Jamais cansarei de me surpreender com a experiência proporcionada pelo Cinema. Assistir a The Rolling Stones – Shine a Light (“Shine a Light”, EUA, 2007, dir.: Martin Scorsese) é o mais perto que se chega da sensação de ver, ao vivo, a banda tocar. O filme transmite ao espectador a energia de se estar em um show de rock. O filme produz e esgota na gente essa energia: saímos cansados e realizados da sala de exibição, com as músicas, as luzes, os gestos, o espetáculo na alma. Os cinemas deveriam mais era ter arrancado fora as poltronas e deixar que as pessoas assistissem em pé, dançando, pulando, vibrando, sentindo e exalando por todos os poros o ritual, a celebração do espírito do rock and roll.
“Shine a Light” não é um documentário. É a narrativa dessa liturgia tão peculiar – que talvez somente o católico Scorsese fosse capaz de reconhecer, compreender e captar artisticamente. Os Rolling Stones são as maiores divindades e ao mesmo tempo sacerdotes-chefes desse culto neo-pagão. Sympathy to them! Não há nenhuma outra banda de rock que tenha mantido tamanha longevidade com tal energia. As sexagenárias “pedras rolando” põem no chinelo muitos garotões metidos a besta por aí. Esses veneráveis senhores poderiam ter começado sua carreira exatamente agora, a apresentação mostrada por Scorsese poderia ser a primeira da banda, que ainda assim teríamos que dar grande crédito à sua energia, criatividade, espontaneidade e – por que não? – jovialidade.
É claro que o espetáculo da banda é fruto de décadas de aprimoramento e formalização; um show dos Stones é um evento altamente profissional, preparado e conduzido meticulosamente de acordo com o “figurino” – incluindo aí a atuação da platéia, como o próprio Mick Jagger afirma jocosamente em um dado momento da apresentação. Isso é mostrado claramente no começo do filme, que trata paralelamente da preparação do show pela banda e pela sua equipe, assim como da preparação da filmagem por Scorsese e pela sua equipe. Aliás, o diretor também é personagem desta fita nitidamente narrativa.
Há uma tensão deliciosamente ansiosa, um suspense alegre nas primeiras cenas, sem contar o humor das “tensões” criativas entre a banda e o cineasta, entre o tradicional blasé de Jagger, Richards ou Charlie Watts, e a postura “acelerada”, hiper-ativa de Martin Scorsese, sua fala e sua gesticulação nervosas (mas simpáticas, o diretor é nitidamente fascinado e preocupado com o que faz). Então, começa a apresentação, no Beacon Theatre de Nova Iorque. Cada música conta uma história: fictícia ou não, é a história de épocas, de lugares, de amores, de idéias, de sonhos, de pessoas e de três garotos (mais Ron Wood) que envelheceram juntos fazendo música.
Um exemplo de história: na letra de “Some Girls”, que fez parte do show, Mick Jagger canta “Some girls give me children / I never asked them for” (Algumas garotas me dão filhos / Que eu nunca pedi); no final da música, os versos são: “Some girls give me children / I only made love to her once” (Algumas garotas me dão filhos / Sendo que eu fiz amor com elas uma vez só). Luciana Gimenez que o diga. No filme, temos também a história do encontro de gerações: Jack White e Christina Aguillera que prestarão tributo aos Stones, e os Stones que prestarão tributo a Buddy Guy. Entre as músicas, cenas de arquivo, entrevistas e matérias de TV com a banda em vários momentos da carreira.
Scorsese procura destacar em tais imagens a passagem do tempo, muito através de perguntas-chave que jornalistas faziam nos anos 60 aos Stones, perguntas do tipo: “Vocês imaginavam que iam ter todo esse sucesso e durar tanto tempo?” (isso há uns 40 anos atrás, o que suscita respostas do tipo: “Talvez duremos mais um ou dois anos”, dita por Jagger), “Você se imagina fazendo o que faz aos 60 anos de idade?” (feita a um jovem Mick Jagger). Tais entrevistas captam tanto a humanidade quanto a mitologia dos membros da banda. No palco do show de 2006, o que mais grita é a fotogenia cinematográfica mais pura do ambiente fechado do teatro, o palco, o público, a iluminação, a decoração do set e, principalmente, os gestos, a postura corporal e o discurso cantado dos “sacerdotes”.
