Na postagem referente a O Enigma de Kaspar Hauser (1974), eu parti das palavras-chave com que Gilles Deleuze define o cinema de Werner Herzog: as “imagens tácteis” que mostram os “seres sem defesa”, que lembram as “grandes visões dos alucinados”. Pois todos esses elementos também se fazem presentes em O Sobrevivente (“Rescue Dawn”, EUA, 2006), a mais nova fita narrativa do diretor, baseada num documentário seu: Little Dieter Needs to Fly (1997). É a história real do piloto da marinha norte-americana, Dieter Dengler, que é abatido e capturado por forças norte-vietnamitas em 1966 – ou seja, antes de o conflito se tornar uma guerra nas proporções que acabou ganhando.
O filme é uma narrativa que reconstitui a luta de Dengler pela sobrevivência, primeiro ao campo de prisioneiros, depois à selva para onde escapa. E essa narrativa é permeada por imagens “documentais”: imagens de arquivo (no começo do filme) e o uso sistemático da lente grande-angular (uma das marcas registradas de Herzog), que fazem com que o filme caia muito bem tanto em uma exibição da HBO quanto do Discovery Channel. Sei que estarei me repetindo (já disse essas coisas a respeito de Kaspar Hauser e de Woyzeck), mas este filme tem o melhor do cineasta alemão: a fotografia profunda – seja nos planos gerais, seja no uso da grande angular – que conecta numa comunhão incrivelmente fotogênica o indivíduo humano a um dado ambiente, no geral hostil.
A luta de um “ser sem defesa”, mas que na verdade possui uma força até mesmo protéica, contra uma natureza que não é desumana, mas simplesmente inumana, ou seja, indiferente, uma selvageria que elide o homem e seus aspectos que dizemos tão orgulhosamente “humanos”. O indivíduo – romântico – de Herzog está no limiar, no limite entre civilização e barbárie, e só tem a si mesmo a quem recorrer. É o grande solitário. Assim é o herói de “Kaspar Hauser”, de “Woyzeck” (1979), de “O Homem Urso” (2005), e também este Dieter Dengler. Reduzir ao mero psicologismo a dimensão universalmente mítica desta temática tão querida do artista, que faz a sua visão de mundo e sua ideologia, é de uma miopia constrangedora.
No entanto, a crítica adora afirmar e reafirmar os paralelos entre a história de vida do alemão Dengler e do alemão Herzog. Podem até haver, mas não são o mais importante para nós aqui, espectadores. Enfim, é na comunhão fotogênica entre o indivíduo-proteus e o meio hostil e desconhecido a ser desbravado que se realizam as imagens “tácteis”: os pés descalços com que se percorre a selva, os dedos com que se pegam os vermes e os levam à boca (única alimentação), a boca com que se morde uma cobra viva, as mãos postas num rogar inútil aos carrascos; momentos antes da missão, as testas dos pilotos apoiadas na parede metálica da torre de comando do porta-aviões e os braços passados aos ombros uns dos outros, numa oração de boa-sorte.
Em um dado momento das provações (eis o caráter) de Dengler, realiza-se literalmente a “grande visão dos alucinados”. O interesse de Herzog não é pelo exótico, pelo bizarro, pelo selvagem e pelo bárbaro, pelos indivíduos no limite, em situações-limite, com aquela curiosidade mórbida meramente naturalista, científica, e no final das contas dogmaticamente niilista, que faz a cabeça e a alegria de muitos artistas “esclarecidos” e do seu público fiel. Ao vermos um filme de Herzog, sentimos toda a força do Mito, a afirmação do espírito humano acima e independente de todas as coisas e fatos. Dessa maneira, o artista elide também o otimismo ingênuo do “bom selvagem”. É um romantismo maduro que temos aqui (se é que tal classificação seja possível). Que venha mais desse mesmo.
O filme é uma narrativa que reconstitui a luta de Dengler pela sobrevivência, primeiro ao campo de prisioneiros, depois à selva para onde escapa. E essa narrativa é permeada por imagens “documentais”: imagens de arquivo (no começo do filme) e o uso sistemático da lente grande-angular (uma das marcas registradas de Herzog), que fazem com que o filme caia muito bem tanto em uma exibição da HBO quanto do Discovery Channel. Sei que estarei me repetindo (já disse essas coisas a respeito de Kaspar Hauser e de Woyzeck), mas este filme tem o melhor do cineasta alemão: a fotografia profunda – seja nos planos gerais, seja no uso da grande angular – que conecta numa comunhão incrivelmente fotogênica o indivíduo humano a um dado ambiente, no geral hostil.
A luta de um “ser sem defesa”, mas que na verdade possui uma força até mesmo protéica, contra uma natureza que não é desumana, mas simplesmente inumana, ou seja, indiferente, uma selvageria que elide o homem e seus aspectos que dizemos tão orgulhosamente “humanos”. O indivíduo – romântico – de Herzog está no limiar, no limite entre civilização e barbárie, e só tem a si mesmo a quem recorrer. É o grande solitário. Assim é o herói de “Kaspar Hauser”, de “Woyzeck” (1979), de “O Homem Urso” (2005), e também este Dieter Dengler. Reduzir ao mero psicologismo a dimensão universalmente mítica desta temática tão querida do artista, que faz a sua visão de mundo e sua ideologia, é de uma miopia constrangedora.
No entanto, a crítica adora afirmar e reafirmar os paralelos entre a história de vida do alemão Dengler e do alemão Herzog. Podem até haver, mas não são o mais importante para nós aqui, espectadores. Enfim, é na comunhão fotogênica entre o indivíduo-proteus e o meio hostil e desconhecido a ser desbravado que se realizam as imagens “tácteis”: os pés descalços com que se percorre a selva, os dedos com que se pegam os vermes e os levam à boca (única alimentação), a boca com que se morde uma cobra viva, as mãos postas num rogar inútil aos carrascos; momentos antes da missão, as testas dos pilotos apoiadas na parede metálica da torre de comando do porta-aviões e os braços passados aos ombros uns dos outros, numa oração de boa-sorte.
Em um dado momento das provações (eis o caráter) de Dengler, realiza-se literalmente a “grande visão dos alucinados”. O interesse de Herzog não é pelo exótico, pelo bizarro, pelo selvagem e pelo bárbaro, pelos indivíduos no limite, em situações-limite, com aquela curiosidade mórbida meramente naturalista, científica, e no final das contas dogmaticamente niilista, que faz a cabeça e a alegria de muitos artistas “esclarecidos” e do seu público fiel. Ao vermos um filme de Herzog, sentimos toda a força do Mito, a afirmação do espírito humano acima e independente de todas as coisas e fatos. Dessa maneira, o artista elide também o otimismo ingênuo do “bom selvagem”. É um romantismo maduro que temos aqui (se é que tal classificação seja possível). Que venha mais desse mesmo.
3 comentários:
Ainda não assiti ao filme...está na minha lista. Valeu pela crítica.
O Herzog é bem fascinado por personagens como os desse filme. Eu ainda não tive curiosidade para conferir a obra, apesar dos muitos elogios que ela recebeu.
Vale a pena conferir tudo do Herzog! Pena que os documentários mais recentes dele não são fáceis de achar...
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