Já é ponto pacífico dizer que a experiência do cinema, após a TV e, principalmente, com o advento da era do download, vem deixando de se realizar exclusivamente através da liturgia do cinéfilo fiel que se desloca até a sala de exibição e se senta na primeira fileira de poltronas para gozar a pequena epifania de uma hora e meia de pseudo-identificação. Mas o fenômeno que ainda está para ser observado em toda a sua extensão é a aplicação do adjetivo “cinematográfico” a outros objetos audiovisuais, como um jogo de videogame, a transmissão de uma partida de futebol, filmagens caseiras que se veem no youtube ou algumas peças de publicidade que aparecem de vez em quando. Recentemente, tem feito grande sucesso nas redes sociais (especificamente, o facebook) um “curta-metragem” realizado sob encomenda para uma grande operadora de telefonia móvel. Trata-se da “adaptação” para o cinema de uma famosíssima canção: “Eduardo e Mônica”, da Legião Urbana.
A estratégia da empresa, propositalmente ambígua, levou esse “filme” a ser apresentado como “trailer”, com direito a cartaz no saguão dos cinemas, ao lado dos pôsteres de filmes de verdade, e a exibições na tela grande, ao lado dos previews de outras produções. Muita gente ficou em dúvida se não era realmente um novo lançamento. Muito bem. Mas todo entusiasmo foi por água abaixo. Ainda que o propósito comercial deste que não passa, no fundo, de um video institucional seja explicitamente revelado no final de sua simplória narrativa, não deixa de ser execrável a artimanha de “engano-desengano” perpetrada pelo genial publicitário que responde por essa tentativa pseudo-sofisticada de se venderem telefones celulares. Que o cinema seja uma indústria que serve, em sua maior parte, aos desígnios do lucro, isso já é fato bastante antigo, conhecido e conformado.
Agora, uma campanha de marketing disfarçada como a “mais nova surpresa do cinema nacional” não passa do mais baixo golpe publicitário que completa o processo de banalização e violação da experiência humana, assim como de sua expressão em formas culturais (música, cinema), despejando a carcaça na vala comum cavada pela logística do consumo. “A história de amor mais cantada do Brasil virou filme”, é o que lemos na página oficial do video no youtube. Mas o que a propaganda tenta fazer é nos persuadir de que o amor entre Eduardo e Mônica se desenrolará como narrativa na medida em que a operadora seja eficiente em transmitir um ao outro as mensagens de texto trocadas utilizando-se aparelhos de telefone celular. Evidentemente, esse “filme” foi veiculado às vésperas do último dia 12 de junho (dia dos namorados), como “homenagem” da empresa a todos os casais do Brasil. Então tá.
Apesar de tudo, a natureza comercial mal dissimulada dessa produção não é a única coisa digna de uma crítica inflamada; talvez, nem seja a pior. Pois o que mais cansa os olhos e ouvidos do espectador é a realização excessivamente elementar, ad nauseam, das cenas. Quase toda a mise en scène do filminho se apoia num defeito de estilo dos mais básicos, que todo aluno de faculdades de cinema logo aprende (ou deveria aprender) a evitar. Trata-se da redundância que se cria entre o que mostram as imagens e o seu complemento (ou contraponto) sonoro, o qual, neste caso, se compõe da narrativa cantada por Renato Russo. Vamos dizer que fazer as imagens ilustrarem, pura e sistematicamente, o discurso verbal “em off” é a maior das ofensas para uma arte que vem, há 115 anos, construindo e consolidando a sua própria linguagem.
É de um simplismo nojento, fruto de uma incompetência verdadeiramente constrangedora. É quase como alguém que sobe ao palco e pega num instrumento musical sem saber tocá-lo (e sem, tampouco, apresentar uma proposta “vanguardista”, para a qual valeria quase tudo, não?). “Eduardo abriu os olhos e não quis se levantar / Ficou deitado e viu que horas eram”, canta o antigo trovador solitário de Brasília, enquanto o filme traduz em imagens – da maneira mais banal, em termos de enquadramento e montagem – a mesmíssima coisa, mas com o cuidado de se fazer um close up no celular que mostrará as horas: não vemos a marca do aparelho, mas o nome da empresa de telefonia está lá, com grande evidência, na tela de cristal líquido. “Enquanto Mônica tomava um conhaque / Noutro canto da cidade / Como eles disseram”: a taça de brandy que aparece na mão dela é inconfundível, afinal, a propaganda tem que ser o mais digerível possível para o consumidor...
