Clint Eastwood é o cineasta mais clássico em atividade. Clássico num sentido bem específico: seus filmes são tão equilibrados, que a experiência de contemplá-los compara-se à vivência que se tem de uma obra da antiguidade clássica greco-romana. Todos os elementos são bem dosados e relacionados de forma significativa: a sobriedade narrativa e técnica ao lado da forte emoção de que se carregam os fatos e personagens mostrados; esses dois elementos magistralmente conectados à preocupação de se estudar um acontecimento: desconstruindo-o de sua estrutura hipertrofiada – caso do mito do “herói” em A Conquista da Honra – ou construindo-o a partir do pouco que se tem sobre ele – caso das Cartas de Iwo Jima. No primeiro caso, trata-se de um fato, ou visão sobre um fato, que já está presente e inquestionavelmente consolidada por mais de 60 anos: a missão de Eastwood torna-se, então, fazer com que se vejam os elementos humanos – específicos, concretos e inalienáveis – de que se compõe o mito, e que muitas vezes acabam escondidos por trás de sua abstração generalizante. No segundo caso, temos a abstração da linguagem verbal das cartas, que referenciam com maior distância do que o faz a imagem fotográfica mítica os mesmos elementos humanos específicos, concretos e inalienáveis de qualquer acontecimento histórico, especialmente em se tratando de uma guerra; em Cartas de Iwo Jima, ainda há o agravante de serem cartas só recentemente descobertas de soldados (que já se sabiam) derrotados, mortos e sem o apoio de uma mitologia nacional de 60 anos em torno deles.
Entendemos assim a missão de Clint Eastwood: aproximar-nos um pouco mais da humanidade em todas as situações que são no fundo humanas, com carinho e cuidado, em especial todas as vezes em que tal humanidade parece estar relegada ao segundo plano. Junte-se essa preocupação ao caráter classicizante de sua realização cinematográfica e teremos aí um grande artista no sentido antigo do termo. Não que ele deva ser imitado ou visto como modelo, mas o Sr. Eastwood deve ser uma das lições fundamentais a serem aprendidas por jovens cineastas de espírito indômito. Repito: o equilíbrio e o ar de sabedoria anciã que sentimos em filmes como Cartas de Iwo Jima é o que faz a delícia da experiência de se ver tais obras. Tudo sem arrogância, sem pedantismo, mas também sem frivolidade. O meio-tom da narrativa, por um lado sem ser grandiloqüente, por outro desprovida de condescendência romântica, é a melhor solução para um filme de investigação histórica: épico e lírico a um só tempo, aparando as arestas supérfluas e excessos de ambos os gêneros. Um cineasta com menos sabedoria ou com mão mais pesada, advertida ou inadvertidamente despencaria para a tese ou para o folhetim.
Sun Tzu, na Arte da Guerra, traz a lição de se conhecer o inimigo. Esse fator, certamente, pode definir em alguns casos a vitória ou a derrota: lembramos do cenário recente, em que os militares norte-americanos, que buscam essencialmente sobreviver à guerra e voltarem são e salvos para suas casas e suas famílias, não sabem como enfrentar guerrilheiros iraquianos islâmicos para quem a morte em batalha é a maior das recompensas, para quem não existe “essa” de voltar para casa, tanto porque eles já estão em “casa” e é melhor morrer defendendo suas casa do que vê-la ocupada por um invasor. Se o invasor não compreende isso – tanto porque o ponto de vista dele é bem diferente – já dá um grande passo rumo à derrota. Foi o mesmo no Vietnã. Mas e quando, buscando conhecer o inimigo, o outro, acabamos por encontrar um reflexo de nós mesmos? Nesse estágio, desmoronam-se – ou terminam de desmoronar – quaisquer motivos, ideologias, causas, necessidades, obrigações, direitos ou deveres que temos de lutar. Quando nos confrontamos com o aspecto humano mais essencial da guerra, ou seja, indivíduo contra indivíduo no campo de batalha, tudo muda de figura. Em Cartas de Iwo Jima, temos o exército japonês defensor de seu próprio solo sagrado; mas esse solo – sagrado na cultura japonesa – não passa de uma ilhota inóspita, com cheiro constante de enxofre (conforme nos é explicado no começo de A Conquista da Honra): é um cenário perfeito para um inferno marcial. Os soldados japoneses sentem-se ali tão distantes de seus lares e de seu mundo quanto os norte-americanos. É então que os princípios da guerra se desfazem. A cena em que o oficial Barão Nishi (Tsuyoshi Ihara) lê para os seus homens a carta escrita pela mãe do soldado americano capturado e tratado por ele, mas que acabara de falecer, é tocante e significativa: testemunhamos a derrocada final do moral da tropa nos olhares daqueles soldados que reconhecem que o “inimigo” não passa de um garoto como eles, com uma mãe como as deles, que diz inclusive as mesmas palavras de recomendação: “faça o que é certo porque é certo”.
