sábado, fevereiro 16, 2008

Os Indomáveis


Perguntas perigosas: Como reinventar um gênero – ainda mais um gênero já antigo e bastante trabalhado – mantendo-o vivo e respirando por seus próprios pulmões o tanto quanto for possível? Caso não se consiga realizar essa (eterna) reinvenção, a dúvida assombrosa ficará sendo: Em que ponto um determinado gênero poderá ser considerado esgotado? Quando e como perceberemos que não dá mais para criar coisas novas, nem para repetir o que já foi criado? Mas estas são perguntas intransigentes, e a verdadeira sabedoria nunca está nos extremos. Portanto, talvez o que se deva questionar é: Em que medida a originalidade é necessária? Será que ela é necessária, em primeiro lugar? Não confundir originalidade com criatividade. Toda obra precisa ser criativa, mas quase toda criatividade sempre trabalha com parâmetros já determinados, trabalhando-os, transformando-os e expressando-os à sua própria maneira, sem necessariamente reformulá-los em seu “DNA”, o que daria origem a novos parâmetros – isso é muito raro em Arte e geralmente é uma tarefa reservada aos grandes gênios inventores.

De qualquer modo, segundo as respostas que se derem às perguntas propostas, poder-se-á gostar mais ou gostar menos de Os Indomáveis (“03:10 to Yuma”, EUA, 2007, dir.: James Mangold). Pode-se não gostar tanto dele, mas dificilmente será um filme desgostável; pois, na pior das hipóteses, a mais nova produção do diretor de Johnny e June (2005), Garota, Interrompida (1999) e Cop Land (1997) tem tudo o que as maiores realizações do gênero possuem de melhor e de mais estimulante. Para quem gosta de filmes de “bangue-bangue” (mas não só), é um prato cheio. Estão ali todos os motivos temáticos e visuais que fazem a “cara” dos faroestes: a disputa mais ou menos legal por terras e território; o dilema de um homem dilacerado pelos diversos deveres: o dever moral para com a família, o dever moral para consigo mesmo, o dever cívico, o dever financeiro-profissional; a questão dos índios; a questão do progresso civilizador (representado mais uma vez pela chegada da linha férrea), em conflito com a ocupação dos pioneiros; o “oeste selvagem”: as gangues de bandoleiros impiedosos; o ataque às diligências;

os saloons e quartos de hotel; as prostitutas; os jogos de cartas (geralmente trapaceados); a guerra civil americana; as cidadezinhas sitiadas por tiroteios e aterrorizadas por bandidos bagunceiros; os pistoleiros rápidos no gatilho; as sublimes paisagens naturais (o sertão oceânico onde se passam esses épicos); os meninos corajosos que querem ser homens a todo custo (naquele contexto, eles precisam mesmo ser); está tudo lá. Só não há nenhum duelo homem a homem... Quanto ao cinematógrafo, estão lá tanto o rigor formal e o olhar paisagístico de John Ford e Anthony Mann, quanto o prazer de filmar e os olhares de Sérgio Leone e de Samuel Fuller, focados nos rostos em primeiro plano. Todos esses motivos típicos – e outros – estão intimamente inter-relacionados, e podem ser resumidos na santíssima trindade dos valores do Romantismo do século XIX: honra – amor – lealdade. A história de Os Indomáveis parece uma mistura de Matar ou Morrer (“High Noon”, 1952, dir.: Fred Zinnemann) com O Preço de um Homem (“The Naked Spur”, 1953, dir.: Anthony Mann), com uns toques de Era Uma Vez no Oeste (“Once Upon a Time in the West”, 1968, dir.: Sérgio Leone).

Apesar das aparentes referências, não se pode dizer exatamente que o filme seja uma “homenagem” aos clássicos, pois, em princípio, trata-se da refilmagem de uma fita (“03:10 to Yuma”, que recebeu no Brasil o título de O Galante e o Sanguinário, de 1957, dirigida por Delmer Daves) que pertence a uma época em que John Ford ainda não tinha feito O Homem Que Matou o Fascínora (“The Man Who Shot Liberty Valence”, 1962). Ou seja, um tempo em que a mitologia e os valores do velho oeste ainda estavam bem vivos e reinantes. Assim, as identificações entre Os Indomáveis e o western clássico talvez estejam mais para uma questão de irmandade genética do que para uma herança espiritual. Mas, de qualquer modo, não vi o filme original e não posso dizer mais nada. Os Indomáveis pode não ser tão filosófico, até transcendente, quanto as melhores obras de John Ford, mas é tão competente, digno e valoroso quanto os faroestes de Anthony Mann. Algum espírito mais malicioso talvez diga que este filme é apenas tão interessante quanto um espetáculo do “Beto Carrero World”. Mas o que é o gênero e o que é o espetáculo, afinal de contas, senão isso mesmo?

