Jacques Tati faleceu em 04 de novembro de 1982. O último longa-metragem do diretor / roteirista / ator tinha sido Parada (“Parade”, 1974), realizado para a TV. Em seu legado, encontramos verdadeiros patrimônios culturais da humanidade, como As Férias do Sr. Hulot (“Les Vacances de Monsieur Hulot”, 1953) e, principalmente, Meu Tio (“Mon Oncle”, 1958). Agora, eis o grande artista relembrado, ressuscitado e transfigurado em animação por Sylvain Chomet em O Mágico (“L’Illusionniste”, Reino Unido / França, 2010). O diretor do cult As Bicicletas de Belleville (2003) resolveu debruçar-se sobre um roteiro escrito por Tati, mas jamais filmado; e, segundo ele, 80% da história original foi mantida.
De fato, há bastante coisa do saudoso Sr. Hulot neste desenho animado. Acompanhando os últimos dias profissionais de um velho prestidigitador, chamado Tatischeff (que é o sobrenome de batismo de Jacques), o filme focaliza a decadência do antigo fazer artístico e o desaparecimento dos velhos mestres num mundo dominado cada vez mais pela indústria cultural e pela reprodutibilidade técnica, no final dos anos 50: bandas de rock and roll que movem pequenas multidões de fãs em histeria, imponentes aparelhos de televisão e automóveis com “rabo de peixe”, sem contar o apelo pelo consumo de roupas, sapatos e perfumes da moda, para o qual a publicidade exerce função central.
Tudo isso está bem de acordo com o conjunto de ideias de Tati, o qual nunca se deixou iludir pelas encenações do “progresso”: o final do curta-metragem Curso Noturno (“Cours du Soir”, 1967) revela isso com bastante ironia. Em seus filmes, o que sobressai é uma resistência solitária e saudosa – mas heróica – de valores humanos quase bucólicos. O Mágico deixa-se animar por tais questões: veja-se a cena em que o pobre ilusionista aguarda pacientemente o grupo de rock que não sai do palco (e quando ele finalmente entra, sobraram não mais do que alguns “gatos-pingados” na plateia).
Outros momentos significativos são a cena em que ele e sua jovem amiga Alice passam na frente de uma loja de TVs (ela para, encantada, mas ele passa reto sem dar maior atenção), a cena em que o protagonista tem que fazer as vezes de mecânico de automóveis, ou a cena em que ele aceita o emprego humilhante de manequim vivo para uma agência de propaganda. Em paralelo, vemos o drama de outros artistas tradicionais, como um grupo de acrobatas que vão trabalhar como pintores de cartazes na mesma agência publicitária, um ventríloquo que acaba alcoólatra e mendigo, ou um palhaço à beira de dar cabo da própria vida.
Todos estão bem próximos do universo de Jacques Tati, que começou sua carreira no vaudeville (teatro popular de variedades, comum no final do século XIX ao começo do XX) e deve muito do seu estilo à velha pantomima (a expressividade centrada nos gestos e na postura corporal), pela qual se liga à família dos inesquecíveis Chaplin e Keaton, dentre outros clowns. Porém, o conteúdo crítico não se coloca como predominante neste filme, sendo mesmo menor do que em outras obras clássicas do mestre francês. Isso talvez se explique pelo caráter pessoal do roteiro assinado por Tati, que seria baseado na relação tensa entre ele e uma filha sua ilegítima.
A história pretenderia ser uma tentativa de redenção por parte do pai (segundo o que depreendemos de entrevista dada pelo diretor Chomet), o que se percebe na comovente convivência entre o personagem Tatischeff e uma jovem (Alice) que decide acompanhá-lo e “cuidar” dele, que vai se tornando cada vez mais pária em suas andanças de teatro em teatro, de subemprego em subemprego. A maior parte da narrativa se concentra nos dois. E o final não é feliz; porém, é humano e consolador – prevalece a vida em sua natureza, as consequências de decisões e atitudes de cada um. Eis o peso central deste filme, ainda mais sensível do que qualquer outro de Tati e tanto quanto As Bicicletas de Belleville.
Agora, o mais triste é uma outra coisa. Por mais que a equipe de animação tenha pesquisado e se esforçado em tentar capturar e reproduzir a personalidade física de Jacques Tati, com resultados bem-sucedidos num modo geral, ainda assim fica irremediavelmente evidente que a figura que vemos na tela não é a de Jacques Tati. O seu corpo carismático, apenas sugerido por traços finos em folhas de celuloide, as quais serão dispostas com muito engenho para se criar uma ilusão de ótica, jamais será tão animado e gracioso de movimentos quanto o corpo original. Será um corpo duro, um corpo-ausência, elíptico, abstrato, desabitado de alma. A ressurreição empreendida por Chomet não pode ser nada mais do que fantasmagórica. No final das contas, o único Jacques Tati em que continuaremos acreditando será o Jacques Tati encarnado, imortalizado pela própria fotogenia.
2 comentários:
Depois da decepção de Carros 2 e do bom, mas só isso, Kung Fu Panda 2, essa animação aponta como a melhor do ano até então. Mas por mais que exista um esforço evidente em resgatar todo o espírito do Tati, de sua figura e de seu cinema gestual (se saindo muito bem nesse quesito), acho que o filme pertence muito mais ao estilo do próprio Chomet, a começar pela decisão de fazer uma animação, e pelo tom acentuadamente melancólico. Muito bom.
É verdade. Mas me surpreeendeu ler que essa melancolia pode vir também do próprio Tati, que supostamente teria escrito o filme para a filha que ele nunca reconheceu. Qual a medida de um e do outro? Fiquei curioso pra ver o roteiro original.
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