Vergonha e
Castigo
Contrariando um
pouco certos lugares-comuns, é preciso dizer que Shame (Reino Unido, 2011, direção: Steve McQueen) não é, exatamente
e tão somente, uma história sobre compulsão sexual. Pelo menos, não é
interessante de ser vista apenas como tal, sob pena de se ativar no púlbico uma
outra, e igualmente perigosa, compulsão: a sanha diagnóstica vulgar, fruto de
um determinado pensamento higienista que se compraz em patologizar todas as questões
mais delicadas da vida subjetiva, para assim dormirem melhor as consciências
remediadas. O cinema não está na alçada de atos
médicos.
É sabido que a
identidade social do anormal é uma
construção histórica, que vem se mantendo no transcurso da civilização à medida
em que o meio identifica indivíduos que não compartilham de certas
características encontradas na maior parte das pessoas, características essas
que definiriam o “normal”. O comum torna-se norma.
Não é para se questionarem, evidentemente, casos óbvios de saúde (pública). Mas
o fato é que, por critérios dos mais variados, as peculiaridades de alguns
indivíduos foram, ao longo dos séculos, muito sumariamente categorizadas como
quadros patológicos, cujo paradigma mais usado é o da doença.
Assim, torna-se
muito fácil ouvirmos, no burburinho da saída de uma sessão de Shame, comentários psiquiátricos de
porta de boteco que sempre estão na ponta da língua, do tipo: “nossa, é doença
isso!”; “esse cara (o protagonista) passou dos limites!”; dentre outros. Uma
personagem como Brandon Sullivan (Michael Fassbender) pode até se encaixar um
quadro médico, completamente entregue que está ao moto perpétuo de um cotidiano
regado a masturbações, sexo com prostitutas, pornografia online, visitas
escusas a boates gays, etc. Mas o mais importante aqui é o público (e o
crítico) observarem duas coisas:
1. trata-se de
uma história de ficção, ou seja, há limites a serem observados na hora de se
deitarem personagens fictícias no divã; 2. a narrativa construída por Steve
McQueen (diretor e co-roteirista) não enquadra sumariamente a situação de
Brandon Sullivan como um mero caso de “doença”, da forma sentenciosa como
faziam os romancistas do Naturalismo (século XIX), ou como fazem alguns
cineastas até hoje. Uma crise existencial, uma inquietação ou trauma, mesmo o
vício sexual (se colocado em relação a essas vivências mais subjetivas), dizem
mais respeito ao tom do filme e à construção do seu protagonista – que é alçado
aqui a uma grandeza mais poética / lírica.
Por isso, a
atitude de condenar muito rapidamente Brandon Sullivan como um anormal, como um
“doente” (ainda que com suposta compaixão), não passaria de uma atualização do
velho moralismo que o desqualificaria como um “pervertido”. A tara higienista
de hoje não difere muito, em espírito, da mentalidade das épocas em que
patologias eram entendidas como possessões demoníacas. Contudo, não estamos
dizendo isso para que se defenda uma postura condescendente em relação à
personagem, tampouco para negarmos a existência do vício em sexo (medo que o
diretor tem em relação à sociedade norte-americana, dizendo em entrevista que,
se tivesse feito um filme sobre álcool ou drogas, seria mais aceito).
O importante
aqui é rasparmos as camadas mais superficiais da experiência trazida por um
filme e observarmos a figura de Brandon Sullivan como possível alegoria para as
armadilhas e abismos da condição humana, na fenomenologia do eu, do ser / estar no mundo em relação
ao outro, com todas as dificuldades
envolvidas nessa interação (dentre as quais pode-se incluir o vício sexual). Acreditamos
que, no fundo, seja essa a proposta do filme: vivenciarmos uma (complicada)
alteridade, uma vida alheia que, não obstante, é a nossa também. E mais nossa do
que gostaríamos de acreditar. Como já dizia o filósofo: “nada do que é humano
me é alheio”.
