Há filmes que dão uma verdadeira aula de cinema. Filmes professores. Filmes mestres. Filmes que não só fazem muito bem o que eles se propõem a fazer, como também ensinam outros a fazê-lo. Filmes assim viram modelos, exemplos a serem admirados e seguidos, dão início a novas tradições ou mantêm vivas as velhas escolas. Nesta dança entre o velho e o novo, entre o modelo e o original, vez ou outra pipocam películas que fazem de tudo, mas de tudo mesmo para serem, ou pelo menos parecerem, cool. Outras fitas simplesmente são cool. Sem qualquer esforço visível, sem ficarem “se mostrando” o tempo todo, jogando purpurina nos olhos do espectador. São filmes simplesmente muito legais, de um jeito muito natural e próprio – é claro que, no processo para se atingir o “próprio”, tais filmes lograram assimilar muito sábia e equilibradamente suas influências, fontes, modelos, padrões, etc.
Esse equilíbrio entre a visão digamos pessoal do filme e as visões com que ele dialoga, assimilando-as ou renegando-as, é a coisa mais difícil de se atingir em qualquer forma de arte. Só os grandes mestres conseguem (e alguns jovens talentos muito raros). De imediato, vêm-me à mente dois exemplos óbvios: João Guimarães Rosa – na Literatura; Alfred Hitchcock – no Cinema. Ambos utilizam-se de uma ou de várias tradições a seu próprio proveito. Proveito o qual, dialeticamente, também o será da própria tradição. Numa relação de simbiose que sustenta as melhores obras artísticas, tanto a tradição quanto a obra particular saem enriquecidas de alguma maneira uma em função da outra. Ainda que de maneiras diferentes, pois os grandes artistas mestres e inventores inventam a sua obra reinventando a tradição.
Refiro-me à tradição tanto em sua forma quanto em seu conteúdo, pois qualquer estudante honesto sabe que a Estética só se constrói através de um entrelaçamento muito bom entre essas duas instâncias. Aqueles filmes que desejam tanto serem “cool” não possuem, infelizmente, tal noção (assim como muitos dos seus admiradores e defensores, para fazer aqui uma provocação). Aqueles filmes só enxergam e trabalham a técnica, em sua miopia descabidamente redutora. E muitas vezes também possuem uma visão ridiculamente pequena e fechada da própria técnica. Mas a verdade é que a técnica é algo muito mais rico, complexo, aberto e abrangente do que a preguiça dessas pessoas permite perceber. E a técnica – a forma, ainda por cima e principalmente, deve procurar se unir de uma maneira também muito rica, complexa, aberta e abrangente ao conteúdo da obra.
E o conteúdo, por sua vez e por fim, precisa ser e ser trabalhado de um modo também o mais rico, complexo, aberto e abrangente possível, respondendo sempre à forma, que o carrega e expressa. Somente assim nascerá a Estética (com E maiúsculo), e uma grande Estética. Pena que muitos filmes não se enquadram numa dimensão verdadeiramente Estética, não transcendem até ela. Mas de vez em (quando?) aparecem alguns que nos surpreendem e renovam as nossas crenças na arte e na humanidade. Eis o caso de Onde Os Fracos Não Têm Vez (“No Country For Old Man”, EUA, 2007). Para quem ainda não se deu conta, venho falado deste filme desde a primeira linha. É antológico. Pode ser já o melhor filme a ser exibido nas salas brasileiras em 2008. Com potencial para mais.
Há filmes que parecem já nascer com vocação para clássicos – é claro que estou exagerando: não dá para se saber exata e imediatamente se uma produção vai entrar para a história ou não (e o quanto, e o quando isso ocorrerá). Mas, analisando as características internas do próprio filme, já sentimos ele se aproximar do selo clássico. Que características? Muitas das quais eu já venho falando ao longo destas linhas: o equilíbrio incrível atingido entre o original e o tradicional, entre o individual e o coletivo, entre a forma e o conteúdo, entre o belo e o feio, entre o particular e o universal (principalmente). Os irmãos Joel e Ethan Coen trabalham todas essas coisas de uma maneira tão rica e tão profunda que a obra chega a uma verdadeira transcendência. O filme engloba tudo ao mesmo tempo em que transcende tudo. Segundo Aristóteles, o Belo é atingido no momento em que o receptor (espectador, leitor, ouvinte, etc) percebe que a obra transcende a si mesma.
