Como exemplo do aspecto mais peculiar na obra de Machado de Assis, reproduzo o trecho de um outro romance – Memórias Póstumas de Brás Cubas – mas cuja ironia é da mesma natureza que em Dom Casmurro:
“Talvez pareça excessivo o escrúpulo do Cotrim, a quem não souber que ele possuía um caráter ferozmente honrado. (...) Argüiam-no de avareza, e cuido que tinham razão; mas a avareza é apenas a exageração de uma virtude e as virtudes devem ser como os orçamentos: melhor é o saldo que o déficit. Como era muito seco de maneiras tinha inimigos, que chegavam a acusá-lo de bárbaro. O único fato alegado neste particular era o de mandar com freqüência escravos ao calabouço, donde eles desciam a escorrer sangue; mas, além de que ele só mandava os perversos e os fujões, ocorre que, tendo longamente contrabandeado em escravos, habituara-se de certo modo ao trato um pouco mais duro que esse gênero de negócio requeria, e não se pode honestamente atribuir à índole original de um homem o que é puro efeito de relações sociais.”
Aqui, Brás Cubas procura defender o seu cunhado Cotrim. Mas os seus argumentos são um mais absurdo do que o outro. Neste pequeno trecho se acha incrivelmente concentrada toda a falácia e a hipocrisia, enfim, a desfaçatez que nossas elites historicamente possuem – como se pode ver. O fato de não se poder “honestamente atribuir à índole original de um homem o que é puro efeito de relações sociais” é exatamente o argumento utilizado pelos criminosos nazistas no tribunal de Nuremberg: “eu só estava cumprindo ordens...” Quantas barbaridades não se fazem até hoje sob a justificativa de que “é apenas o meu trabalho...”? Entretanto, o mais importante de atentarmos aqui é: Quantas pessoas, hoje, que tenham o mesmo caráter, ideologia e (ou) classe social de Cotrim e de Brás Cubas, não concordariam com a argumentação do narrador, e assim, passariam longe de entender de fato a literatura de Machado de Assis?
Enfim, o cinema. Na “silver screen” também temos (raros) exemplos da ironia e do sarcasmo de Goya e de Machado de Assis. O exemplo que, para mim, é mais evidente, encontra-se no longa Tropas Estelares (“Starship Troopers”, EUA, 1997, dir.: Paul Verhoeven). Para muitos, este será apenas um filme de ação desprezível e tolo, apegado a efeitos especiais e ao caráter épico mais pueril; para outros, que o assistirão com olhos mais perscrutadores, esta será uma produção descaradamente “nazista”, que faz a apologia de uma sociedade futura dominada pelo militarismo beligerante que busca sempre “bodes expiatórios”. Estes últimos espectadores trarão como argumento o fato de alguns planos de Tropas Estelares serem nitidamente inspirados em filmes de Leni Riefenstahl, a “cineasta de Hitler”. Contudo, alguns espectadores – com visão ainda mais profunda e mais sensata – reconhecerão a sutil ridicularização que Paul Verhoeven faz de toda uma cultura que é, no fundo, nazi-fascista. O diretor de Robocop (outro filme profundamente sarcástico) critica com muita ironia uma mentalidade muito próxima da dos falcões de George W. Bush, a partir de um de seus maiores veículos de expressão na cultura de massas: o filme hollywoodiano de ação, de guerra, de efeitos especiais. Assim, ele acaba ironizando também esse mesmo tipo de cinema. Temos que bater palmas para tal façanha, que está muitos anos-luz à frente da sisudez pretensiosa e intelectualizante de películas como Dogville.
Os personagens de Tropas Estelares são tão frívolos quanto Brás Cubas ou quanto aparenta ser o Rei Ferdinand VII. Paul Verhoeven usa o filme de caráter épico para desconstruir a si mesmo – desconstruindo também a cultura por trás dele – assim como Machado de Assis usa o romance folhetinesco com a mesma finalidade e Francisco Goya usa o retrato palaciano para os mesmos fins desmascaradores.