O artista visual
Steve McQueen (prestigiado no circuito das exposições e galerias) é de grande
sensibilidade no observar as suas difíceis personagens e contar os seus indigestos
dramas, como já foi bem demonstrado no premiado Hunger (2008, sua estreia em longa-metragens), sobre a greve de
fome realizada por prisioneiros políticos irlandeses no início dos anos 1980. O
caso de Brandon Sullivan é que este não parece possuir tanto uma compulsão por
sexo quanto parece estar mais para um sujeito “perdido”. O próprio McQueen confessa ao “The Guardian”: “Brandon
in Shame is my response to being lost – I've not been there in the
sense of sexual addiction, but I've been lost.” (Brandon, em Shame, é a minha resposta ao estar
perdido – eu não tive vício por sexo, mas já estive perdido).
Um indivíduo
perdido, que reconhece estar perdido, mas não consegue fazer nada a respeito.
Repete, irremediavelmente, os mesmos atos vergonhosos,
numa dinâmica mental de crime e culpa, enquanto sua vida sócio-emocional
permanece estagnada em isolamento, em solidão, ou mesmo cada vez mais
decadente: nisto se vê o elemento de tensão e desequilíbrio trazido pela irmã necessitada
de Brandon (Carey Mulligan), a qual ele negligencia e maltrata
sistematicamente, pois ela demanda que ele saia um pouco de seu submundo e se
dedique a uma relação de fato humana, ao que ele não é capaz de corresponder –
assim como não corresponde à colega de trabalho que se interessa sexualmente e
de modo genuíno por ele.
Literal e
figurativamente impotente, o personagem magnificamente interpretado por Fassbender
vai, assim, afundando num movimento em espiral, dentro de um abismo-redemoinho
de abjeção e ignomínia. Dessa forma, os movimentos sinuosos e obscuros da alma
de Brandon Sullivan interessam, aqui, muito mais do que a dinâmica simples do
vai-e-vem da compulsão. Um bom filme exclusivamente sobre o vício, que citemos
apenas para que se ilustrem bem as diferenças, é o clássico Os Viciados (“The Panic in Needle Park”,
1971, de Jerry Schatzberg): lá se veem, nas grandiosas atuações de Al Pacino e
Kitty Winn, os efeitos devastadores de um comportamento aditivo, razão única da
desgraça das personagens.
Quanto a Shame, este possui uma dimensão mais dostoievskiana:
Brandon Sullivan, em sua alma atormentada, é uma variação do homem do subsolo, que habita – em outras
e diversas variantes – as narrativas do russo, como “Crime e Castigo” (1866),
“O Duplo” (1846) e, principalmente, “Memórias do Subsolo” (1864). Sullivan não
é misantropo como os outros, não odeia a sociedade que o cerca. Mas odeia a si
mesmo. Retorce-se de culpa ao mesmo tempo que se apraz em chafurdar na própria
lama, sem vislumbrar saída para tal círculo (vicioso?). O longo e desesperado
berro que ele dá, caído de joelhos num píer de Nova York, é a sua fala mais
eloquente.
Com tudo isso, parece mais pertinente o diagnóstico de que a compulsão
sexual de Brandon não é tanto a causa
de sua miséria quanto a sua consequência.
É o caso de detectar a atividade sísmica tão intensa que há no fundo do seu ser
(um personagem “perdido”), que uma vez amplificada à superfície, causa tanta
destruição. Um espírito perturbado, que vaga fantasmagoricamente pela vida,
assombrado pelo mundo em si, sem lograr uma relação minimamente estável e
razoável com outro ser humano, é tema comum aos filmes de Bergman, de
Antonioni. Sem que estes, naturalmente, reduzam ao “vício” tais inquietações.
Mas Steve McQueen também não o faz. Que se calibrem, então, os instrumentos de
análise do público (e do crítico).
3 comentários:
Excelente texto, Doug.
E o filme é sensacional. Achei desesperador do começo ao fim.
Valeu, Karen!
O filme é angustiante mesmo.
Ufa, você voltou. Depois de um longo e tenebroso inverno... já sentia muita falta dos seus textos. Agora, vou ler tudo, e volto pra comentar.
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