Este é o momento de uma revelação, uma iluminação pela qual a obra de arte faz o seu apreciador passar. É o momento da Epifania. Alguns filmes incríveis apresentam sua epifania em algum momento bem específico e fugaz, perdido no meio da narrativa, ou no final. Outros, apresentam-na logo no começo (já ouvi dizer que um grande filme se reconhece logo nos 10 primeiros minutos de exibição). Outros, ainda, mais raros, mostram sua alma em diversos momentos, do começo até o final. Eis o caso de Onde Os Fracos Não Têm Vez. E esta película faz isso como só os grandes poemas fazem: com uma naturalidade, simplicidade e espontaneidade que esconde muito bem a riquíssima elaboração Estética que lhe dá corpo. Um filme assim não precisa de nenhum “efeito”, de nenhuma frescura tecnológica, não precisa de “botox”; basta trabalhar com os elementos que verdadeiramente fazem a Arte do Cinema: fotografia, montagem, direção, roteiro e atores. Pronto!
Não é à toa (ponto para a “Academia”, pelo menos neste caso) que a mais nova pérola dos irmãos Coen está concorrendo aos Oscars de melhor filme, fotografia, montagem, direção, roteiro adaptado e ator coadjuvante para Javier Bardem (o filme também concorre nas categorias de melhor som e edição de som). Fico realmente muito curioso e ansioso para saber o resultado final da premiação. Como eu já disse, a riqueza, a densidade, a profundidade e o equilíbrio desta obra notável lhe trazem um ar de clássico (ou de classicismo). No cinema contemporâneo dos Estados Unidos, há dois tipos de filme que são (ou serão) os mais merecedores da alcunha de clássicos: aqueles assinados por Clint Eastwood e os que pesam sob a autoria a quatro mãos de Joel e Ethan Coen.
Este Onde Os Fracos Não Têm Vez segue com maestria a melhor tradição do cinema clássico norte-americano: histórias de crime onde o individual e o coletivo, o psicológico e o sociológico, o texto e o contexto dialogam com muita riqueza e complexidade, em narrativas onde cada imagem, cada plano, incluindo todos os seus elementos visuais constituintes, está e se faz em função de algo que lhe transcende, um significado maior e mais abrangente. Como falei outro dia a respeito de O Gângster, todos os elementos da fotografia, da montagem, do roteiro e da direção exercem um papel específico, unem-se e contribuem para a criação e expressão de um todo que é mais do que a mera adição das partes. Não há pontas deixadas soltas. Não há o acaso, o mistério, o desvio inesperado, o cotidiano, o banal, ou seja: não há a própria vida como ela é, sem graça, cinza, monótona e monocromática.
Totalmente diferente e oposto ao que se tem no cinema europeu – basta ver o recente 4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias. Se o cinema americano é de ação, o europeu é de estado; se o cinema americano é de acontecimentos, o europeu é de situações; se o cinema americano é de extra-ordinário, o europeu é de ordinário. Para colocar em terminologia teórica, segundo Gilles Deleuze, se o cinema americano é o da imagem-movimento, o cinema europeu é o da imagem-tempo. Se os filmes americanos se baseiam nas ações sensório-motoras, o europeu é fundamentado nas percepções ótico-sonoras puras. Este vocabulário já fala bastante por si só. Os irmãos Coen levam quase à perfeição o “sistema americano”, de uma maneira que só encontramos em fitas hollywoodianas dos anos 50 para trás – especialmente se pegarmos as obras de Alfred Hitchcock, o mais perfeito representante dessa tradição.
