A Revista Educação (Editora Segmento) possui uma série especial, chamada “Biblioteca do Professor”, na qual professores universitários e especialistas discutem à luz dos temas educacionais as idéias de grandes pensadores da contemporaneidade. A edição de número 7 trata de Walter Benjamin. Um dos artigos, escrito pelo professor de psicologia Luis Antonio Baptista, faz uma análise benjaminiana do filme documentário Edifício Master (Brasil, 2002), dirigido por Eduardo Coutinho. A película é uma série de entrevistas com os moradores do condomínio em questão, instalado no bairro de Copacabana, Rio de Janeiro. Nos depoimentos, as pessoas expressam suas histórias de vida, suas relações com o lugar onde moram, suas idéias e emoções sobre as mais diversas coisas da vida e do mundo. Transcrevo abaixo o trecho de um parágrafo do texto:
“Consuelo Lins, assistente de direção do documentário, revela-nos, em O Documentário de Eduardo Coutinho, a intervenção da equipe para ‘desprogramar’ o conteúdo dos depoimentos, no intuito de não transformá-los em imagens-existências de uma tele-realidade: ‘Houve momentos nos quais foi preciso defender o entrevistado dele mesmo, em que a lógica do pior – central nos programas sensacionalistas e populares – impôs-se, e o que se ouviu foi a pior história, a maior desgraça, a grande humilhação. Porque o desejo dos moradores, em muitos casos, é o de escapar do isolamento, ganhar visibilidade a qualquer preço. O confronto com esse tipo de exibicionismo, indissociável do voyeurismo de espectador, é incontornável (...). Desprogramar o que estava previsto, produzir furo nos roteiros pré-estabelecidos, ocupar-se com o que ficou de fora dos espetáculos da tele-realidade, essa foi uma tarefa que se impôs como programa mínimo desse documentário de Coutinho’.”
No seio da força deste filme, reside a sua fraqueza. Mesmo com o propósito de “desprogramar”, ainda fica no filme um pouco da “tele-realidade”, perceptível no discurso de alguns dos moradores. Talvez, alguma medida de exibicionismo seja inevitável, é impossível a equipe de filmagem eliminar, por mais que tente, o fato de que a ação e reação da pessoa na frente da câmera será desnaturalizada pelo próprio fato de estar o indivíduo sob a lente e a luz de uma filmagem. A mera presença de uma câmera já interfere de uma maneira incontrolável no resgate do real. Eis o dilema de todo documentário: a precisão documental é simplesmente inatingível. A não ser que se utilize câmeras escondidas – o que despertaria uma série de outros problemas. Gilles Deleuze, em A Imagem-Tempo, apresenta uma solução possível para o impasse:
“A evolução de ambos (Pierre Perrault e Jean Rouch) seria mal entendida se nos contentássemos em alegar a impossibilidade de atingir um real bruto; que a câmera age sobre as situações, e que as personagens reagem à presença da câmera, isso todos sempre souberam, e não perturbava Flaherty ou Leacock, para quem isso já não passava de falsos problemas. Em Rouch como em Perrault, a novidade vem de outras fontes. Ela começa a se exprimir claramente em Rouch em Les Maîtres Fous, quando as personagens do rito, possuídas, bêbadas, espumando, em transe, são primeiramente mostradas em sua realidade cotidiana, na qual são garçons, operários, serventes de pedreiro, assim como tornarão a ser após a cerimônia. O que eram antes...”
Deleuze afirma que o documentário deve mais é aceitar e buscar captar a “ficção” criada pelas próprias personagens no seio do real. O que se opõe ao cinema de ficção não é o cinema do real, mas a “função de fabulação”. É a “função fabuladora dos pobres” que se opõe a uma “verdade” que é sempre a dos dominadores ou colonizadores. O que deve ser destacado é o poder de narração daqueles indivíduos, que produz memória, memória que será transmitida e que encarnará a experiência, as almas e os sonhos de uma coletividade. Para Walter Benjamin, um efeito maléfico da sociedade contemporânea é justamente provocar a extinção da narração (baseada no vivido pelo sujeito ou pelo grupo) e o enfraquecimento da memória. Não importa o quanto a narração-fabulação se aproxime ou fuja da realidade dos fatos, o fundamental é que ela nasce das pessoas comuns, é fabricada pela vida livre, pelas mentes e corações livres das pessoas comuns, das pessoas diversificadas. Ou seja, trata-se de uma cultura de verdade, e não da cultura pasteurizada da chamada indústria cultural.
Em vista disso, se as pessoas do Edifício Máster procuram conquistar a visibilidade na mídia a qualquer preço, o cineasta deve se preocupar mais é em mostrar esse desejo e as maneiras como essas pessoas procuram realizá-lo. Esse seria o documentário. Isso não quer dizer, evidentemente, que o cineasta documentarista deve estimular ou contribuir propositalmente para a “pulsão de celebridade” dos cidadãos anônimos. O cineasta deve adotar a postura serena de procurar apenas fazer o filme, documentando desinteressadamente o que quer que se passe na frente da câmera. Desencanar, essa é a idéia. Mostrar, assim como Jean Rouch, tanto o que as pessoas são quanto o que elas fabulam ser, sem tentar reprimir ou orientar em qualquer sentido as atitudes delas frente à câmera. Isso seria ir contra os princípios mais elementares do cinema documental. É assim que a força de Edifício Master transforma-se em fraqueza. “Defender o entrevistado dele mesmo”... Qualé?