Enfim, entre o filme e a canção não há quase nada de contraponto, de ironia. Apenas uma repetição pleonástica das mais viciosas. Digo “quase nada”, porque existe uma única cena que não é de se jogar totalmente no lixo. Quando a música diz: “Eduardo e Mônica eram nada parecidos / Ela era de leão / E ele tinha dezesseis”, vemos uma bela tatuagem do signo no ombro dela, arrumando-se diante do espelho; enquanto ele, em sua casa, tenta espremer uma espinha no rosto, também defronte ao espelho. A tatuagem sensual de Mônica funciona bem como símbolo de sua maturidade e independência, ao passo que a espinha de Eduardo é o estigma mais grotesco do “não-ser” que caracteriza a puberdade. O contraponto irônico entre os dois foi bem colocado, com a devida ênfase nos aspectos próprios dos personagens, assim como a maneira de traduzir, concreta e visualmente, o que diz a música em termos abstratos (“o signo de leão”, “os dezesseis anos de idade”).
Um feliz acidente num “filme” que, de resto, é uma catástrofe irrecuperável. Só para exemplificar: se esta cena tivesse sido pensada e realizada como foram todas as outras, provavelmente veríamos Mônica lendo o seu horóscopo em um jornal, e Eduardo assoprando as velinhas do seu bolo de aniversário... De qualquer maneira, Eduardo e Mônica: o filme mostra – voluntária ou involuntariamente – o quanto o discurso publicitário, em seu pragmatismo reducionista, está anos-luz aquém do discurso propriamente artístico, muito mais aberto e problematizador (sem ser, necessariamente, mais “sofisticado”). Mas não vamos dizer que seja impossível uma propaganda aproximar-se da arte. Pesando tudo na balança, Eduardo e Mônica: o filme é ruim porque é ruim, e não porque é uma campanha publicitária que tenta se vender como filme de cinema (este fato contribui, mas não é decisivo). Quem quer conferir o que é a publicidade quando realmente consegue dotar-se do sublime poético, clique aqui.
A estratégia da empresa, propositalmente ambígua, levou esse “filme” a ser apresentado como “trailer”, com direito a cartaz no saguão dos cinemas, ao lado dos pôsteres de filmes de verdade, e a exibições na tela grande, ao lado dos previews de outras produções. Muita gente ficou em dúvida se não era realmente um novo lançamento. Muito bem. Mas todo entusiasmo foi por água abaixo. Ainda que o propósito comercial deste que não passa, no fundo, de um video institucional seja explicitamente revelado no final de sua simplória narrativa, não deixa de ser execrável a artimanha de “engano-desengano” perpetrada pelo genial publicitário que responde por essa tentativa pseudo-sofisticada de se venderem telefones celulares. Que o cinema seja uma indústria que serve, em sua maior parte, aos desígnios do lucro, isso já é fato bastante antigo, conhecido e conformado.
Agora, uma campanha de marketing disfarçada como a “mais nova surpresa do cinema nacional” não passa do mais baixo golpe publicitário que completa o processo de banalização e violação da experiência humana, assim como de sua expressão em formas culturais (música, cinema), despejando a carcaça na vala comum cavada pela logística do consumo. “A história de amor mais cantada do Brasil virou filme”, é o que lemos na página oficial do video no youtube. Mas o que a propaganda tenta fazer é nos persuadir de que o amor entre Eduardo e Mônica se desenrolará como narrativa na medida em que a operadora seja eficiente em transmitir um ao outro as mensagens de texto trocadas utilizando-se aparelhos de telefone celular. Evidentemente, esse “filme” foi veiculado às vésperas do último dia 12 de junho (dia dos namorados), como “homenagem” da empresa a todos os casais do Brasil. Então tá.