Em Onde Os Fracos Não Têm Vez, é belíssima a maneira como as paisagens semi-áridas do sudoeste norte-americano (Texas) dialogam com a aridez da história e dos seus personagens. Se o filme fosse composto apenas pelas imagens de abertura, que focalizam aquelas paisagens desertas enquanto a voz em off do personagem de Tomy Lee Jones faz justamente aquele pequeno discurso, ou lamento, ou confissão, já teríamos aí um grande filme. De resto, é em pequenos mas significativos detalhes que a arte do filme se faz. Que detalhes? Um certo enquadramento (em primeiro plano ou com profundidade de campo), um certo corte na montagem, o qual, assim como o enquadramento, escolhe muito bem o que mostrar e o que não mostrar – as coisas que é melhor que fiquem implícitas, pressupostas, subentendidas, sugeridas... Ou simplesmente coisas que não existem ou não aconteceram de fato – deixar margem à dúvida.
É muito significativo o fato de certas violências serem mostradas explicitamente, e outras não (sendo que, dentre estas últimas, algumas ficam na dúvida se aconteceram ou não, graças ao corte-seco na montagem, que separa o momento do “prestes a acontecer” do momento do “depois que já aconteceu” – mas será que aconteceu mesmo?...). Eis a sutileza dos irmãos Coen, e talvez o único elemento neste filme do humor negro, da ironia característica de outras produções dos diretores. Além da paisagem árida (que dialoga muito bem com a paisagem nevada de Fargo, também dos Coen), outros elementos e detalhes do cenário são trabalhados e orquestrados muito significativamente. Às vezes, um rastro de sangue no chão, outras vezes um gato bebendo leite de uma tigela, são pequenas coisas que dão o suspense e uma espécie de humor grave à história, bem ao modo de Hitchcock.
Tome-se a seguinte cena: o pobre Llewelyn Moss (Josh Brolin) mantém guarda sentado na cama do seu quarto de hotel, voltado para a porta, esperando com arma em punho o assassino (Anton Chigurh, verdadeiramente vivenciado por Javier Bardem) que poderá entrar a qualquer momento. É noite, o quarto está totalmente escuro e o protagonista mantém os olhos fixos no vão embaixo da porta, iluminado pela luz do corredor. De repente, surgem a sombra de dois pés, que param bem diante da porta... Alguém discorda que tal cena seja tão assustadora quanto uma outra cena bastante parecida de Janela Indiscreta, dirigida pelo “mestre do suspense”? Veja essa cena até o fim e compare-a ainda mais com a sua “fonte”. É um trabalho bem interessante.
Enfim, quase todos os elementos de Onde Os Fracos Não Têm Vez atestam o classicismo norte-americano. Pois há algo que cai fora da ordem. Algumas ações praticadas pelos personagens não surtem efeito (pelo menos, não o efeito desejado). Principalmente as ações mais decisivas, as mais essenciais. Assim, há sempre um espaço intransponível entre o sujeito e o objeto que busca. Lembremos que tal objeto também é sujeito, a buscar o mesmo objeto-sujeito que o persegue. Temos aí duas cobras que tentam morder a cauda uma da outra. O espaço intransponível, percorrido em seu limite pelo sujeito-objeto e pelo objeto sujeito, é mais do que o espaço físico do Texas (e um pouco do México) que há entre o Sr. Moss, o Sr. Chigurh, o Sr. Carson Wells (Woody Harrelson) e o Sr. Ed Tom Bell (Tommy Lee Jones) que se perseguem e se buscam uns aos outros. Os espaços, de quaisquer natureza que sejam, são refletidos uns nos outros ao infinito – como se fossem espelhos – no entrelaçamento do jogo Estético do filme, que eu discuti antes.
São tais reflexos, e suas reflexões implícitas, que interessam à obra. A mala do dinheiro “roubado” é apenas um chamariz, um elemento unificador apenas em termos de narrativa. É o que Hitchcock chama de “MacGuffin” (ver as entrevistas com Truffaut): uma mera desculpa para que se fale de outras coisas. Tanto é assim que o filme não mostra exatamente, não deixa claro qual foi o destino final da “mala”. Não interessa, não importa. O roteiro também não se preocupa em tratar detalhadamente da sua origem, nem daqueles que seriam os seus donos (os que a deram e os que a receberam na mais ou menos misteriosa transação “comercial”). Os irmãos Coen querem é falar dos intermediários, dos “middle-men”, daqueles que – por planejamento ou por acaso – interferiram numa história que daria outro filme. A história desses homens deu neste filme. Que homens? Llewelyn Moss, Anton Chigurh e Ed Tom Bell.
