Irremediavelmente abalado por 500 Dias Com Ela (“500 Days of Summer”, EUA, 2009, de Marc Webb), eu me lembro de ter falado enfaticamente das “realidades humanas” que o filme soube representar de um jeito simples, honesto e profundo. Pois bem. Minhas Mães e Meu Pai (“The Kids Are All Right”, EUA, 2010, de Lisa Cholodenko) chega até nós como mais um exemplo desta forma poética e singela de “educação sentimental” exercida pelo cinema. A fita está em exibição na Mostra de SP e programada para já estrear em circuito no dia 12 de novembro.
O que vemos ali, antes de mais nada, é a vida sossegada, feliz e em perfeita harmonia de uma família não-convencional: um casal de duas mulheres (Nic, vivida por Annette Bening – que merece indicação para um Oscar, ou, pelo menos, para um Globo de Ouro –; e Jules, interpretada por Julianne Moore) e seus dois filhos adolescentes (Laser / Josh Hutcherson e Joni / Mia Wasikowska – a Alice de Tim Burton), concebidos no ventre de cada uma delas com o esperma de um doador anônimo.
Já de início, a maneira como Cholodenko retrata o cotidiano da casa revela o grau de atenção e cuidado profundamente humanos com que a cineasta aborda o seu tema. Ela está pouco interessada em romantizar e glamourizar o universo “alternativo” das pessoas “alternativas” – seu cinema é “indie” apenas no que toca aos custos da produção. Tampouco sua preocupação é fazer aquele cinema “naturalista”, com o bicho-homem refestelando-se na própria ignomínia. A diretora não trabalha com “tipos”; pelo menos, não da maneira como se poderia esperar de um filme “off-Hollywood”.
Em todos os aspectos, Lisa Cholodenko está anos-luz à frente de um Todd Solondz, por exemplo. Suas personagens não são “esquisitas”, “bizarras”, “párias”, “problemáticas”, “disfuncionais”, etc, etc, etc. A naturalidade, a normalidade e até a “caretice” pelas quais a família em questão lembra qualquer outra família que habita o universo urbano contemporâneo podem ser creditadas ao rico discernimento que o filme nos apresenta em relação aos fenômenos e relações humanas no que é a sua essência mais importante.
Para usar um conceito em voga, atualmente, na internet, Lisa Cholodenko procura sabotar, o tempo todo, a single history que o espectador poderia esperar vinda de uma família com duas mães (e nenhum pai). Ou seja, quaisquer preconceitos (e pré-conceitos), qualquer visão previsível, superficial, rígida, e sobretudo única, que se possa ter do assunto “lesbianismo”, é deixada absolutamente de lado pela diretora. Mesmo se tal visão for condescendente e dotada daquela fascinação que produz modas e “hypes”, os quais servirão, no fundo, apenas para erodir a complexidade e diversidade humanas.
Quem quer saber mais sobre os perigos da “história única”, confira este vídeo, no youtube, aqui e aqui. Há uma outra cena, em The Kids Are All Right, que ironiza tais armadilhas de julgamento: quando uma das amigas de Joni (que não parece ser rascista, propriamente dita, nem se julgaria a si mesma como tal, provavelmente) acha que a jovem e bela mulher (negra), com a qual está conversando numa mesa de restaurante, veio da África, só pelo fato de usar um colar “tribal”.
O fato é que Lisa Cholodenko não trabalha em cima de quaisquer rótulos, sejam eles positivos ou negativos. Seu filme não é – e passa longe de ser – uma mera “ação afirmativa” do homossexualismo feminino, da construção de famílias não-convencionais, da produção e consumo de alimentos orgânicos, e de todo o universo “moderno” que poderíamos conectar a esses temas; ainda que os personagens se encaixem, sociologicamente falando, dentro de tais categorias. Contudo, psicologicamente, o buraco é muito mais embaixo (com o perdão do trocadilho).
A cineasta dedica-se a um microrrealismo, que busca – de maneira que, em nenhum momento, deixa de ser problematizadora – as fundações da alma dos indivíduos: seus processos interiores, os comportamentos que resultam destes e as cadeias de resultados e efeitos nas subjetividades alheias. Neste ponto, em que o ser inconsciente de todos os seres humanos pode ser definido como “só sabendo desejar” (no ótimo resumo que Jung faz da psicanálise freudiana), o fato de a personagem em questão ser homem ou mulher, hétero ou homossexual, não passa de mero detalhe, com pouco a acrescentar.
Em uma matéria publicada na edição de julho / agosto da Film Comment, Cholodenko (que, só para constar, é lésbica e vive, atualmente, numa relação estável) diz que é totalmente “quadrada” (“I’m totally square”), ao explicar a sua proposta cinematográfica. Ela afirma que: “My films have been about temptation and the open spirit that takes you away from anything that’s binding. The Kids Are All Right is a meditation on what’s potentially exhilarating in the bind. It’s like a hope film. At least, I’d like that to be true. (...)