Descobrindo essa verdade, a guerra perde o sentido. Os altos oficiais podem dizer que os americanos são covardes, que não têm a força de vontade e disciplina dos japoneses, que não estão dispostos a morrer pelo seu país e pelo imperador (o costume do suicídio como morte honrosa quando a vitória já não é possível e que é mostrado de maneira contundente e comovente em pelo menos três grandes cenas do filme), e que apesar de terem a superioridade numérica e tecnológica, os japoneses têm essa vantagem “espiritual” na defesa de Iwo Jima. Mas esse discurso cai por terra quando se conhece o soldado Sam e a carta de sua mãe, quando se está realmente perdendo a batalha, ainda mais quando se é convocado para a guerra à força. Nesse momento, os valores humanos mais essenciais prevalecem sobre os nacionais. Entendemos a desesperada revolta do jovem soldado Saigo (Kazunari Ninomiya), cercado por norte-americanos e mesmo assim brandindo a sua pá, não como um último ato de patriotismo, mas como defesa da honra do general (Kuribayashi) que ele admirava e que tinha como dever de amizade enterrar (foi o pedido do próprio general), após ver a sua pistola (muito cara ao general) na cintura de um soldado americano, como mero espólio de guerra. Essas questões não foram, é claro, descobertas por Clint Eastwood ou pelo roteirista Paul Haggis; estão presentes em outros filmes de guerra. Eu, particularmente, tive meu primeiro contato com elas aos sete anos de idade, em um livro infanto-juvenil (cujo título infelizmente não lembro) que narrava as aventuras de um ganso atrapalhado na guerra. Entretanto, a maneira como Eastwood coloca tais idéias em filme é o que há de especial.
Entendemos assim a missão de Clint Eastwood: aproximar-nos um pouco mais da humanidade em todas as situações que são no fundo humanas, com carinho e cuidado, em especial todas as vezes em que tal humanidade parece estar relegada ao segundo plano. Junte-se essa preocupação ao caráter classicizante de sua realização cinematográfica e teremos aí um grande artista no sentido antigo do termo. Não que ele deva ser imitado ou visto como modelo, mas o Sr. Eastwood deve ser uma das lições fundamentais a serem aprendidas por jovens cineastas de espírito indômito. Repito: o equilíbrio e o ar de sabedoria anciã que sentimos em filmes como Cartas de Iwo Jima é o que faz a delícia da experiência de se ver tais obras. Tudo sem arrogância, sem pedantismo, mas também sem frivolidade. O meio-tom da narrativa, por um lado sem ser grandiloqüente, por outro desprovida de condescendência romântica, é a melhor solução para um filme de investigação histórica: épico e lírico a um só tempo, aparando as arestas supérfluas e excessos de ambos os gêneros. Um cineasta com menos sabedoria ou com mão mais pesada, advertida ou inadvertidamente despencaria para a tese ou para o folhetim.