Veja como é elaborado o roteiro escrito pelos próprios Coen. Ricamente elaborado, mas sem qualquer aparência de pretensão. Eis o melhor! Outra “armadilha” narrativa, esta mais facilmente perceptível: o verdadeiro protagonista, o foco digamos temático e ideológico do filme não é o Sr. Moss, mas o Sr. Bell. E nisto, mais um ponto para a atuação de Tommy Lee Jones. Mas, como eu estava discutindo, há algo de furado, de frustrado nas ações dos personagens, o que desfaz o circuito perfeito dos acontecimentos numa narrativa tradicionalmente hollywoodiana. Eles estão sempre aquém do que buscam: seja porque são simplesmente incapazes (Moss); seja porque as forças do mundo são maiores, as forças de um mundo que não mais lhes pertence, um mundo no qual foram exilados pelo tempo (uma tradução mais exata do título seria “Onde Os Velhos Não Têm Vez), um mundo transformado que não reconhecem mais e, assim, perderam a competência de lidar com ele (caso de Ed Tom Bell); seja por causa do próprio acaso, que jamais poderá ser suprimido, por melhores que sejam os planejamentos (o que se aplica, de modo incrível, ao Sr. Chigurh).
Com tudo isso, o filme que mais carrega em si a tradição do cinema americano não deixa de ter algo de europeu. Algo de Antonioni – que é um dos grandes mestres do “sistema europeu”, assim como Hitchcock o é do “sistema americano”. O inatingível: como se pode agir ou reagir em relação a algo que está fora do alcance?. O incompreensível: como agir ou reagir em relação a algo que se percebe (e, às vezes, mal se percebe) mas que não se compreende de modo algum? (É a angústia-mote do filme, expressa por Tommy Lee Jones logo na abertura e reiterada em diversos momentos até o final). O incomunicável: como expressar tudo isso? Talvez só mesmo misturando Hitchcock com Antonioni é que se pode fazer um western contemporâneo, adaptado e pertinente a contemporaneidade. Expressando a modernidade – ou pós-modernidade, ou como o diabo o chame.
Por isso, Onde Os Fracos Não Têm Vez é um filme que discute a crise. A crise de valores, valores esses expressos pelo personagem de Tommy Lee Jones. Os irmãos Coen não propõem o resgate, sequer a defesa, de valor ético, moral, ideológico ou social algum. Mas, tal qual num poema antigo, apenas lamentam a sua perda, confessam a dor e o espanto de o indivíduo sobreviver num mundo no qual algo importante se perdeu, irremediavelmente. Trata-se do leitmotiv do Ubi Sunt (“Onde está?”), recorrente na história da poesia desde a Idade Média (vide “As Neves de Antanho”, do francês François Villon). O título original do filme é bem mais significativo, pois não se trata de “fracos”, mas de “velhos”. Ao pé da letra: “Sem país (sem lugar, sem terreno, sem região) para os homens velhos”. Aí se resume toda a força do conteúdo desta obra. É a história da nação e também do cinema norte-americano, ambos os locais onde já não há mais espaço para os “velhos”, para os “clássicos”. O tom de lamento e de confissão perpassa o filme de cabo a rabo. Se isso é ser de “direita”, ser “conservador”, então este é o mais belo (e inteligente) filme de direita que eu já vi. Mas tais rotulações são sempre perigosamente redutoras. Eu odeio citá-las, nem que seja só relativamente ou de brincadeira, pois há sempre alguém que não vai entender direito e levar a coisa para o lado ruim.
Esse equilíbrio entre a visão digamos pessoal do filme e as visões com que ele dialoga, assimilando-as ou renegando-as, é a coisa mais difícil de se atingir em qualquer forma de arte. Só os grandes mestres conseguem (e alguns jovens talentos muito raros). De imediato, vêm-me à mente dois exemplos óbvios: João Guimarães Rosa – na Literatura; Alfred Hitchcock – no Cinema. Ambos utilizam-se de uma ou de várias tradições a seu próprio proveito. Proveito o qual, dialeticamente, também o será da própria tradição. Numa relação de simbiose que sustenta as melhores obras artísticas, tanto a tradição quanto a obra particular saem enriquecidas de alguma maneira uma em função da outra. Ainda que de maneiras diferentes, pois os grandes artistas mestres e inventores inventam a sua obra reinventando a tradição.
