O pintor espanhol Francisco Goya (1746-1828) é um daqueles artistas cuja peculiar visão de mundo e de além-mundo não tem piedade para com os nossos olhos: seus quadros conjuram imagens que, quando familiares, concentram-se em aspectos digamos “incômodos” (a feiúra, o grotesco, o vazio espiritual, a violência, a mesquinhez); quando, por outro lado, o pintor dá tintas à sua imaginação fantástica, somos presenteados com as mais delirantes visões de um maravilhoso assustador (como o seu “gigante” na beira do mundo).
E. H. Gombrich diz, a respeito dos retratos pintados pelo mestre espanhol – como o do Rei Ferdinand VII, reproduzido acima: “Ele faz as suas expressões (as das pessoas retratadas) revelarem toda a vaidade e feiúra, a sua ganância e o seu vazio. Nenhum pintor de aristocratas, antes ou depois dele, chegou a deixar um registro assim de seus patronos”.
Veja-se como o historiador interliga os vocábulos “vaidade” e “feiúra”, como se a feiúra decorresse da vaidade, ou como se a vaidade não se importasse com a presença da feiúra para dominar o ânimo de uma pessoa. Quantos artistas, de qualquer das diferentes formas de arte representativa (pintura, escultura, teatro, literatura, fotografia e cinema), foram tão a fundo, ou sequer tiveram a preocupação de desmascarar a pequenez travestida de grandeza do espírito humano, especialmente em determinadas classes sociais? Resposta ainda mais difícil terá a seguinte pergunta: Qual é a parcela do público que perceberá e – mais difícil ainda – apreciará o sentido crítico dos retratos de Goya? Acredito que poucas pessoas. Será que o próprio Rei Ferdinand VII deu-se conta da “zombaria” que Goya perpetrou em seu retrato? Também acredito que não; caso contrário, o retrato muito provavelmente não teria sido aceito nem ficaria conhecido.
Eis a fina, sutil ironia praticada por Goya: o ridículo das pessoas impede que elas reconheçam o seu próprio ridículo, captado em belas tintas pelo grande artista. Não tenho dúvida de que o Rei Ferdinand VII achou o seu retrato muito “lisonjeiro”. Repito: para que haja tal efeito, a ironia tem que ser muito sutil. Se olharmos para o quadro do Rei Ferdinand VII de uma certa distância (ou se olharmos para uma reprodução pequena, como é o caso aqui), o que mais nos chamará a atenção é a postura majestosa do rei, em seu majestoso traje real. Os mais sensatos já poderão perceber aí a vaidade vazia e insolente, porém, os partidários ideológicos e culturais do rei ficarão fascinados com a “grandeza” real. Agora, ao olharmos com bastante atenção para os detalhes do rosto de Ferdinand VII (a curva dos olhos, da boca, o nariz, as bochechas coradas e até mesmo o cabelo caído sobre a testa), perceberemos com bastante clareza “a vaidade e a feiúra, a ganância e o vazio”. O rosto de Ferdinand VII revela somente um fidalgo mimado e petulante.
Será que um “fidalgo mimado e petulante” de nosso próprio tempo, ao ver a pintura acima, seria capaz de reconhecer e aceitar esse fato? Afirmo mais uma vez que (provavelmente) não, e como argumento cito a recepção que a obra do grande escritor brasileiro Machado de Assis teve em sua época.
E. H. Gombrich diz, a respeito dos retratos pintados pelo mestre espanhol – como o do Rei Ferdinand VII, reproduzido acima: “Ele faz as suas expressões (as das pessoas retratadas) revelarem toda a vaidade e feiúra, a sua ganância e o seu vazio. Nenhum pintor de aristocratas, antes ou depois dele, chegou a deixar um registro assim de seus patronos”.
Veja-se como o historiador interliga os vocábulos “vaidade” e “feiúra”, como se a feiúra decorresse da vaidade, ou como se a vaidade não se importasse com a presença da feiúra para dominar o ânimo de uma pessoa. Quantos artistas, de qualquer das diferentes formas de arte representativa (pintura, escultura, teatro, literatura, fotografia e cinema), foram tão a fundo, ou sequer tiveram a preocupação de desmascarar a pequenez travestida de grandeza do espírito humano, especialmente em determinadas classes sociais? Resposta ainda mais difícil terá a seguinte pergunta: Qual é a parcela do público que perceberá e – mais difícil ainda – apreciará o sentido crítico dos retratos de Goya? Acredito que poucas pessoas. Será que o próprio Rei Ferdinand VII deu-se conta da “zombaria” que Goya perpetrou em seu retrato? Também acredito que não; caso contrário, o retrato muito provavelmente não teria sido aceito nem ficaria conhecido.
Eis a fina, sutil ironia praticada por Goya: o ridículo das pessoas impede que elas reconheçam o seu próprio ridículo, captado em belas tintas pelo grande artista. Não tenho dúvida de que o Rei Ferdinand VII achou o seu retrato muito “lisonjeiro”. Repito: para que haja tal efeito, a ironia tem que ser muito sutil. Se olharmos para o quadro do Rei Ferdinand VII de uma certa distância (ou se olharmos para uma reprodução pequena, como é o caso aqui), o que mais nos chamará a atenção é a postura majestosa do rei, em seu majestoso traje real. Os mais sensatos já poderão perceber aí a vaidade vazia e insolente, porém, os partidários ideológicos e culturais do rei ficarão fascinados com a “grandeza” real. Agora, ao olharmos com bastante atenção para os detalhes do rosto de Ferdinand VII (a curva dos olhos, da boca, o nariz, as bochechas coradas e até mesmo o cabelo caído sobre a testa), perceberemos com bastante clareza “a vaidade e a feiúra, a ganância e o vazio”. O rosto de Ferdinand VII revela somente um fidalgo mimado e petulante.
Será que um “fidalgo mimado e petulante” de nosso próprio tempo, ao ver a pintura acima, seria capaz de reconhecer e aceitar esse fato? Afirmo mais uma vez que (provavelmente) não, e como argumento cito a recepção que a obra do grande escritor brasileiro Machado de Assis teve em sua época.
A ironia na literatura de Machado de Assis (1839-1908) é a tradução mais perfeita da ironia na pintura de Goya. Como o mestre espanhol, o nosso “bruxo” procurou desmascarar impiedosamente as classes dominantes no Brasil imperial e escravocrata. Contudo, esse desmascarar só passou a ser compreendido uns 50 anos após a morte do escritor. Quando “caiu a ficha” para os historiadores e críticos literários, Machado passou de escritor medíocre a maior e mais revolucionário escritor brasileiro de todos os tempos (!) Peguemos o famoso romance Dom Casmurro: até hoje, para algumas pessoas, Capitu é a “vilã” da história; é difícil reconhecer a vilania do ciúmes e do machismo de Bentinho porque muitos homens e mulheres também são ciumentos e machistas. Fica mais difícil ainda as pessoas julgarem Bentinho, se observarmos o fato de que ele se apresenta o tempo todo como um cavalheiro culto, bondoso, ingênuo, bem-educado e bem-nascido. Por outro lado, Capitu, coitada, não passa de uma “alpinista social”... Neste sentido, quantos Bentinhos não existem até hoje em nosso meio e passam completamente despercebidos e impunes?...
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