? Qual é sua real motivação? Wade vislumbra no interior de Evans um homem forte, um homem de valor, mas cuja força e valor ainda precisam vir mais à tona, serem dilapidados e canalizados. A afeição que o bandido sente pelo rancheiro não se deve a qualquer valor “cristão” (apesar de Wade gostar de recitar de cor versículos da Bíblia e de gabar-se de tê-la lido inteira), mas ao fato de Ben reconhecer em Evans uma vontade individual como a sua, impetuosa e íntegra (qualquer que seja essa vontade, não importa se “boa” ou “má”).
Eis o único valor que interessa de fato no Velho Oeste. Esse valor iguala num plano superior mocinho e bandido, esse valor é o que está por detrás dos indivíduos-lenda do velho oeste, estejam eles dentro ou fora da lei. Dan Evans diz ao próprio filho que quer ser o homem que levou (ou tentou levar) Ben Wade até o trem de Yuma quando “nobody else would” (“ninguém mais o faria – o queria fazer). O interessante é que ele diz “would”, e não “could” (o que equivaleria a “quando ninguém mais o poderia fazer”). Vê-se então que o único valor, a única competência, a única atribuição que importa é a da vontade, a do querer. Nem que seja a vontade de um único homem contra as vontades unidas de todos os outros (inclusive daqueles que deveriam ser seus aliados). Já viu esse filme?...
5 comentários:
Para responder a pergunta que está no final do seu texto: ainda não assisti "Os Indomáveis".
O James Mangold é um daqueles diretores que consegue transitar bem por todos os estilos.
E os comentários que tenho lido a respeito de "Os Indomáveis" são ótimos.
Estou só esperando a estréia do filme nos cinemas de minha cidade para poder assistí-lo.
Gostei muito de Os Indomáveis. Até baixei para revê-lo logo, logo. Em alguns momentos ele é até superior ao original de Delmer Daves, que por si só, é um filme magnífico. Um abraço.
Kamila: Os Indomáveis é um ótimo filme que vale muito a pena assistir. Mas quando já se viu certos filmes antigos de faroeste, fica-se com uma certa sensação de déjà vu... (e não falo nem do original deste remake). Confesso que do Mangold só vi Cop Land, que achei bem legal.
David: fiquei bem curioso pra ver o original (Galante e Sanguinário, né?). Será que tem em DVD? Será que passa no TCM?
Sim, tem em DVD brasileiro da Columbia/Sony, com imagem restaurada em magnífico preto e branco. E gostei da sensação de déjà vu que o filme de Mangold proporciona. Foi para mim algo bem nostálgico. Acho que essa era mesmo a intenção de seu realizador. Um abraço.
Concordo com você, David! Quem dera fizessem mais filmes nostálgicos assim... Valeu pela informação! Vou atrás desse DVD! Abraços!
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