Refiro-me à tradição tanto em sua forma quanto em seu conteúdo, pois qualquer estudante honesto sabe que a Estética só se constrói através de um entrelaçamento muito bom entre essas duas instâncias. Aqueles filmes que desejam tanto serem “cool” não possuem, infelizmente, tal noção (assim como muitos dos seus admiradores e defensores, para fazer aqui uma provocação). Aqueles filmes só enxergam e trabalham a técnica, em sua miopia descabidamente redutora. E muitas vezes também possuem uma visão ridiculamente pequena e fechada da própria técnica. Mas a verdade é que a técnica é algo muito mais rico, complexo, aberto e abrangente do que a preguiça dessas pessoas permite perceber. E a técnica – a forma, ainda por cima e principalmente, deve procurar se unir de uma maneira também muito rica, complexa, aberta e abrangente ao conteúdo da obra.
E o conteúdo, por sua vez e por fim, precisa ser e ser trabalhado de um modo também o mais rico, complexo, aberto e abrangente possível, respondendo sempre à forma, que o carrega e expressa. Somente assim nascerá a Estética (com E maiúsculo), e uma grande Estética. Pena que muitos filmes não se enquadram numa dimensão verdadeiramente Estética, não transcendem até ela. Mas de vez em (quando?) aparecem alguns que nos surpreendem e renovam as nossas crenças na arte e na humanidade. Eis o caso de Onde Os Fracos Não Têm Vez (“No Country For Old Man”, EUA, 2007). Para quem ainda não se deu conta, venho falado deste filme desde a primeira linha. É antológico. Pode ser já o melhor filme a ser exibido nas salas brasileiras em 2008. Com potencial para mais.
Há filmes que parecem já nascer com vocação para clássicos – é claro que estou exagerando: não dá para se saber exata e imediatamente se uma produção vai entrar para a história ou não (e o quanto, e o quando isso ocorrerá). Mas, analisando as características internas do próprio filme, já sentimos ele se aproximar do selo clássico. Que características? Muitas das quais eu já venho falando ao longo destas linhas: o equilíbrio incrível atingido entre o original e o tradicional, entre o individual e o coletivo, entre a forma e o conteúdo, entre o belo e o feio, entre o particular e o universal (principalmente). Os irmãos Joel e Ethan Coen trabalham todas essas coisas de uma maneira tão rica e tão profunda que a obra chega a uma verdadeira transcendência. O filme engloba tudo ao mesmo tempo em que transcende tudo. Segundo Aristóteles, o Belo é atingido no momento em que o receptor (espectador, leitor, ouvinte, etc) percebe que a obra transcende a si mesma.
Este é o momento de uma revelação, uma iluminação pela qual a obra de arte faz o seu apreciador passar. É o momento da Epifania. Alguns filmes incríveis apresentam sua epifania em algum momento bem específico e fugaz, perdido no meio da narrativa, ou no final. Outros, apresentam-na logo no começo (já ouvi dizer que um grande filme se reconhece logo nos 10 primeiros minutos de exibição). Outros, ainda, mais raros, mostram sua alma em diversos momentos, do começo até o final. Eis o caso de Onde Os Fracos Não Têm Vez. E esta película faz isso como só os grandes poemas fazem: com uma naturalidade, simplicidade e espontaneidade que esconde muito bem a riquíssima elaboração Estética que lhe dá corpo. Um filme assim não precisa de nenhum “efeito”, de nenhuma frescura tecnológica, não precisa de “botox”; basta trabalhar com os elementos que verdadeiramente fazem a Arte do Cinema: fotografia, montagem, direção, roteiro e atores. Pronto!