Sun Tzu, na Arte da Guerra, traz a lição de se conhecer o inimigo. Esse fator, certamente, pode definir em alguns casos a vitória ou a derrota: lembramos do cenário recente, em que os militares norte-americanos, que buscam essencialmente sobreviver à guerra e voltarem são e salvos para suas casas e suas famílias, não sabem como enfrentar guerrilheiros iraquianos islâmicos para quem a morte em batalha é a maior das recompensas, para quem não existe “essa” de voltar para casa, tanto porque eles já estão em “casa” e é melhor morrer defendendo suas casa do que vê-la ocupada por um invasor. Se o invasor não compreende isso – tanto porque o ponto de vista dele é bem diferente – já dá um grande passo rumo à derrota. Foi o mesmo no Vietnã. Mas e quando, buscando conhecer o inimigo, o outro, acabamos por encontrar um reflexo de nós mesmos? Nesse estágio, desmoronam-se – ou terminam de desmoronar – quaisquer motivos, ideologias, causas, necessidades, obrigações, direitos ou deveres que temos de lutar. Quando nos confrontamos com o aspecto humano mais essencial da guerra, ou seja, indivíduo contra indivíduo no campo de batalha, tudo muda de figura. Em Cartas de Iwo Jima, temos o exército japonês defensor de seu próprio solo sagrado; mas esse solo – sagrado na cultura japonesa – não passa de uma ilhota inóspita, com cheiro constante de enxofre (conforme nos é explicado no começo de A Conquista da Honra): é um cenário perfeito para um inferno marcial. Os soldados japoneses sentem-se ali tão distantes de seus lares e de seu mundo quanto os norte-americanos. É então que os princípios da guerra se desfazem. A cena em que o oficial Barão Nishi (Tsuyoshi Ihara) lê para os seus homens a carta escrita pela mãe do soldado americano capturado e tratado por ele, mas que acabara de falecer, é tocante e significativa: testemunhamos a derrocada final do moral da tropa nos olhares daqueles soldados que reconhecem que o “inimigo” não passa de um garoto como eles, com uma mãe como as deles, que diz inclusive as mesmas palavras de recomendação: “faça o que é certo porque é certo”.
Descobrindo essa verdade, a guerra perde o sentido. Os altos oficiais podem dizer que os americanos são covardes, que não têm a força de vontade e disciplina dos japoneses, que não estão dispostos a morrer pelo seu país e pelo imperador (o costume do suicídio como morte honrosa quando a vitória já não é possível e que é mostrado de maneira contundente e comovente em pelo menos três grandes cenas do filme), e que apesar de terem a superioridade numérica e tecnológica, os japoneses têm essa vantagem “espiritual” na defesa de Iwo Jima. Mas esse discurso cai por terra quando se conhece o soldado Sam e a carta de sua mãe, quando se está realmente perdendo a batalha, ainda mais quando se é convocado para a guerra à força. Nesse momento, os valores humanos mais essenciais prevalecem sobre os nacionais. Entendemos a desesperada revolta do jovem soldado Saigo (Kazunari Ninomiya), cercado por norte-americanos e mesmo assim brandindo a sua pá, não como um último ato de patriotismo, mas como defesa da honra do general (Kuribayashi) que ele admirava e que tinha como dever de amizade enterrar (foi o pedido do próprio general), após ver a sua pistola (muito cara ao general) na cintura de um soldado americano, como mero espólio de guerra. Essas questões não foram, é claro, descobertas por Clint Eastwood ou pelo roteirista Paul Haggis; estão presentes em outros filmes de guerra. Eu, particularmente, tive meu primeiro contato com elas aos sete anos de idade, em um livro infanto-juvenil (cujo título infelizmente não lembro) que narrava as aventuras de um ganso atrapalhado na guerra. Entretanto, a maneira como Eastwood coloca tais idéias em filme é o que há de especial.
O general Kuribayashi (Ken Watanabe) é o que melhor sabe a insensatez daquela guerra: conhecedor, antigo amigo e admirador dos EUA, é o que mais “conhece o inimigo”, mas justamente esse conhecimento mina a sua vontade de lutar, tendo ainda o agravante de não receber quaisquer esforços do seu próprio país para a defesa da ilha. Mesmo assim, dá tudo de si ao serviço do Imperador. É uma personagem magnífica e magnificamente interpretada por Watanabe. As relações que se estabelecem entre ele e o soldado Saigo fazem parte daquele equilíbrio belo e significativo do cinema de Eastwood. Um filme assim, passando-se naquela ilha, imagem do inferno e solo sagrado, palco (com tanta significação e coerência que até parece obra de ficção, mas é real) de um drama complexo e contraditório como a própria humanidade, de vôo épico e mergulho lírico, adquire uma grandeza transcendente própria da tragédia – que, aliás, é outro elemento da dimensão clássica nos filmes de Eastwood, presente de maneira mais exemplar em Sobre Meninos e Lobos (“Mystic River”, 2003) – apesar da humildade e da sobriedade do estilo do diretor. Mas é isso mesmo o que o torna dignamente clássico e admirável.
2 comentários:
Andrus!!!
Pare tudo que está fazendo e VEJA o curta que encontrei no youtube que postei em meu blog!!!!!!!!!
bacana seu blog, não o conhecia... abraço
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