No entanto, ainda há tantas pessoas que acham que um “robocop” seria a solução perfeita para os problemas de criminalidade e violência no Brasil...
“Talvez pareça excessivo o escrúpulo do Cotrim, a quem não souber que ele possuía um caráter ferozmente honrado. (...) Argüiam-no de avareza, e cuido que tinham razão; mas a avareza é apenas a exageração de uma virtude e as virtudes devem ser como os orçamentos: melhor é o saldo que o déficit. Como era muito seco de maneiras tinha inimigos, que chegavam a acusá-lo de bárbaro. O único fato alegado neste particular era o de mandar com freqüência escravos ao calabouço, donde eles desciam a escorrer sangue; mas, além de que ele só mandava os perversos e os fujões, ocorre que, tendo longamente contrabandeado em escravos, habituara-se de certo modo ao trato um pouco mais duro que esse gênero de negócio requeria, e não se pode honestamente atribuir à índole original de um homem o que é puro efeito de relações sociais.”
Aqui, Brás Cubas procura defender o seu cunhado Cotrim. Mas os seus argumentos são um mais absurdo do que o outro. Neste pequeno trecho se acha incrivelmente concentrada toda a falácia e a hipocrisia, enfim, a desfaçatez que nossas elites historicamente possuem – como se pode ver. O fato de não se poder “honestamente atribuir à índole original de um homem o que é puro efeito de relações sociais” é exatamente o argumento utilizado pelos criminosos nazistas no tribunal de Nuremberg: “eu só estava cumprindo ordens...” Quantas barbaridades não se fazem até hoje sob a justificativa de que “é apenas o meu trabalho...”? Entretanto, o mais importante de atentarmos aqui é: Quantas pessoas, hoje, que tenham o mesmo caráter, ideologia e (ou) classe social de Cotrim e de Brás Cubas, não concordariam com a argumentação do narrador, e assim, passariam longe de entender de fato a literatura de Machado de Assis?
Enfim, o cinema. Na “silver screen” também temos (raros) exemplos da ironia e do sarcasmo de Goya e de Machado de Assis. O exemplo que, para mim, é mais evidente, encontra-se no longa Tropas Estelares (“Starship Troopers”, EUA, 1997, dir.: Paul Verhoeven). Para muitos, este será apenas um filme de ação desprezível e tolo, apegado a efeitos especiais e ao caráter épico mais pueril; para outros, que o assistirão com olhos mais perscrutadores, esta será uma produção descaradamente “nazista”, que faz a apologia de uma sociedade futura dominada pelo militarismo beligerante que busca sempre “bodes expiatórios”. Estes últimos espectadores trarão como argumento o fato de alguns planos de Tropas Estelares serem nitidamente inspirados em filmes de Leni Riefenstahl, a “cineasta de Hitler”. Contudo, alguns espectadores – com visão ainda mais profunda e mais sensata – reconhecerão a sutil ridicularização que Paul Verhoeven faz de toda uma cultura que é, no fundo, nazi-fascista. O diretor de Robocop (outro filme profundamente sarcástico) critica com muita ironia uma mentalidade muito próxima da dos falcões de George W. Bush, a partir de um de seus maiores veículos de expressão na cultura de massas: o filme hollywoodiano de ação, de guerra, de efeitos especiais. Assim, ele acaba ironizando também esse mesmo tipo de cinema. Temos que bater palmas para tal façanha, que está muitos anos-luz à frente da sisudez pretensiosa e intelectualizante de películas como Dogville.
Os personagens de Tropas Estelares são tão frívolos quanto Brás Cubas ou quanto aparenta ser o Rei Ferdinand VII. Paul Verhoeven usa o filme de caráter épico para desconstruir a si mesmo – desconstruindo também a cultura por trás dele – assim como Machado de Assis usa o romance folhetinesco com a mesma finalidade e Francisco Goya usa o retrato palaciano para os mesmos fins desmascaradores.
No entanto, ainda há tantas pessoas que acham que um “robocop” seria a solução perfeita para os problemas de criminalidade e violência no Brasil...
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