Não é à toa (ponto para a “Academia”, pelo menos neste caso) que a mais nova pérola dos irmãos Coen está concorrendo aos Oscars de melhor filme, fotografia, montagem, direção, roteiro adaptado e ator coadjuvante para Javier Bardem (o filme também concorre nas categorias de melhor som e edição de som). Fico realmente muito curioso e ansioso para saber o resultado final da premiação. Como eu já disse, a riqueza, a densidade, a profundidade e o equilíbrio desta obra notável lhe trazem um ar de clássico (ou de classicismo). No cinema contemporâneo dos Estados Unidos, há dois tipos de filme que são (ou serão) os mais merecedores da alcunha de clássicos: aqueles assinados por Clint Eastwood e os que pesam sob a autoria a quatro mãos de Joel e Ethan Coen.
Este Onde Os Fracos Não Têm Vez segue com maestria a melhor tradição do cinema clássico norte-americano: histórias de crime onde o individual e o coletivo, o psicológico e o sociológico, o texto e o contexto dialogam com muita riqueza e complexidade, em narrativas onde cada imagem, cada plano, incluindo todos os seus elementos visuais constituintes, está e se faz em função de algo que lhe transcende, um significado maior e mais abrangente. Como falei outro dia a respeito de O Gângster, todos os elementos da fotografia, da montagem, do roteiro e da direção exercem um papel específico, unem-se e contribuem para a criação e expressão de um todo que é mais do que a mera adição das partes. Não há pontas deixadas soltas. Não há o acaso, o mistério, o desvio inesperado, o cotidiano, o banal, ou seja: não há a própria vida como ela é, sem graça, cinza, monótona e monocromática.
Totalmente diferente e oposto ao que se tem no cinema europeu – basta ver o recente 4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias. Se o cinema americano é de ação, o europeu é de estado; se o cinema americano é de acontecimentos, o europeu é de situações; se o cinema americano é de extra-ordinário, o europeu é de ordinário. Para colocar em terminologia teórica, segundo Gilles Deleuze, se o cinema americano é o da imagem-movimento, o cinema europeu é o da imagem-tempo. Se os filmes americanos se baseiam nas ações sensório-motoras, o europeu é fundamentado nas percepções ótico-sonoras puras. Este vocabulário já fala bastante por si só. Os irmãos Coen levam quase à perfeição o “sistema americano”, de uma maneira que só encontramos em fitas hollywoodianas dos anos 50 para trás – especialmente se pegarmos as obras de Alfred Hitchcock, o mais perfeito representante dessa tradição.
Em Onde Os Fracos Não Têm Vez, é belíssima a maneira como as paisagens semi-áridas do sudoeste norte-americano (Texas) dialogam com a aridez da história e dos seus personagens. Se o filme fosse composto apenas pelas imagens de abertura, que focalizam aquelas paisagens desertas enquanto a voz em off do personagem de Tomy Lee Jones faz justamente aquele pequeno discurso, ou lamento, ou confissão, já teríamos aí um grande filme. De resto, é em pequenos mas significativos detalhes que a arte do filme se faz. Que detalhes? Um certo enquadramento (em primeiro plano ou com profundidade de campo), um certo corte na montagem, o qual, assim como o enquadramento, escolhe muito bem o que mostrar e o que não mostrar – as coisas que é melhor que fiquem implícitas, pressupostas, subentendidas, sugeridas... Ou simplesmente coisas que não existem ou não aconteceram de fato – deixar margem à dúvida.
É muito significativo o fato de certas violências serem mostradas explicitamente, e outras não (sendo que, dentre estas últimas, algumas ficam na dúvida se aconteceram ou não, graças ao corte-seco na montagem, que separa o momento do “prestes a acontecer” do momento do “depois que já aconteceu” – mas será que aconteceu mesmo?...). Eis a sutileza dos irmãos Coen, e talvez o único elemento neste filme do humor negro, da ironia característica de outras produções dos diretores. Além da paisagem árida (que dialoga muito bem com a paisagem nevada de Fargo, também dos Coen), outros elementos e detalhes do cenário são trabalhados e orquestrados muito significativamente. Às vezes, um rastro de sangue no chão, outras vezes um gato bebendo leite de uma tigela, são pequenas coisas que dão o suspense e uma espécie de humor grave à história, bem ao modo de Hitchcock.
