quinta-feira, julho 28, 2011

Fear X


O dinamarquês Nicolas Winding Refn é um cineasta da crueldade – a qual já se encontra muito bem estabelecida, em seu país, numa tradição que vai de Carl Theodor Dreyer a Lars Von Trier. Em seu terceiro longa, Fear X (Dinamarca / Reino Unido, 2003), o diretor abandona os violentos submundos de Copenhage, retratados com energia visceral em Pusher (1996) e Bleeder (1999), e mergulha na América profunda – não menos perigosa. A história tem como protagonista Harry Caine (interpretado pelo ótimo John Turturro), um pacato segurança de shopping center cuja esposa é assassinada, aparentemente sem motivo, no estacionamento do próprio local, junto de um policial à paisana.


O homem, então, passará a viver exclusivamente em função de uma incansável investigação pessoal para descobrir quem a matou (a polícia parece pouco interessada na questão). Sua obsessão é inversamente proporcional aos resultados obtidos por horas e horas assistindo em vão a gravações das câmeras de vigilância. No entanto, tudo mudará ao descobrir um negativo de fotografia na casa abandonada em frente à sua – e que lhe parece suspeita, por uma razão... sobrenatural? A pista levará Harry ao estado vizinho de Montana e ao envolvimento com coisas e pessoas que estão muito além de sua compreensão.


Agora, o que mais interessa: todos esses fatos são narrados por Refn (que também co-assina o roteiro) com grande sutileza, deixando muita coisa implícita, e utilizando-se de uma atmosfera onírica e elíptica que lembra David Lynch, principalmente Twin Peaks (1990) e A Estrada Perdida (“Lost Highway”, 1997). A fantasmagoria também se faz presente em vagarosos travellings de câmera para a frente (principalmente nas cenas do hotel), que remetem, por sua vez, ao Iluminado (“The Shinning”, 1980), de Kubrick. Por fim, a trilha sonora, co-assinada por Brian Eno, emula o minimalismo de A Carruagem Fantasma (“Körkalen”, 1921, Victor Sjöström) e traz acabamento final para o clima sombrio do filme.


Tais referências, um tanto explícitas e que alguns poderiam considerar abusivas, não nos parecem mais incômodas do que as que faz um Von Trier em Anticristo (2009, em relação a Bergman e Tarkovski), ou um Tarantino em qualquer filme (em relação à exploitation dos anos 70) – cineastas, no geral, bem considerados pela crítica. Ademais, veremos que o caráter mais abstrato deste longa tem a sua razão de ser, em relação a questões colocadas pelos acontecimentos e que discutiremos mais adiante (isso o fará distanciar-se bastante de Lynch e Kubrick, ainda que o faça aproximar-se, por outro lado, de Fincher).


De qualquer maneira, o tom e o ritmo de Fear X são bem diferentes do que sugere o hardcore das guitarras que pontuam o áudio nos dois filmes anteriores de Refn: além da crueldade, parece que o cineasta pretendeu também beber algo nas fontes do obscurantismo e do existencialismo do cinema do Atlântico Norte (os já citados Sjöstrom e Dreyer, além de Bergman, é claro). Apesar de tudo, o longa é essencialmente materialista: no final, vemos que os vivos é que devem ser temidos. O mistério não passa de conspiração – o que não faz dela algo menos tenebroso e assustador. Os personagens seguem cada um seus próprios interesses, mesquinhos ou não. Todos têm uma família que muito amam e à qual muito se dedicam e sacrificam.


Mesmo assim, não deixam de exercer atividades que tragam sofrimento para famílias alheias. É assim que é a sociedade. É assim com o assassino da Sra. Caine, e é assim com o próprio Sr. Caine: há uma cena muito significativa, no início do filme, em que o bom segurança prende em flagrante um senhor de idade que furtara uma peça de roupa em uma loja, algemando-o com frieza na frente de sua esposa, para o desespero dela. Na luta por justiça, sempre haverá baixas imprevistas, conforme diz um dos personagens “sombrios”. Enfim, não há heróis nem vilões. O que há são vítimas de tragédias, consequências terríveis de atos cujo alcance e significação estão além das mãos dos indivíduos.


Mais uma vez, eis o caso do assassino de Claire Caine e, principalmente, o de Harry Caine, que luta desesperadamente para descobrir uma verdade que jamais poderá ser a ele revelada. A conclusão filosófica do filme, para além do seu desfecho narrativo, é pós-moderna: temos que seguir em frente com nossas vidas numa relativa ignorância, pois não podemos conhecer todos os detalhes do funcionamento do “sistema”, do comportamento das pessoas ou de suas relações em sociedade; consequentemente, não podemos evitar, controlar, nem corrigir as interferências desse mesmo sistema em nossas vidas privadas. É pós-moderno, mas é clássico ao mesmo tempo. A tragédia é uma só.


Se ontem éramos cegos instrumentos para o capricho dos deuses, hoje o somos para as complexas estruturas e instituições da civilização, que para um cidadão comum como Harry Caine, não parecerão menos caprichosas. A moral de Fear X não difere muito daquela que David Fincher pregará em Zodíaco (2007): a verdade não poderá ser desvelada; é uma tolice o próprio fato de se querer saber a “verdade” no mundo da indústria e da mídia. O mistério persiste, mas com uma outra natureza: mais mundana, mais prosaica, sem deixar de ser igualmente incômoda e perigosa. Com isso, justifica-se o tom sobrenatural do filme, ainda que não haja coisa alguma de factualmente metafísico em sua diegese. Viver (ainda) é muito perigoso.

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