quarta-feira, maio 23, 2012

Um Método Perigoso


Mentes Escaneadas

Eu queria conhecer as opiniões de Freud acerca da precognição e da parapsicologia em geral. Quando fui vê-lo em 1909, em Viena, perguntei-lhe o que pensava sobre isso. Fiel a seu preconceito materialista, repeliu todo esse complexo de questões, considerando-as mera tolice. Ele apelava para um positivismo de tal modo artificial que precisei conter uma resposta cáustica. Alguns anos decorreram antes que Freud reconhecesse a seriedade da parapsicologia e o caráter de dado real dos fenômenos “ocultos”.

Enquanto Freud expunha seus argumentos, eu tinha uma estranha sensação: meu diafragma parecia de ferro ardente, como se formasse uma abóbada ardente. Ao mesmo tempo, um estalido ressoou na estante que estava a nosso lado, de tal forma que ambos nos assustamos. Pensamos que a estante ia desabar sobre nós. Foi exatamente essa a impressão que nos causou o estalido. Eu disse a Freud: “Eis o que se chama um fenômeno catalítico de exteriorização.” “Ah”, disse ele, “isso é um puro disparate!”

“De forma alguma”, repliquei, “o senhor se engana, professor. E para provar-lhe que tenho razão, afirmo previamente que o mesmo estalido se reproduzirá”. E, de fato, apenas pronunciara estas palavras, ouviu-se o mesmo ruído na estante.

Ainda hoje ignoro de onde me veio esta certeza. Eu sabia, porém, perfeitamente, que o ruído se reproduziria. Então, como resposta, Freud me olhou, horrorizado. Não sei o que pensou, nem o que viu. É certo, no entanto, que este acontecimento despertou sua desconfiança em relação a mim; tive o sentimento de que lhe fizera uma afronta. Nunca mais falamos sobre isso. (JUNG, Carl Gustav. Memórias, Sonhos, Reflexões. 1ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006. p. 190-191)

A cena acima é extraída da autobiografia de C. G. Jung e se encontra reproduzida tal qual em Um Método Perigoso (“A Dangerous Method”, Reino Unido / Alemanha / Canadá / Suíça, 1022), o filme mais recente de David Cronenberg. Já se podem reconhecer nela os campos minados do cérebro pensante e as relações com os seus maiores “inimigos” – o corpo e o mundo dos objetos – temática que esteve sempre presente na obra do diretor, não raro adotando expressões de extrema violência, no grotesco de mutilações, metamorfoses e fetiches: o bizarro esticado às raias do surreal.

Neste ponto, verdade seja dita, Um Método Perigoso baixa o tom em relação a Os Senhores do Crime (“Eastern Promises”, 2007) e Marcas da Violência (“A History of Violence”, 2005), exemplos da produção mais recente de um autor maduro, mas ainda inspirado. No entanto, os fãs do Cronenberg mais hypado pela crítica não precisam desgostar (muito) deste filme que é quase um teatro filmado – no bom sentido. Pois estão lá, ainda que no fundo e com sutileza, as velhas preocupações do cineasta, desde a primeira cena, em que vemos uma Keira Knightley histérica sendo transportada para o sanatório onde atende o jovem Dr. Jung (interpretado pelo grande Michael Fassbender).

A personagem dela é Sabina Spielrein, que entrará num relacionamento amoroso tenso (além de adúltero) com o pai da psicologia analítica. Tudo baseado em conhecidos fatos reais; porém, a história não será contada à moda folhetinesca de Jornada da Alma (“Prendimi l’Anima”, 2002, de Roberto Faenza). Cronenberg fará com que o drama se exerça de maneira rigorosa, severa, carregando, no fundo e no final das contas, um comentário irônico e um tanto quanto iconoclasta em relação a duas figuras míticas de um século cujo empenho-mor foi a derrubada de todos os mitos.

Os heróis da era da ciência já não são Hércules, Teseu, Perseu ou Aquiles; tampouco Noé, Moisés, Davi ou Jesus. Nossos profetas, xamãs e guias são cientistas. Em especial Sigmund Freud (vivido aqui por Viggo Mortensen), paladino do materialismo contemporâneo, como seu ex-discípulo faz questão de esclarecer no texto acima. Mas o conhecimento material não tem nada de heroico; ele vai se formando e transformando  à base de diferenças entre pontos de vista, egos, vaidades. As idiossincrasias pessoais, intransigentes, batem-se de parte a parte: de um lado, o Freud que não aceita um discípulo que tenha ideias próprias (quanto menos, metafísicas); do outro, um Jung que não pode aceitar a existência do mero acaso.

No final, os dois não passarão de objetos típicos dos próprios métodos de análise psicológica que elaboraram. Freud será estudado e diagnosticado por Jung, e este o será por Sabine – já “curada” e tornada ela própria psicóloga – no memorável diálogo que encerra o filme e que abandonará o criador da teoria dos arquétipos num estado de desamparo, confusão e estupefação quase infantil. Humano, nada mais do que humano. É claro que nada disso faz por diminuir o valor e a importância da enorme contribuição que os dois maiores psicólogos do século XX trouxeram para o patrimônio do conhecimento da espécie.

Mas Um Método Perigoso, que é essencialmente um filme de diálogos, extrai a sua força de um brainstorm e de mind games que colocam em perspectiva os fundamentos da concepção intelectualizante que a civilização moderna (e pós-moderna) faz do ser, da vida e do mundo. Freud e Jung, cada um à sua própria maneira e segundo as próprias crenças (ou descrenças), são as primeiras vítimas dessa racionalização prolífica de neuroses. No final de tudo, quem sai engrandecida dessa história é Sabine Spielrein – ao contrário da vitimização constrangedora que a personagem sofre no filme de Faenza.

Lembremos que ela morre nas mãos do nazismo, fato que Cronenberg, sabiamente, escusa-se de mostrar, apenas referindo a ele nos letreiros finais. Sabine é o sexo forte, que extrai da sua loucura e da sua intuição a sabedoria vital que falta às duas das maiores mentes do século. Enfim, Um Método Perigoso é receitado tanto a freudianos quanto a junguianos, tanto pelas vitórias quanto pelos fracassos dos seus ídolos – entendidos como figuras biografáveis, pois Cronenberg está pouco interessado em discutir o mérito de teorias e tratamentos psicológicos, ao contrário do que o título do filme pode levar erroneamente a acreditar. Mas, então, eis uma nova ironia...

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