Apesar de tudo, a natureza comercial mal dissimulada dessa produção não é a única coisa digna de uma crítica inflamada; talvez, nem seja a pior. Pois o que mais cansa os olhos e ouvidos do espectador é a realização excessivamente elementar, ad nauseam, das cenas. Quase toda a mise en scène do filminho se apoia num defeito de estilo dos mais básicos, que todo aluno de faculdades de cinema logo aprende (ou deveria aprender) a evitar. Trata-se da redundância que se cria entre o que mostram as imagens e o seu complemento (ou contraponto) sonoro, o qual, neste caso, se compõe da narrativa cantada por Renato Russo. Vamos dizer que fazer as imagens ilustrarem, pura e sistematicamente, o discurso verbal “em off” é a maior das ofensas para uma arte que vem, há 115 anos, construindo e consolidando a sua própria linguagem.
É de um simplismo nojento, fruto de uma incompetência verdadeiramente constrangedora. É quase como alguém que sobe ao palco e pega num instrumento musical sem saber tocá-lo (e sem, tampouco, apresentar uma proposta “vanguardista”, para a qual valeria quase tudo, não?). “Eduardo abriu os olhos e não quis se levantar / Ficou deitado e viu que horas eram”, canta o antigo trovador solitário de Brasília, enquanto o filme traduz em imagens – da maneira mais banal, em termos de enquadramento e montagem – a mesmíssima coisa, mas com o cuidado de se fazer um close up no celular que mostrará as horas: não vemos a marca do aparelho, mas o nome da empresa de telefonia está lá, com grande evidência, na tela de cristal líquido. “Enquanto Mônica tomava um conhaque / Noutro canto da cidade / Como eles disseram”: a taça de brandy que aparece na mão dela é inconfundível, afinal, a propaganda tem que ser o mais digerível possível para o consumidor...
Enfim, entre o filme e a canção não há quase nada de contraponto, de ironia. Apenas uma repetição pleonástica das mais viciosas. Digo “quase nada”, porque existe uma única cena que não é de se jogar totalmente no lixo. Quando a música diz: “Eduardo e Mônica eram nada parecidos / Ela era de leão / E ele tinha dezesseis”, vemos uma bela tatuagem do signo no ombro dela, arrumando-se diante do espelho; enquanto ele, em sua casa, tenta espremer uma espinha no rosto, também defronte ao espelho. A tatuagem sensual de Mônica funciona bem como símbolo de sua maturidade e independência, ao passo que a espinha de Eduardo é o estigma mais grotesco do “não-ser” que caracteriza a puberdade. O contraponto irônico entre os dois foi bem colocado, com a devida ênfase nos aspectos próprios dos personagens, assim como a maneira de traduzir, concreta e visualmente, o que diz a música em termos abstratos (“o signo de leão”, “os dezesseis anos de idade”).
Um feliz acidente num “filme” que, de resto, é uma catástrofe irrecuperável. Só para exemplificar: se esta cena tivesse sido pensada e realizada como foram todas as outras, provavelmente veríamos Mônica lendo o seu horóscopo em um jornal, e Eduardo assoprando as velinhas do seu bolo de aniversário... De qualquer maneira, Eduardo e Mônica: o filme mostra – voluntária ou involuntariamente – o quanto o discurso publicitário, em seu pragmatismo reducionista, está anos-luz aquém do discurso propriamente artístico, muito mais aberto e problematizador (sem ser, necessariamente, mais “sofisticado”). Mas não vamos dizer que seja impossível uma propaganda aproximar-se da arte. Pesando tudo na balança, Eduardo e Mônica: o filme é ruim porque é ruim, e não porque é uma campanha publicitária que tenta se vender como filme de cinema (este fato contribui, mas não é decisivo). Quem quer conferir o que é a publicidade quando realmente consegue dotar-se do sublime poético, clique aqui.
3 comentários:
Ótimo texto, André. Também achei esse "trailer" um absurdo, um verdadeiro vídeo para surdos.
Abraço.
Bom texto, André. Posso até discordar de algumas passagens, mas acho importante muitas das coisas que você levantou nele.
E sobre comerciais "cinematográficos", lembro deste: www.youtube.com/watch?v=Mbdj-j95k_E
Valeu, galera!
Interessante esse vídeo do Argento, Bernardo. Algo a mais para pensar.
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