sexta-feira, março 01, 2013

Django Livre



O Entusiasmo da Influência

O crédito que teremos de conceder ao Tarantino de Django Livre (“Django Unchained”, EUA, 2012) será o de explorar, com poucas ou nenhumas cerimônias, a tão simbólica questão racial em seu país. O filme é uma colagem – como, aliás, tudo na obra do diretor – de todos os elementos históricos, sociais e culturais que definem e representam o regime escravocrata, tal como ocorreu nos Estados Unidos até o século XIX (e não muito diferentemente do que houve no Brasil): o patriarcalismo, o latifúndio, a política do favor (o que inclui a arquetípica figura do agregado), a complexidade e paradoxo das relações de interdependência entre senhores e escravos (incluindo as afetivas); e também, é claro, a crueldade, o sadismo, o preconceito, a barbárie e o horror intrínsecos a esse sistema de produção.

Mas... Novamente, o cinema de Tarantino é melhor dotado de boas intenções do que de realizações. O racismo, em Django Livre, não recebe aquele tratamento de ironia e sarcasmo sutis que fazem a classe de um Samuel Fuller. Este alfineta. O diretor de Bastardos Inglórios (2009) apunhala. E não pensemos que esse “apunhalar” se trate do desbunde de um “rebelde”, de um iconoclasta. É apenas mau gosto mesmo. Não precisamos entrar na polêmica encabeçada por Spike Lee, ao criticar o excesso de “niger” que pipoca nos diálogos do filme, para reconhecermos que a atitude cinematográfica de Tarantino é antes pueril que irreverente. Aqui, como em todas as suas produções – à exceção relativa de Cães de Aluguel (1992) e Pulp Fiction (1995), as duas primeiras realizações do diretor – impera uma lógica do exagero.

Uma lógica do caricato, de um efeito fácil de encantamento e choque, através da violência explícita, dos diálogos tensos, dos personagens típicos, da mise en scène “vintage”, da trilha sonora pop, da profusão prolixa de referências... Eis o virtuosismo mal-equilibrado, grotesco, de Quentin Tarantino, que arrebata facilmente admiradores fidelíssimos – e intransigentes. Algum deles poderia, olhos brilhantes de entusiasmo, falar na pós-modernidade do cinema tarantinesco, na sua construção desconstrutivista a partir de múltiplos discursos, fontes, influências, que se vão imiscuindo e consumindo satiricamente uns aos outros ad infinitum. Eis o pós-moderno: ratos de laboratório sobre uma esteira rolante que nada mais é do que um emaranhado indissolúvel de discursos, que se gastam e desgastam em um moto-perpétuo de referências e auto-referências...

Contudo, toda essa fala bonita ainda não é suficiente para fazer apagar dos filmes de Tarantino uma incômoda impressão de leviandade (noves fora, como já dissemos, as nobres intenções, que, no presente caso, giram em torno da questão racial nos EUA). Um cinéfilo tarantinesco poderia ainda replicar: “mas essa leviandade, essa lógica do exagero e do caricato de que você fala, são características do cinema de exploitation, que Quentin Tarantino recupera e homenageia magistralmente...” Parabéns para ele! No entanto, este blogueiro que vos fala só conseguiria fazer coro junto da torcida tarantinesca se visse que o diretor tem realmente algo a acrescentar de seu. Não tem. O que é que ele fez ou faz, que gente como Sérgio Leone, Samuel Fuller ou Sam Peckinpah não tenham feito antes e melhor?

Sinceramente, não achamos que pega bem temperar os conteúdos dignos desses grandes cineastas com o molho do exploitation. Nada contra este último, mas (com o perdão do clichê) uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. Aqui, mais uma vez, faz-se ouvir o fã: “mas a mistura entre os registros ‘alto’ e ‘baixo’ é aspecto fundamental da modernidade nas artes e na literatura; Tarantino é genial por levar isso ao cinema. E, quanto ao ‘acrescentar de seu’, a pós-modernidade rejeita veementemente essa noção demasiadamente ‘romântica’ de autoria...” Parabéns agora para você, seguidor fiel! Quase me convenceu... Mas, pensando melhor, há outros cineastas que fazem esse mesmo tipo de cinema moderno e pós-moderno, e parecem mais equilibrados do que o autor de Kill Bill (1999). O próprio Sérgio Leone já serve de exemplo.