Às vezes, e em alguns círculos, se fala em “filme de gênero” como se fosse uma coisa menor; mas deve-se pensar e analisar com muito cuidado. Os Indomáveis não precisa ser melhor do que um western típico, mas também não pode – e não é – pior. Faz muito jus à tradição, sem acrescentar nada a ela, mas sem lhe ser subserviente. O filme não exala aquele “oba-oba” idiota das “homenagens” feitas por um diretor-fã (coisa de Tarantinos da vida). Este filme não quer se mostrar, apenas mostrar. É uma obra de concepção e realização aplicadas, feita por gente que estuda o gênero do faroeste e procura reproduzi-lo como se estivéssemos na época áurea desse tipo de filme. No roteiro, temos o rancheiro Dan Evans (Christian Bale), que está sendo pressionado a abandonar suas terras em função da construção de uma linha férrea. Desprovido de recursos financeiros por causa da temporada de estio, ele acaba aceitando o “trampo” de ajudar a conduzir sob mira de revólver o perigosíssimo líder da gangue de assaltantes mais temida de toda a região, Ben Wade (Russell Crowe), até a estação de Contentown, onde o bandido deverá ser colocado no trem das 03:10 da tarde que o levará para a prisão de Yuma.

Logicamente, o bando de Wade, que continua à solta, fará de tudo para resgatá-lo. Até onde a compensação financeira deste trabalho valerá os riscos para Evans? E quanto ao valor moral e cívico da missão? Ben Wade é capaz de escapar por conta própria a qualquer momento da jornada, mas a simpatia que sente por Evans faz com que o criminoso aceite e jogue o jogo de prisioneiro-e-captor, curioso de descobrir até onde Evans é capaz de jogá-lo. Até onde vai a vontade, a persistência e a integridade do pobre rancheiro? Qual é sua real motivação? Wade vislumbra no interior de Evans um homem forte, um homem de valor, mas cuja força e valor ainda precisam vir mais à tona, serem dilapidados e canalizados. A afeição que o bandido sente pelo rancheiro não se deve a qualquer valor “cristão” (apesar de Wade gostar de recitar de cor versículos da Bíblia e de gabar-se de tê-la lido inteira), mas ao fato de Ben reconhecer em Evans uma vontade individual como a sua, impetuosa e íntegra (qualquer que seja essa vontade, não importa se “boa” ou “má”).

Eis o único valor que interessa de fato no Velho Oeste. Esse valor iguala num plano superior mocinho e bandido, esse valor é o que está por detrás dos indivíduos-lenda do velho oeste, estejam eles dentro ou fora da lei. Dan Evans diz ao próprio filho que quer ser o homem que levou (ou tentou levar) Ben Wade até o trem de Yuma quando “nobody else would” (“ninguém mais o faria – o queria fazer). O interessante é que ele diz “would”, e não “could” (o que equivaleria a “quando ninguém mais o poderia fazer”). Vê-se então que o único valor, a única competência, a única atribuição que importa é a da vontade, a do querer. Nem que seja a vontade de um único homem contra as vontades unidas de todos os outros (inclusive daqueles que deveriam ser seus aliados). Já viu esse filme?...

5 comentários:

Kamila disse...

Para responder a pergunta que está no final do seu texto: ainda não assisti "Os Indomáveis".

O James Mangold é um daqueles diretores que consegue transitar bem por todos os estilos.

E os comentários que tenho lido a respeito de "Os Indomáveis" são ótimos.

Estou só esperando a estréia do filme nos cinemas de minha cidade para poder assistí-lo.

Lorde David disse...

Gostei muito de Os Indomáveis. Até baixei para revê-lo logo, logo. Em alguns momentos ele é até superior ao original de Delmer Daves, que por si só, é um filme magnífico. Um abraço.

André Renato disse...

Kamila: Os Indomáveis é um ótimo filme que vale muito a pena assistir. Mas quando já se viu certos filmes antigos de faroeste, fica-se com uma certa sensação de déjà vu... (e não falo nem do original deste remake). Confesso que do Mangold só vi Cop Land, que achei bem legal.

David: fiquei bem curioso pra ver o original (Galante e Sanguinário, né?). Será que tem em DVD? Será que passa no TCM?

Lorde David disse...

Sim, tem em DVD brasileiro da Columbia/Sony, com imagem restaurada em magnífico preto e branco. E gostei da sensação de déjà vu que o filme de Mangold proporciona. Foi para mim algo bem nostálgico. Acho que essa era mesmo a intenção de seu realizador. Um abraço.

André Renato disse...

Concordo com você, David! Quem dera fizessem mais filmes nostálgicos assim... Valeu pela informação! Vou atrás desse DVD! Abraços!