“Consuelo Lins, assistente de direção do documentário, revela-nos, em O Documentário de Eduardo Coutinho, a intervenção da equipe para ‘desprogramar’ o conteúdo dos depoimentos, no intuito de não transformá-los em imagens-existências de uma tele-realidade: ‘Houve momentos nos quais foi preciso defender o entrevistado dele mesmo, em que a lógica do pior – central nos programas sensacionalistas e populares – impôs-se, e o que se ouviu foi a pior história, a maior desgraça, a grande humilhação. Porque o desejo dos moradores, em muitos casos, é o de escapar do isolamento, ganhar visibilidade a qualquer preço. O confronto com esse tipo de exibicionismo, indissociável do voyeurismo de espectador, é incontornável (...). Desprogramar o que estava previsto, produzir furo nos roteiros pré-estabelecidos, ocupar-se com o que ficou de fora dos espetáculos da tele-realidade, essa foi uma tarefa que se impôs como programa mínimo desse documentário de Coutinho’.”
No seio da força deste filme, reside a sua fraqueza. Mesmo com o propósito de “desprogramar”, ainda fica no filme um pouco da “tele-realidade”, perceptível no discurso de alguns dos moradores. Talvez, alguma medida de exibicionismo seja inevitável, é impossível a equipe de filmagem eliminar, por mais que tente, o fato de que a ação e reação da pessoa na frente da câmera será desnaturalizada pelo próprio fato de estar o indivíduo sob a lente e a luz de uma filmagem. A mera presença de uma câmera já interfere de uma maneira incontrolável no resgate do real. Eis o dilema de todo documentário: a precisão documental é simplesmente inatingível. A não ser que se utilize câmeras escondidas – o que despertaria uma série de outros problemas. Gilles Deleuze, em A Imagem-Tempo, apresenta uma solução possível para o impasse:
“A evolução de ambos (Pierre Perrault e Jean Rouch) seria mal entendida se nos contentássemos em alegar a impossibilidade de atingir um real bruto; que a câmera age sobre as situações, e que as personagens reagem à presença da câmera, isso todos sempre souberam, e não perturbava Flaherty ou Leacock, para quem isso já não passava de falsos problemas. Em Rouch como em Perrault, a novidade vem de outras fontes. Ela começa a se exprimir claramente em Rouch em Les Maîtres Fous, quando as personagens do rito, possuídas, bêbadas, espumando, em transe, são primeiramente mostradas em sua realidade cotidiana, na qual são garçons, operários, serventes de pedreiro, assim como tornarão a ser após a cerimônia. O que eram antes...”
Deleuze afirma que o documentário deve mais é aceitar e buscar captar a “ficção” criada pelas próprias personagens no seio do real. O que se opõe ao cinema de ficção não é o cinema do real, mas a “função de fabulação”. É a “função fabuladora dos pobres” que se opõe a uma “verdade” que é sempre a dos dominadores ou colonizadores. O que deve ser destacado é o poder de narração daqueles indivíduos, que produz memória, memória que será transmitida e que encarnará a experiência, as almas e os sonhos de uma coletividade. Para Walter Benjamin, um efeito maléfico da sociedade contemporânea é justamente provocar a extinção da narração (baseada no vivido pelo sujeito ou pelo grupo) e o enfraquecimento da memória. Não importa o quanto a narração-fabulação se aproxime ou fuja da realidade dos fatos, o fundamental é que ela nasce das pessoas comuns, é fabricada pela vida livre, pelas mentes e corações livres das pessoas comuns, das pessoas diversificadas. Ou seja, trata-se de uma cultura de verdade, e não da cultura pasteurizada da chamada indústria cultural.
Em vista disso, se as pessoas do Edifício Máster procuram conquistar a visibilidade na mídia a qualquer preço, o cineasta deve se preocupar mais é em mostrar esse desejo e as maneiras como essas pessoas procuram realizá-lo. Esse seria o documentário. Isso não quer dizer, evidentemente, que o cineasta documentarista deve estimular ou contribuir propositalmente para a “pulsão de celebridade” dos cidadãos anônimos. O cineasta deve adotar a postura serena de procurar apenas fazer o filme, documentando desinteressadamente o que quer que se passe na frente da câmera. Desencanar, essa é a idéia. Mostrar, assim como Jean Rouch, tanto o que as pessoas são quanto o que elas fabulam ser, sem tentar reprimir ou orientar em qualquer sentido as atitudes delas frente à câmera. Isso seria ir contra os princípios mais elementares do cinema documental. É assim que a força de Edifício Master transforma-se em fraqueza. “Defender o entrevistado dele mesmo”... Qualé?
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