Tome-se a seguinte cena: o pobre Llewelyn Moss (Josh Brolin) mantém guarda sentado na cama do seu quarto de hotel, voltado para a porta, esperando com arma em punho o assassino (Anton Chigurh, verdadeiramente vivenciado por Javier Bardem) que poderá entrar a qualquer momento. É noite, o quarto está totalmente escuro e o protagonista mantém os olhos fixos no vão embaixo da porta, iluminado pela luz do corredor. De repente, surgem a sombra de dois pés, que param bem diante da porta... Alguém discorda que tal cena seja tão assustadora quanto uma outra cena bastante parecida de Janela Indiscreta, dirigida pelo “mestre do suspense”? Veja essa cena até o fim e compare-a ainda mais com a sua “fonte”. É um trabalho bem interessante.
Enfim, quase todos os elementos de Onde Os Fracos Não Têm Vez atestam o classicismo norte-americano. Pois há algo que cai fora da ordem. Algumas ações praticadas pelos personagens não surtem efeito (pelo menos, não o efeito desejado). Principalmente as ações mais decisivas, as mais essenciais. Assim, há sempre um espaço intransponível entre o sujeito e o objeto que busca. Lembremos que tal objeto também é sujeito, a buscar o mesmo objeto-sujeito que o persegue. Temos aí duas cobras que tentam morder a cauda uma da outra. O espaço intransponível, percorrido em seu limite pelo sujeito-objeto e pelo objeto sujeito, é mais do que o espaço físico do Texas (e um pouco do México) que há entre o Sr. Moss, o Sr. Chigurh, o Sr. Carson Wells (Woody Harrelson) e o Sr. Ed Tom Bell (Tommy Lee Jones) que se perseguem e se buscam uns aos outros. Os espaços, de quaisquer natureza que sejam, são refletidos uns nos outros ao infinito – como se fossem espelhos – no entrelaçamento do jogo Estético do filme, que eu discuti antes.
São tais reflexos, e suas reflexões implícitas, que interessam à obra. A mala do dinheiro “roubado” é apenas um chamariz, um elemento unificador apenas em termos de narrativa. É o que Hitchcock chama de “MacGuffin” (ver as entrevistas com Truffaut): uma mera desculpa para que se fale de outras coisas. Tanto é assim que o filme não mostra exatamente, não deixa claro qual foi o destino final da “mala”. Não interessa, não importa. O roteiro também não se preocupa em tratar detalhadamente da sua origem, nem daqueles que seriam os seus donos (os que a deram e os que a receberam na mais ou menos misteriosa transação “comercial”). Os irmãos Coen querem é falar dos intermediários, dos “middle-men”, daqueles que – por planejamento ou por acaso – interferiram numa história que daria outro filme. A história desses homens deu neste filme. Que homens? Llewelyn Moss, Anton Chigurh e Ed Tom Bell.
Veja como é elaborado o roteiro escrito pelos próprios Coen. Ricamente elaborado, mas sem qualquer aparência de pretensão. Eis o melhor! Outra “armadilha” narrativa, esta mais facilmente perceptível: o verdadeiro protagonista, o foco digamos temático e ideológico do filme não é o Sr. Moss, mas o Sr. Bell. E nisto, mais um ponto para a atuação de Tommy Lee Jones. Mas, como eu estava discutindo, há algo de furado, de frustrado nas ações dos personagens, o que desfaz o circuito perfeito dos acontecimentos numa narrativa tradicionalmente hollywoodiana. Eles estão sempre aquém do que buscam: seja porque são simplesmente incapazes (Moss); seja porque as forças do mundo são maiores, as forças de um mundo que não mais lhes pertence, um mundo no qual foram exilados pelo tempo (uma tradução mais exata do título seria “Onde Os Velhos Não Têm Vez), um mundo transformado que não reconhecem mais e, assim, perderam a competência de lidar com ele (caso de Ed Tom Bell); seja por causa do próprio acaso, que jamais poderá ser suprimido, por melhores que sejam os planejamentos (o que se aplica, de modo incrível, ao Sr. Chigurh).