Cada um dos Rolling Stones possui uma personalidade, um carisma visual único. Os que mais chamam a atenção são, naturalmente, Mick Jagger e Keith Richards – o Jack Sparrow Sênior. Assim, Shine a Light é um filme digno da arte de Martin Scorsese, pois ele se faz o tempo todo para nos transmitir o que de mais fotogênico e epifânico têm a nos revelar as “Pedras Rolantes”. É um filme apaixonado. Scorsese e os Stones atingem um nível alto de maturidade artística, aquele nível em que todo o profissionalismo e toda a técnica se revestirão naturalmente da espontaneidade do instinto, da intuição; pois Keith Richards – ele mesmo o diz – não pensa quando está no palco. Ele não precisa pensar, apenas sentir, incorporar o espírito do momento. Eis o grande e bem-resolvido artista.
Martin Scorsese promove, nas imagens do show de 2006 e nas imagens históricas do passado, o encontro entre os tempos: os tempos da própria banda, que se tornou o mito que é, os tempos da sociedade nos últimos 45 anos em que têm recebido a banda das maneiras mais diversas: nos anos 60, eles eram presos pela polícia, ou sabatinados por padres, pastores, psicólogos, jornalistas (muito) mais velhos, desejosos de compreender o tão peculiar fenômeno daqueles rapazes tão “rebeldes”; hoje, seu show é apresentado por Bill Clinton, que leva a sogra (mãe de Hillary) para cumprimentar os “Rolling Stones” – a imagem da “média” que aqueles senhores de aspecto tão maltrapilho fazem com a família Clinton e seus convidados (crianças, idosos, etc) é até engraçada. Sentimos o sorrisinho irônico de Scorsese.
Enfim. Em 1968, Jean-Luc Godard levou os Rolling Stones para o cinema, em paralelo com discussões e manifestos das “loucuras” que aconteciam na época, em parte representadas miticamente pelos Stones, em parte paralelas a eles (lembremos que Brian Jones ainda estava vivo). Eis o Sympathy for the Devil de Godard. Em 2007, Martin Scorsese já não precisa relacionar os Rolling Stones a nenhum elemento ou fato “exterior” a eles, pois a sua mitologia está hoje mais do que assentada. Scorsese apresenta a banda apenas em paralelo consigo mesma, com o seu passado, presente e futuro. Eis a simpatia pelo diabo de Scorsese.
“Shine a Light” não é um documentário. É a narrativa dessa liturgia tão peculiar – que talvez somente o católico Scorsese fosse capaz de reconhecer, compreender e captar artisticamente. Os Rolling Stones são as maiores divindades e ao mesmo tempo sacerdotes-chefes desse culto neo-pagão. Sympathy to them! Não há nenhuma outra banda de rock que tenha mantido tamanha longevidade com tal energia. As sexagenárias “pedras rolando” põem no chinelo muitos garotões metidos a besta por aí. Esses veneráveis senhores poderiam ter começado sua carreira exatamente agora, a apresentação mostrada por Scorsese poderia ser a primeira da banda, que ainda assim teríamos que dar grande crédito à sua energia, criatividade, espontaneidade e – por que não? – jovialidade.
É claro que o espetáculo da banda é fruto de décadas de aprimoramento e formalização; um show dos Stones é um evento altamente profissional, preparado e conduzido meticulosamente de acordo com o “figurino” – incluindo aí a atuação da platéia, como o próprio Mick Jagger afirma jocosamente em um dado momento da apresentação. Isso é mostrado claramente no começo do filme, que trata paralelamente da preparação do show pela banda e pela sua equipe, assim como da preparação da filmagem por Scorsese e pela sua equipe. Aliás, o diretor também é personagem desta fita nitidamente narrativa.
Há uma tensão deliciosamente ansiosa, um suspense alegre nas primeiras cenas, sem contar o humor das “tensões” criativas entre a banda e o cineasta, entre o tradicional blasé de Jagger, Richards ou Charlie Watts, e a postura “acelerada”, hiper-ativa de Martin Scorsese, sua fala e sua gesticulação nervosas (mas simpáticas, o diretor é nitidamente fascinado e preocupado com o que faz). Então, começa a apresentação, no Beacon Theatre de Nova Iorque. Cada música conta uma história: fictícia ou não, é a história de épocas, de lugares, de amores, de idéias, de sonhos, de pessoas e de três garotos (mais Ron Wood) que envelheceram juntos fazendo música.
