Amor Sólido
Os bons filmes
de tese (supondo que isto seja possível) não serão aqueles cujo discurso –
implícito – procura falar mais alto do que a mise en scène; há uma dose de sublimação e desinteresse artísticos
que precisam ser observados, sob pena de se cair na desgraça da arte programática
(quaisquer que sejam os “ismos” que esta represente). Indo mais longe,
arrisquemo-nos a dizer que os filmes de tese dignos de respeito sequer
apresentarão uma ideia lá muito fixa; as mais interessantes produções desse
gênero não se preocuparão em colocar mais do que questionamentos filosóficos,
éticos, morais: e assim fica instaurado o debate.
Eis o que propõe
Michael Haneke em seus longas, com a gravidade de um filósofo alemão. Se n’A Fita Branca (“The White Ribbon”,
2009), a investigação incidia sobre as origens e a essência do ódio, agora o
diretor e roteirista se volta para o outro termo da oposição mais arquetípica
desta espécie bípede: é a vez de Amor (“Amour”,
2012). O que é que há (se é que existe algo) por trás dessa palavrinha tão
maltratada nesta era do “amor líquido” (um amor de consumo imediato, facilmente
perecível), segundo o sociólogo Zygmunt Bauman? Existirá uma constância nas
relações? Uma verdadeira intimidade? Um ato de entrega que pode chegar ao ponto
do (auto) sacrifício?
O estilo sóbrio
e fixo da câmera de Haneke, a raridade dos primeiros planos (pois não se faz
uma perscrutação das subjetividades, mas do que estas acarretam em termos de
experiências e relações; o ser-estar no mundo), a ausência total de trilha
sonora e a preferência pelos “tempos mortos” da ação, tudo isso é o modo de operação
privilegiado para levar o espectador a mergulhar na vida cotidiana das
personagens, na qual o tal do amor será gradativamente posto à prova. O
cineasta não nos convida a observar pelo buraco da fechadura a intimidade de um
casal octagenário; ele nos empurra para o meio da sala, do quarto, da cozinha,
do banheiro, etc.
É como se
estivéssemos presentes de corpo e alma, atônitos, em uma situação que vai se
configurando e revelando vagarosamente como situação-limite. Eis a medida do
sadismo de Michael Haneke, que não deixa de se fazer menos contundente aqui do
que em seus outros filmes, supostamente mais violentos. O olhar que o diretor
nos propõe não tem nada de condescendente, e o seu sadismo, por outro lado,
está longe de ser do tipo fetichista (quinhão de gente como Lars Von Trier, por
exemplo). A vivisecção empreendida pela câmera, aqui, imita o gesto
desinteressadamente apaixonado de um pensador clássico.
Agindo dessa maneira, Amor
passa ao largo de extremos igualmente perigosos: moral e amoral seriam soluções
demasiadamente fáceis, pílulas de felicidade que nos fariam esquecer a dor
real, mas manteriam o pensamento por demais intransigente. A angustiante inquietação
com que Haneke nos deixa, na conclusão de seu filme-investigação, não é saber
se existe ou não o amor, ou qual a sua natureza intrínseca. O amor pode até
existir, mas estará indissociavelmente relacionado a um tal vivido que, se não
formos nós os seus personagens, muito dificilmente o compreenderemos. Com isso,
qualquer julgamento, seja moral, amoral ou imoral, será absolutamente
impertinente.
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