terça-feira, fevereiro 26, 2013

Argo




Geografia Criativa

Não quero pensar se Argo (EUA, 2012, dir.: Ben Affleck) é um bom ou mau filme. Creio que isso não venha ao caso. O fato é que a estreia de Affleck na direção provoca certo incômodo no espectador atento, para não dizer um constrangimento. Argo é, certamente, um filme perigoso. Pois não tem o menor pudor em assumir o caráter discursivo-ideológico do cinema e utilizar-se desse poder com peculiar desenvoltura. Alguém poderá reclamar: “mas não é o que todos os filmes fazem, principalmente em Hollywood?” Sim, é verdade. Mas Argo realiza isso de tal forma que parece se elevar ao status de alegoria, por causa de uma conjunção de elementos ao mesmo tempo proposital e fortuita.

Vamos, primeiro, ao que foi pensado e previsto. Na história, devidamente baseada em fatos reais, a CIA monta uma sofisticada operação para resgatar seis cidadãos norte-americanos, escondidos em Teerã depois de terem escapado da tomada da embaixada dos EUA pelas forças revolucionárias de Khomeini, em 1979. Essa operação consiste em nada menos do que falsear a produção de um longa-metragem de ficção científica, com direito a roteiro, cartaz, coletivas de imprensa e escritório em Los Angeles. As filmagens seriam feitas no Irã, e para isso, a equipe precisaria visitar o país em busca de locações. A ideia é que os seis consigam sair pela porta da frente (o aeroporto), disfarçados de profissionais de cinema e conduzidos por um agente secreto (Affleck).

Até aí, seria banal usarmos essa intriga para chamar a atenção (mais uma vez) para o poder de prestidigitação do cinema industrial e todos os faits-divers relacionados à máquina de Hollywood, sem contar as delicadíssimas imbricações entre o entretenimento e a política. Os fatos narrados são mesmo pitorescos e virariam facilmente um filme de gênero e de sucesso. Mas não pensemos que Ben Affleck é um Oliver Stone. Está mais para Michael Bay (inclusive pela irritante câmera que “passeia” ao redor das personagens): não obstante a justa contextualização (e relativização) histórica na apresentação, este é um filme de heróis, atos heroicos e vítimas estadudinenses.

Entretanto, o que mais chama a atenção em Argo, e revela as suas escolhas políticas (involuntariamente, mas de modo mais verdadeiro e contundente do que o faz qualquer outro elemento) é algo que, em princípio, não teria a menor importância e passaria despercebido da maioria dos espectadores. Não se trata de nenhum “descuido”. É algo que foi seguramente planejado, mas o cineasta – cremos nós – jamais pensaria no efeito de sentido que essa escolha poderia acarretar, a qual contribui de modo não-previsto para a temática e para a própria função de ilusionismo a que este filme se propõe. Argo não apenas fala do cinema e da política dos Estados Unidos; o filme é exemplo do cinema e da política norte-americanos, mais do que se imagina.

Estamos falando da “geografia criativa”, técnica de montagem que acompanha a sétima arte desde os anos 1920 e foi primeiro descrita pelo famoso teórico russo Lev Kulechov. Poderíamos defini-la através de um exemplo hipotético (mas comum nas explicações da coisa): um homem e uma mulher percorrem, cada um por si, uma cidade (digamos, São Paulo), rumo ao encontro um do outro. Em montagem paralela, mostra-se o homem atravessando ruas do Rio de Janeiro, e a mulher correndo por Fortaleza. Quando finalmente se encontram, o cenário é Porto Alegre. Mas, para o espectador que não conhece – detalhadamente – nenhuma dessas cidades, trata-se de apenas um lugar: São Paulo.

Tal procedimento, junto do famoso “efeito Kulechov”, sempre serviu de instrumento simbólico para os defensores (ou detratores) do cinema-discurso (invenção, construção, ilusão), em oposição à filosofia de um cinema-realidade, cinema-verdade. Em Argo, o que acontece é o seguinte: vemos o agente da CIA interpretado por Ben Affleck entrando na famosa Mesquita Azul, em Istambul, Turquia. Primeiramente, um plano geral (cartão-postal) da mesquita. Depois, a câmera acompanha os passos do personagem enquanto este avança pelo pátio interno da edificação e vai se aproximando da porta de entrada. Corte. O plano seguinte mostrará Affleck já do lado de dentro. No entanto, o que vemos não é o interior da Mesquita Azul, mas o da basílica de Santa Sophia (Hagia Sophia, outro tradicional ponto turístico da cidade).

Quaisquer que sejam as razões que tenham levado a produção do filme a fazer essa escolha, o fato é que o público não irá reclamar (à exceção, talvez, dos turcos; mas quem acha que Holywood faria diferente por causa disso?): afinal, o exterior da Mesquita Azul é tão fotogênico (e iconicamente famoso) quanto o interior da Hagia Sophia. Ou seja, a manipulação e mesmo invenção do real tornam-se perfeitamente justificáveis, tendo em vista e eficicácia do espetáculo e seus efeitos. Através desse pequeno e desimportante pedaço de filme, Affleck e cia. (no pun intended) montam para os nossos olhos a mesma farsa (bonita farsa) que os seus personagens, dentro da história, colocam para ludibriar as autoridades iranianas.

Eis o fortuito jogo de espelhos que define, melhor do que tudo, o caráter (para o bem e para o mal) desse longa-metragem, figura alegórica do cinema e da política externa norte-americanos.

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