quarta-feira, outubro 27, 2010

Não Me Deixe Jamais


Existem dois tipos de narrativas de vôos dramáticos que decolam do chão da ficção científica. O primeiro diz respeito àquelas histórias que procuram rastrear o alcance dos efeitos humanos (psíquicos, sociais, filosóficos, etc) de uma dada situação científico-tecnológica inexistente em nosso tempo. Nestas, o fato material é de importância essencial e toda a fabulação crescerá tomando-o como raiz. É o gênero do “sci-fi”, propriamente dito (pelo menos, em seus melhores frutos). Um (bom) exemplo recente, e um tanto quanto aparentado do filme que discutiremos aqui, é o de Lunar (“Moon”, 2009, dir.: Duncan Jones).

O segundo tipo mal poderia ser rotulado de “ficção científica”. Corresponde às obras que tomam da “ciência” como nada mais do que pretexto: um chamariz muito oportuno para que prestemos atenção a coisas mais transcendentais. Tais narrativas possuem, via de regra, um caráter mais alegórico do que as primeiras. São fábulas no mais exato sentido do termo: seus elementos denotativos e particulares absolutamente não interessam – tanto é que histórias assim perdem pouco tempo com descrições épicas do espaço narrativo ou com efeitos especiais (no caso do cinema). Toda a significação se concentra nos âmbitos do conotativo e do universal.

Ótimos exemplos são as “ficções” de Andrei Tarkovski: Solaris (1972), Stalker (1979) e O Sacrifício (1986). Pois bem. Eis a família sobrenatural (para usar a expressão do poeta Murilo Mendes) à qual o diretor norte-americano Mark Romanek (de videoclipes e de Retratos de Uma Obsessão / “One Hour Photo” – 2002) se arvorou para dar à luz o seu Não Me Deixe Jamais (“Never Let Me Go”, Reino Unido / EUA, 2010), em exibição na Mostra de SP. Esteticamente, não há qualquer parentesco entre os dois cineastas: a “imagem-tempo” ainda é exclusividade do mestre russo, o qual foi beber em Bergman, Antonioni...

Já o filme de Romanek é o que podemos esperar de um biscoito fino assado sob os cuidados dos departamentos “cult” dos grandes estúdios (no caso, a Fox Searchlight): exige um requinte maior de paladar, mas não faz cuspir quem esteja acostumado a bolachas “passatempo”. Feito sob medida para óscares e globos de outro. Não obstante, vemos na tela uma natureza bucólica como único e acolhedor refúgio de párias em profunda crise existencial; no fora-de-campo, orbita a desumanidade da ciência e o mundo artificial que ela criou. O resumo é tosco, mas eis os ecos tarkovskianos que imaginei para este filme.

O roteiro de Não Me Deixe Jamais é adaptado do romance homônimo do escritor japonês Kazuo Ishiguro, publicado em 2005. Acompanha a curta trajetória de três jovens amigos: a inteligente Kathy (Carey Mulligan), o emotivo Tommy (Andrew Garfield) e a manipuladora Ruth (Keira Knightley), cujas vidas e função social são irremediavelmente determinadas desde o nascimento – ou melhor, desde a sua concepção; infelizmente a morte, para eles, não é aquela esperança que Roger Daltrey canta, na clássica My Generation, do The Who (“Hope I die before get old”).

O filme se divide em três atos: a infância, num bucólico colégio interno para alunos “especiais”; a adolescência, numa colônia rural igualmente remota, chamada apenas de “Cottages” (chalés); o início da fase adulta, quando finalmente terão maiores contatos com o mundo, antes de logo exercerem a razão de seu nascimento e criação. Sabemos que o sistema educacional no mundo ocidental foi, historicamente, se distanciando cada vez mais da vida e do mundo, ao mesmo tempo em que investia mais e mais na sua função de “preparar”, industrialmente, a mão-de-obra para este. Mas é a primeira vez – e muito bem vinda – que vemos a instituição escola sendo comparada simbolicamente a uma fazenda de gado.

Sabendo o quanto suas vidas são controladas e o seu destino, curto, a maior tragédia desses jovens não é procurar (e não conseguir) viver com a maior intensidade possível antes do fim inadiável. Seu desespero é que sequer sabem o que é “viver”, tampouco como viver; e não terão tempo de aprender. As poucas cenas do filme, em que eles exercem de fato, na vida e no mundo, a sua inquestionável, porém engatinhante humanidade (na sexualidade, no amor, na natureza, no contato com a civilização), são de uma força poética simples e potente. Vale a lição da professora que, “subversivamente”, lhes esclareceu a sua condição, para que procurassem viver uma vida “decente”.

Por isso, podemos dizer que Não Me Deixe Jamais é um filme muitíssimo triste, porém, digno. Não é uma ficção científica, porque em momento algum passa pelas cabeças dos protagonistas a ideia de questionar a ordem estabelecida (como em Blade Runner); eles a veem com a mais absoluta e triste naturalidade, assim como nós mesmos nos vemos ao pensar nas vicissitudes que a vida e a natureza nos colocam em frente (principalmente, é claro, nas relações entre o tempo e a morte). Dessa maneira, o drama daqueles personagens é o nosso próprio drama, como a narradora Kathy muito conscientemente afirma. Todos somos mortais e só nos resta fazer o possível com o tempo que nos é dado.

Em vista disso, Kathy não deixa de sentir e admitir até mesmo orgulho pelo “trabalho” que eles fazem. Um crítico malicioso poderia fazer disso uma leitura sócio-política e taxar o filme de reacionário. Mas repito: não se trata de uma ficção científica nos moldes de um Aldous Huxley. O modelo aqui é Stanislaw Lem (o autor do romance Solaris, que inspirou Tarkovski) e suas proucupações metafísicas. Não Me Deixe Jamais não é o drama de uma classe social, no caminho do matadouro, exercendo a função de “gado”. É o drama de todos nós, devorados pelo Cronos soberbo e, ao mesmo tempo, temeroso de que o destronemos.

Um comentário:

Rodrigo disse...

Tem um quê de ficção científica mesclado à premissa que aborda a questão dos relacionamentos humanos. Confesso que achei um filme diferente de outros do gênero que assisti. Amo a atuação de Andrew Garfield - acho ser ele uma futura aposta hollywoodiana.