Um exemplo de história: na letra de “Some Girls”, que fez parte do show, Mick Jagger canta “Some girls give me children / I never asked them for” (Algumas garotas me dão filhos / Que eu nunca pedi); no final da música, os versos são: “Some girls give me children / I only made love to her once” (Algumas garotas me dão filhos / Sendo que eu fiz amor com elas uma vez só). Luciana Gimenez que o diga. No filme, temos também a história do encontro de gerações: Jack White e Christina Aguillera que prestarão tributo aos Stones, e os Stones que prestarão tributo a Buddy Guy. Entre as músicas, cenas de arquivo, entrevistas e matérias de TV com a banda em vários momentos da carreira.
Scorsese procura destacar em tais imagens a passagem do tempo, muito através de perguntas-chave que jornalistas faziam nos anos 60 aos Stones, perguntas do tipo: “Vocês imaginavam que iam ter todo esse sucesso e durar tanto tempo?” (isso há uns 40 anos atrás, o que suscita respostas do tipo: “Talvez duremos mais um ou dois anos”, dita por Jagger), “Você se imagina fazendo o que faz aos 60 anos de idade?” (feita a um jovem Mick Jagger). Tais entrevistas captam tanto a humanidade quanto a mitologia dos membros da banda. No palco do show de 2006, o que mais grita é a fotogenia cinematográfica mais pura do ambiente fechado do teatro, o palco, o público, a iluminação, a decoração do set e, principalmente, os gestos, a postura corporal e o discurso cantado dos “sacerdotes”.
Cada um dos Rolling Stones possui uma personalidade, um carisma visual único. Os que mais chamam a atenção são, naturalmente, Mick Jagger e Keith Richards – o Jack Sparrow Sênior. Assim, Shine a Light é um filme digno da arte de Martin Scorsese, pois ele se faz o tempo todo para nos transmitir o que de mais fotogênico e epifânico têm a nos revelar as “Pedras Rolantes”. É um filme apaixonado. Scorsese e os Stones atingem um nível alto de maturidade artística, aquele nível em que todo o profissionalismo e toda a técnica se revestirão naturalmente da espontaneidade do instinto, da intuição; pois Keith Richards – ele mesmo o diz – não pensa quando está no palco. Ele não precisa pensar, apenas sentir, incorporar o espírito do momento. Eis o grande e bem-resolvido artista.
Martin Scorsese promove, nas imagens do show de 2006 e nas imagens históricas do passado, o encontro entre os tempos: os tempos da própria banda, que se tornou o mito que é, os tempos da sociedade nos últimos 45 anos em que têm recebido a banda das maneiras mais diversas: nos anos 60, eles eram presos pela polícia, ou sabatinados por padres, pastores, psicólogos, jornalistas (muito) mais velhos, desejosos de compreender o tão peculiar fenômeno daqueles rapazes tão “rebeldes”; hoje, seu show é apresentado por Bill Clinton, que leva a sogra (mãe de Hillary) para cumprimentar os “Rolling Stones” – a imagem da “média” que aqueles senhores de aspecto tão maltrapilho fazem com a família Clinton e seus convidados (crianças, idosos, etc) é até engraçada. Sentimos o sorrisinho irônico de Scorsese.
Enfim. Em 1968, Jean-Luc Godard levou os Rolling Stones para o cinema, em paralelo com discussões e manifestos das “loucuras” que aconteciam na época, em parte representadas miticamente pelos Stones, em parte paralelas a eles (lembremos que Brian Jones ainda estava vivo). Eis o Sympathy for the Devil de Godard. Em 2007, Martin Scorsese já não precisa relacionar os Rolling Stones a nenhum elemento ou fato “exterior” a eles, pois a sua mitologia está hoje mais do que assentada. Scorsese apresenta a banda apenas em paralelo consigo mesma, com o seu passado, presente e futuro. Eis a simpatia pelo diabo de Scorsese.
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