I also thought, I’m dealing with this gay two-mom family and I really want to explore those ideas in a way that completely offsets the spectacle of it being a two-mom family.” Traduzindo: “Meus filmes são sobre tentação e sobre o espírito livre que leva você para longe de tudo que seja um compromisso. The Kids Are All Right é uma meditação sobre o que pode ser divertido no compromisso. É um filme de esperança. Pelo menos, eu gostaria que isso fosse verdade. (...)
Eu também pensei: estou lidando com esta família gay de duas mamães e realmente gostaria de explorar tais ideias de um jeito que seja totalmente o contrário do espetáculo que poderia ser uma família com duas mães.” É através dessa esperança, de que fala a diretora, que o filme exerce o seu maior poder no espectador. A educação sentimental de que falei no começo se dá em uma forma seguramente adulta, ou seja, com todas as doses de vicissitudes, complexidades e problemas deste ser que só sabe desejar.
Não obstante todo o realismo (neurótico, que poderia desembocar num pessimismo, ou niilismo, ou coisa pior), a escolha que a diretora e as personagens fazem, e o resultado a que se chega, são ainda acreditar no amor e perseverar na busca da felicidade. O crítico mais impaciente talvez não enxergará essas nuanças e rotulará Cholodenko de “conservadora”, e ponto. Para tais espíritos, eu peço apenas que vejam Tudo Pode Dar Certo (“Whatever Works”, 2009, de Woody Allen), além do já citado 500 Dias Com Ela.
Acredito que estes filmes formam uma linha de direcionamento bem interessante que se está dando, atualmente, à velha comédia romântica norte-americana. De qualquer maneira, o poder da “tentação”, de que falou a cineasta no trecho reproduzido mais acima, usará como principal instrumento, em The Kids Are All Right, a figura do pai anônimo (Paul / Mark Ruffalo), o qual chegará como elemento desestruturador da paz e do equilíbrio da família de “duas mamães”.
Entendamos bem: Paul é uma força benigna em todos os aspectos intrínsecos, a relação de amizade e familiaridade que se cria entre ele, os filhos e as duas mães é absolutamente saudável, legítima, enriquecedora, e mesmo necessária. Não obstante, exercerá um poder destrutivo com o qual será muito difícil lidar, justamente quando o fator “tentação” entrar no jogo (o resto eu não conto). No trato do elemento “desejo” e das tempestades que ele, naturalmente, provoca, Lisa Cholodenko mistura muito bem a comédia de costumes e o drama de personagem.
E, nunca é demais reiterar, o mais importante de tudo é que a cineasta não se esquece de construir e desenvolver as personagens e situações sempre com uma dose revigorante de humanidade, de empatia e simpatia por tudo o que, afinal de contas, não é alheio a pessoa alguma. No que qualquer diretor menos sensível poderia descambar para o psicologismo ou sociologismo, Cholodenko mantém a abertura e a ambiguidade de quem sabe que não faz mais do que representar e compartilhar a vida. Pura e simplesmente.
O que vemos ali, antes de mais nada, é a vida sossegada, feliz e em perfeita harmonia de uma família não-convencional: um casal de duas mulheres (Nic, vivida por Annette Bening – que merece indicação para um Oscar, ou, pelo menos, para um Globo de Ouro –; e Jules, interpretada por Julianne Moore) e seus dois filhos adolescentes (Laser / Josh Hutcherson e Joni / Mia Wasikowska – a Alice de Tim Burton), concebidos no ventre de cada uma delas com o esperma de um doador anônimo.
Já de início, a maneira como Cholodenko retrata o cotidiano da casa revela o grau de atenção e cuidado profundamente humanos com que a cineasta aborda o seu tema. Ela está pouco interessada em romantizar e glamourizar o universo “alternativo” das pessoas “alternativas” – seu cinema é “indie” apenas no que toca aos custos da produção. Tampouco sua preocupação é fazer aquele cinema “naturalista”, com o bicho-homem refestelando-se na própria ignomínia. A diretora não trabalha com “tipos”; pelo menos, não da maneira como se poderia esperar de um filme “off-Hollywood”.
Em todos os aspectos, Lisa Cholodenko está anos-luz à frente de um Todd Solondz, por exemplo. Suas personagens não são “esquisitas”, “bizarras”, “párias”, “problemáticas”, “disfuncionais”, etc, etc, etc. A naturalidade, a normalidade e até a “caretice” pelas quais a família em questão lembra qualquer outra família que habita o universo urbano contemporâneo podem ser creditadas ao rico discernimento que o filme nos apresenta em relação aos fenômenos e relações humanas no que é a sua essência mais importante.
Para usar um conceito em voga, atualmente, na internet, Lisa Cholodenko procura sabotar, o tempo todo, a single history que o espectador poderia esperar vinda de uma família com duas mães (e nenhum pai). Ou seja, quaisquer preconceitos (e pré-conceitos), qualquer visão previsível, superficial, rígida, e sobretudo única, que se possa ter do assunto “lesbianismo”, é deixada absolutamente de lado pela diretora. Mesmo se tal visão for condescendente e dotada daquela fascinação que produz modas e “hypes”, os quais servirão, no fundo, apenas para erodir a complexidade e diversidade humanas.