Equilíbrio. Eis a maturidade que falta a Tarantino. Seu cinema parece que será eternamente um cinema de “gibi”, de “pulp fiction”, no pior sentido do termo... Mas, até aí, tudo bem. Não vamos cair no pecado anti-moderno de hierarquizar os gêneros (ou as suas misturas). Mas coloquemos as coisas em perspectiva e pensemos que o papel de Quentin Tarantino na história do cinema norte-americano será antes o de um Russ Meyer, que o de um Sérgio Leone, ou Samuel Fuller, ou Sam Packinpah. Para encerrar, uma aposta: após atacar os gêneros (e sub-gêneros) policial, terror, artes marciais, 2ª Guerra Mundial e western, falta o quê para o cineasta explorar? Uma ficção científica à lá Jack Arnold? Ou uma comédia erótica à lá Tinto Brass? Fãs, façam suas apostas!

3 comentários:

Raul disse...

Mas esse "equilíbrio" não é uma questão estética sua, André? E então você já impõe isso antes de ver ao filme, sendo que ele tem outras questões que você deixa de ver, procurando algo seu... Sou um antigo leitor, gosto muito do blog, mas nunca entendi esse seu "desequilíbrio" quando assiste Tarantino...

André Renato disse...

Olá, Raul!

Valeu pela leitura e pelo apoio! Bem, o equilíbrio estético é uma predileção minha sim. Acho que o trabalho crítico não é ciência no sentido de destrinchar um objeto e descobrir verdades inquestionavelmente objetivas.

É claro que, por outro lado, tem de haver objetividade na análise estética, para se descobrirem os instrumentos artísticos manejados por um filme (caso contrário, a coisa já não será resenha crítica, mas o velho "achismo"...)

Mas acredito que o que um crítico procura, ou deve procurar fazer, é tomar um posicionamento (subjetivo) frente aos elementos estéticos analisados (objetivos). Toda a argumentação (necessária) deve girar em torno dessa meta. Neste sentido, não acho que imponha uma visão de antemão ao filme. Procuro vê-lo com muita atenção, sabendo o que tem a oferecer.

Mesmo assim, a minha escolha e o meu gosto me levam a torcer o nariz para Tarantino. Não acho que terei de, forçosamente, gostar de um filme só porque ele possui uma proposta pertinente e coerente. Preciso ver se essa proposta se encaixa no meu universo de gostos, interesses, visão de mundo, ideologia, etc.

Este é o juízo de gosto, que acho que deve sempre vir junto, dentro do trabalho crítico, com a análise estética, histórica, sociológica, etc (estas sim, sempre objetivas e científicas). Agora, juízo de gosto também não são afirmações categóricas, prontas e impostas. Tudo é uma questão de se argumentar e demonstrar. Neste sentido, dou como exemplos de cineastas que seriam "fonte" para o cinema de Tarantino, porém, mais equilibrados do que ele, os mesmos Fuller (na questão racial), Peckinpah e Leone que citei no texto.

Enfim, espero ter esclarecido algo... Mas estamos aí para trocar ideias! Sempre! Valeu!

Raul disse...

Ah sim, isso concordamos plenamente, a questão do gosto só levaria a debates inúteis. Entretanto, o que me soa estranho é realmente a parte que deveria ser objetiva do argumento, essa questão pessoal do "equilíbrio". É como quando dizem que o Woody Allen é sempre o mesmo personagem, ou seja, essas coisas são absolutamente intencionais, autorais. Não há um motivo para esse "exagero", não faz parte da estética do Tarantino? São inseparáveis, isso é julgar o estilo pessoal, autoral, com uma questão também pessoal. E se o Tarantino já fosse clássico, acho que essas questões nem seriam levantadas... E também muito obrigado pelas recomendações!