quinta-feira, abril 03, 2008

O Ser e o Tempo da Poesia


Um dos livros mais belos e inteligentes de teoria / crítica que já tive a oportunidade de ler é O Ser e o Tempo da Poesia, de Alfredo Bosi. É uma obra que focaliza a Literatura, mas a erudição e o interesse humanístico do autor fazem-na transcender para todas as outras formas de arte e expressões da cultura humana: música, artes plásticas, religião, mitologia, filosofia, psicologia, antropologia e – pro que não? – Cinema. Tomo a liberdade de reproduzir abaixo alguns trechos do primeiro capítulo (“Imagem, Discurso”), que discute a natureza da imagem e o como ela será apropriada pelo discurso verbal, particularmente o poético.

“A experiência da imagem, anterior à da palavra, vem enraizar-se no corpo. A imagem é afim à sensação visual. O ser vivo tem, a partir do olho, as formas do sol, do mar, do céu. O perfil, a dimensão, a cor. A imagem é um modo da presença que tende a suprir o contato direto e a manter, juntas, a realidade do objeto em si e a sua existência em nós. O ato de ver apanha não só a aparência da coisa, mas alguma relação entre nós e essa aparência: primeiro e fatal intervalo. Pascal: ‘Figure porte absence et présence’.

(...)

A Teoria da Forma ensina que a imagem tende (para nós) ao estado de sedimento, de quase-matéria posta no espaço da percepção, idêntica a si mesma. Cremos ‘fixar’ o imaginário de um quadro, de um poema, de um romance (e também, por que não?, de um filme, acrescento eu). Quer dizer: é possível pensar em termos de uma constelação, se não de um sistema de imagens, como se pensa em um conjunto de astros. Como se objeto e imagem fossem entes dotados de propriedades homólogas.

Mas é a mesma ciência que nos adverte do engano (parcial) que a identificação supõe. A imagem não decalca o modo de ser do objeto (nem mesmo no cinema, ouso acrescentar), ainda que de alguma forma o apreenda. Porque o imaginado é, a um só tempo, dado e construído. Dado, enquanto matéria. Mas construído, enquanto forma-para o sujeito. Dado: não depende da nossa vontade receber as sensações de luz e cor que o mundo provoca. Mas construído: a imagem resulta de um complicado processo de organização perceptiva que se desenvolve desde a primeira infância.

(...)

As aparências mais ‘superficiais’ já são efeito de um alto grau de estruturação que supõe a existência de forças heterogêneas e em equilíbrio. (...) Os grandes teóricos da percepção procuraram entender o movimento que leva à forma, e concluíram que os caracteres simétrico / assimétrico, regular / irregular, simples / complexo, claro / escuro, das imagens dependem da situação de equilíbrio – ou não – de forças óticas e psíquicas que interagem em um dado campo perceptual.

(...)

Para Santo Agostinho, o olho é o mais espiritual dos sentidos. E, por trás de Santo Agostinho, todo o platonismo reporta a idéia à visão. Conhecendo por mimese, mas de longe, sem a absorção imediata da matéria, o olho capta o objeto sem tocá-lo, degustá-lo, cheirá-lo, degluti-lo. Intui e compreende sinteticamente, constrói a imagem não por assimilação, mas por similitudes e analogias. Daí, o caráter de hiato, de distância, terrivelmente presente às vezes, que a imagem detém; daí, o fascínio com que o homem procura achegar-se à sua enganosa substancialidade.”

Agora há pouco, preparando uma aula, assisti (mais uma vez) a uma cena de Apocalipse Now (EUA, 1979), talvez o meu filme predileto. A cena trata do desembarque do grupo do Capitão Willard (Martin Sheen) numa praia que acaba de ser tomada pelas forças norte-americanas. Logo em seguida, chega o oficial responsável por toda a operação, o impagável Coronel Killgore (ao pé da letra: “matar – kill; sangue coagulado – gore”), interpretado magistralmente por Robert Duvall. Toda a cena descreve o cenário de fim de mundo – “apocalipse agora” daquela pós-batalha. Poucas vezes se viu na História do Cinema a imagem sendo usada tão enfaticamente em seu estado de matéria, com todo o peso e a fascinação do seu caráter objetivo, ao mesmo tempo em que se desvenda e se destaca nela o seu aspecto mais psíquico, mais subjetivo.

Poucas vezes uma imagem tão real, aparentemente tão natural e espontânea, quase instintiva / animalesca, ou até mesmo inanimada, foi ao mesmo tempo tão carregada de idéia, de emoção, de vontade, de alma (anima). Sabemos que a imagem terrível da guerra é uma construção, das mais “complexas” que a espécie humana já produziu; mas tal construção, em Francis Ford Coppola, reveste-se (ou disfarça-se) de uma naturalidade assombrosa, de uma verdade axiomática quase que metafísica. É o momento, dentro da cena em questão, em que uma equipe de TV filma a chegada dos soldados, enquanto o repórter-diretor (interpretado não por acaso pelo próprio Coppola) grita aos combatentes para agirem “naturalmente, como se estivessem combatendo, pois é para a TV”. O humor negro de Coppola, o bruxo do Cinema. Talvez aí resida o poder da imagem no cinema de Coppola: o poder da epifania.

É claro que aqui temos uma epifania negativa, niilista (se é que isso é concebível). A imagem que, disfarçando-se de verdadeira, revela-se falsa, está presente no filme inteiro. Mas no fundo, Coppola não é niilista, pois seus filmes são dotados de grande religiosidade: mas é a de um catolicismo jansenista. Nunca, nunca mais me esquecerei da imagem da missa sendo celebrada no meio do caos pós-batalha: o padre consagrando a eucaristia para fiéis soldados ajoelhados enquanto helicópteros voam ao redor (um deles “rebocando” uma vaca viva), a fumaça colorida e surreal do sinalizadores tomando conta de todo o ambiente do crepúsculo na aldeia praiana recém-destruída, corpos de combatentes e civis mortos, retalhados, agonizantes, feridos, o Coronel Killgore só pensando em resolver logo as “pendências” para cair nas ondas e surfar...

2 comentários:

Lorde David disse...

"Killgore" no chiste do nome é como o o nazista Dr. "EstranhoAmor" de uma das obras-primas de Kubrick: Dr. Fantástico. E tenho boas lembranças da primeira vez que li este livro do Bosi, especialmente do capítulo mencionado, que traz esta citação muito poética de Pascal: a imagem traz ausência e presença.

André Renato disse...

Bosi e Coppola são dois loucos da melhor estirpe!