Quem quer saber mais sobre os perigos da “história única”, confira este vídeo, no youtube, aqui e aqui. Há uma outra cena, em The Kids Are All Right, que ironiza tais armadilhas de julgamento: quando uma das amigas de Joni (que não parece ser rascista, propriamente dita, nem se julgaria a si mesma como tal, provavelmente) acha que a jovem e bela mulher (negra), com a qual está conversando numa mesa de restaurante, veio da África, só pelo fato de usar um colar “tribal”.
O fato é que Lisa Cholodenko não trabalha em cima de quaisquer rótulos, sejam eles positivos ou negativos. Seu filme não é – e passa longe de ser – uma mera “ação afirmativa” do homossexualismo feminino, da construção de famílias não-convencionais, da produção e consumo de alimentos orgânicos, e de todo o universo “moderno” que poderíamos conectar a esses temas; ainda que os personagens se encaixem, sociologicamente falando, dentro de tais categorias. Contudo, psicologicamente, o buraco é muito mais embaixo (com o perdão do trocadilho).
A cineasta dedica-se a um microrrealismo, que busca – de maneira que, em nenhum momento, deixa de ser problematizadora – as fundações da alma dos indivíduos: seus processos interiores, os comportamentos que resultam destes e as cadeias de resultados e efeitos nas subjetividades alheias. Neste ponto, em que o ser inconsciente de todos os seres humanos pode ser definido como “só sabendo desejar” (no ótimo resumo que Jung faz da psicanálise freudiana), o fato de a personagem em questão ser homem ou mulher, hétero ou homossexual, não passa de mero detalhe, com pouco a acrescentar.
Em uma matéria publicada na edição de julho / agosto da Film Comment, Cholodenko (que, só para constar, é lésbica e vive, atualmente, numa relação estável) diz que é totalmente “quadrada” (“I’m totally square”), ao explicar a sua proposta cinematográfica. Ela afirma que: “My films have been about temptation and the open spirit that takes you away from anything that’s binding. The Kids Are All Right is a meditation on what’s potentially exhilarating in the bind. It’s like a hope film. At least, I’d like that to be true. (...)
I also thought, I’m dealing with this gay two-mom family and I really want to explore those ideas in a way that completely offsets the spectacle of it being a two-mom family.” Traduzindo: “Meus filmes são sobre tentação e sobre o espírito livre que leva você para longe de tudo que seja um compromisso. The Kids Are All Right é uma meditação sobre o que pode ser divertido no compromisso. É um filme de esperança. Pelo menos, eu gostaria que isso fosse verdade. (...)
Eu também pensei: estou lidando com esta família gay de duas mamães e realmente gostaria de explorar tais ideias de um jeito que seja totalmente o contrário do espetáculo que poderia ser uma família com duas mães.” É através dessa esperança, de que fala a diretora, que o filme exerce o seu maior poder no espectador. A educação sentimental de que falei no começo se dá em uma forma seguramente adulta, ou seja, com todas as doses de vicissitudes, complexidades e problemas deste ser que só sabe desejar.
Não obstante todo o realismo (neurótico, que poderia desembocar num pessimismo, ou niilismo, ou coisa pior), a escolha que a diretora e as personagens fazem, e o resultado a que se chega, são ainda acreditar no amor e perseverar na busca da felicidade. O crítico mais impaciente talvez não enxergará essas nuanças e rotulará Cholodenko de “conservadora”, e ponto. Para tais espíritos, eu peço apenas que vejam Tudo Pode Dar Certo (“Whatever Works”, 2009, de Woody Allen), além do já citado 500 Dias Com Ela.
Acredito que estes filmes formam uma linha de direcionamento bem interessante que se está dando, atualmente, à velha comédia romântica norte-americana. De qualquer maneira, o poder da “tentação”, de que falou a cineasta no trecho reproduzido mais acima, usará como principal instrumento, em The Kids Are All Right, a figura do pai anônimo (Paul / Mark Ruffalo), o qual chegará como elemento desestruturador da paz e do equilíbrio da família de “duas mamães”.
Entendamos bem: Paul é uma força benigna em todos os aspectos intrínsecos, a relação de amizade e familiaridade que se cria entre ele, os filhos e as duas mães é absolutamente saudável, legítima, enriquecedora, e mesmo necessária. Não obstante, exercerá um poder destrutivo com o qual será muito difícil lidar, justamente quando o fator “tentação” entrar no jogo (o resto eu não conto). No trato do elemento “desejo” e das tempestades que ele, naturalmente, provoca, Lisa Cholodenko mistura muito bem a comédia de costumes e o drama de personagem.
E, nunca é demais reiterar, o mais importante de tudo é que a cineasta não se esquece de construir e desenvolver as personagens e situações sempre com uma dose revigorante de humanidade, de empatia e simpatia por tudo o que, afinal de contas, não é alheio a pessoa alguma. No que qualquer diretor menos sensível poderia descambar para o psicologismo ou sociologismo, Cholodenko mantém a abertura e a ambiguidade de quem sabe que não faz mais do que representar e compartilhar a vida. Pura e simplesmente.
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