Com tudo isso, o filme que mais carrega em si a tradição do cinema americano não deixa de ter algo de europeu. Algo de Antonioni – que é um dos grandes mestres do “sistema europeu”, assim como Hitchcock o é do “sistema americano”. O inatingível: como se pode agir ou reagir em relação a algo que está fora do alcance?. O incompreensível: como agir ou reagir em relação a algo que se percebe (e, às vezes, mal se percebe) mas que não se compreende de modo algum? (É a angústia-mote do filme, expressa por Tommy Lee Jones logo na abertura e reiterada em diversos momentos até o final). O incomunicável: como expressar tudo isso? Talvez só mesmo misturando Hitchcock com Antonioni é que se pode fazer um western contemporâneo, adaptado e pertinente a contemporaneidade. Expressando a modernidade – ou pós-modernidade, ou como o diabo o chame.
Por isso, Onde Os Fracos Não Têm Vez é um filme que discute a crise. A crise de valores, valores esses expressos pelo personagem de Tommy Lee Jones. Os irmãos Coen não propõem o resgate, sequer a defesa, de valor ético, moral, ideológico ou social algum. Mas, tal qual num poema antigo, apenas lamentam a sua perda, confessam a dor e o espanto de o indivíduo sobreviver num mundo no qual algo importante se perdeu, irremediavelmente. Trata-se do leitmotiv do Ubi Sunt (“Onde está?”), recorrente na história da poesia desde a Idade Média (vide “As Neves de Antanho”, do francês François Villon). O título original do filme é bem mais significativo, pois não se trata de “fracos”, mas de “velhos”. Ao pé da letra: “Sem país (sem lugar, sem terreno, sem região) para os homens velhos”. Aí se resume toda a força do conteúdo desta obra. É a história da nação e também do cinema norte-americano, ambos os locais onde já não há mais espaço para os “velhos”, para os “clássicos”. O tom de lamento e de confissão perpassa o filme de cabo a rabo. Se isso é ser de “direita”, ser “conservador”, então este é o mais belo (e inteligente) filme de direita que eu já vi. Mas tais rotulações são sempre perigosamente redutoras. Eu odeio citá-las, nem que seja só relativamente ou de brincadeira, pois há sempre alguém que não vai entender direito e levar a coisa para o lado ruim.
8 comentários:
Belo o livro do McCarthy, belíssimo o filme dos Coen.
O Javier Bardem e seu cabelinho tijelinha não está espetacular? Um dos melhores personagens do cinema de todos os tempos!
David: Fico curioso mesmo em ler o livro, parece que McCarthy é muito bem conceituado hoje em dia, não?
Marfil: o psycho killer de Bardem é antológico! Vai entrar para o rol dos "casca grossa" do cinema...
Excelente texto.
Uma análise bem extensa, não? Vou ler assim que ver o filme! ;D
"Tendência para clássico" - ótimo texto! é curioso essa coisa de já adquirir uma aura de clássico logo que lançado, são poucos filmes que "caem" nessa rede e esse já é osegundo dos irmãos que "caem" nisso. OU alguém acha que "Fargo" não se tornou um clássico? As vezes até penso que a próoria palavra FARGO adquiriu um sentido meio particular no meio cinematográfico, um sinônimo de coisas que dão errada... enfim, meio louco isso...
É curiosa mesmo essa aura de clássico recente. Algumas pessoas reclamaram e discordaram (bastante até, em alguns casos) desse oba-oba que se criou, desse hype em cima de "Onde os fracos..." Quanto a mim, confessei no texto e confesso de novo que com certeza há exagero nessa "rede" que você falou, mas também confesso - e com mais alegria - que são mesmo pouquíssimos filmes que caem nela. E por que será? Para alguns filmes, pode ser apenas uma questão de marketing, de hype mesmo. Mas acho que há outros que são muito bem recebidos (até demais) porque se vislumbra de fato um verdadeiro potencial artístico interno que eles têm. Eu procuro muito filmes assim, como quem procura um messias, como se procura aquela banda que vai "salvar" o rock. Filmes que "salvam" o cinema... é isso! Contudo, só o tempo é quem vai dar a palavra final mesmo.
Caralho (com o perdão da palavra) que resenha!
Fiquei com vergonha da minha!
Encontrei seu blog por grande sorte enquanto procurava opiniões sobre o filme.
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