sexta-feira, março 04, 2011

Tropical Malady


A selva densa da Tailândia é um dos últimos lugares deste mundo, de resto irremediavelmente devastado, onde ainda se permite respirar a atmosfera encantatória do mito. Demos graças aos deuses primitivos que ainda existam pontos na superfície deste planeta obscuros o suficiente que sirvam de repositório e preservação a velhos poderes ctônicos, a antigas forças teriomórficas com seu canto-armadilha de sugestões jamais plenamente categorizáveis.

A lógica colonialista do coração das trevas não tem, absolutamente, nada o que fazer em paragens inatingivelmente distantes não simplesmente da “civilização” (palavra devassada de tanta malícia), mas de toda a razão e de toda a consciência que o bicho-homem vem ostentando com grande obscenidade para si mesmo na tara neurótica da “evolução”. Isso porque a selva densa da Tailândia também deposita, simbolicamente, a natureza mais libidinosa do inconsciente – e suas muitas representações arquetípicas.

Desse modo, não encontraremos em Tropical Malady (Tailândia / França / Alemanha / Itália, 2004, dir.: Apichatpong Weerasethakul) aqueles “exploradores” parvos que assolam a grade de canais de TV como o Discovery Channel; tampouco ouviremos a voz over que “explica” a imagem em documentários não menos eurocêntricos. Antes de mais nada, o filme de Weerasethakul se faz de ficção – mas de uma ficção que pouco paga tributo aos modos de narrar ocidentais, modernos.

A história do amor entre um soldado e um jovem camponês, na qual se insere o espírito de um antigo shaman que assume a forma de um tigre, é contada no tom e no registro da fábula, inspirada em antigas lendas da região. O filme se divide em duas partes bastante distintas. Na primeira, vemos o processo de aproximação entre Keng (o soldado) e Tong (o camponês), tendo como pano de fundo uma grande cidade. O cineasta a filma com um assombro equivalente ao que dedicará depois à selva.

Ele se deixa encantar e hipnotizar pela miríade de cores e luzes de um shopping center, de uma praça pública, de bares e restaurantes, mas parece não compreender absolutamente nada daquilo. A urbe parece estúpida, sem sentido. O ritmo do filme é cadenciado e não se prende exclusivamente à gradação do relacionamento do casal protagonista, mas em diferentes momentos vividos por eles, em lugares diferentes. Filme-quadros. A narrativa ganha em lirismo.

Na segunda parte, anunciada como se fosse outra história, o jovem Tong é aparentemente raptado pelo espírito-tigre do shaman, e Keng – como membro da patrulha florestal – parte à sua procura, adentrando uma forma de coração das trevas jamais sonhada por Conrad (ou Coppola – talvez, em certa medida, por Herzog ou Mallick, mestres de um cinema sensorial e táctil). A narrativa, então, além da já bem estabelecida dose de poesia lírica, adquire as tintas de um profundo delírio.

No devaneio surreal que constituirá o total desta segunda metade da fita, confundir-se-ão além de qualquer entendimento o desejo, o medo, o pensamento, as sensações corporais. Keng, enquanto militar da patrulha florestal, representa a lógica que sobrepuja e controla a natureza. No entanto, sozinho no meio da selva (também a de sua própria natureza inconsciente / animal), ele pouco terá o que fazer e mergulhará de vez na alucinação das emoções e instintos mais primevos.

Neste ponto, lembramo-nos da epígrafe do filme: “Todos nós somos feras por natureza. Nosso dever, enquanto seres humanos, é tornarmo-nos como adestradores, mantendo os animais sob vigilância. E, até mesmo, ensinarmo-nos a realizar tarefas além de nossa bestialidade”, atribuída a um Tom Nakajima. O espírito do shaman mostrará a Keng a sua bestialidade, como em espelho, assumindo a forma do tigre, de um vaga-lume, de um macaco falante, ou a forma do corpo (nu) do seu jovem amado Tong.

É um tema comum a diversas mitologias – assim como a narrativas literárias e filmes – a jornada obscura que, em princípio, deverá ser de encontro ao outro e ao desconhecido; mas que acaba conduzindo o sujeito a nada mais do que a si mesmo, ao mais fundo (e aterrorizante) do seu ser. Só para ficar em dois exemplos manjados, posto que da ficção científica: 2001 – Uma Odisseia no Espaço (1968, Stanley Kubrick) e Solaris (1972, Andrei Tarkovski).

O plano em que se coloca o título do filme é, a esse propósito, provocativo e revelador: vemos Keng, sentado com conforto e olhando descaradamente para a câmera durante um tempo longo, inusitado e constrangedor, com um sorriso ao mesmo tempo malicioso e irônico, enquanto a seu lado é inserido o nome do filme. Weerasethakul já vai anunciando que o espectador embarcará como cúmplice na “viagem” do protagonista – a sua descoberta e o seu terror também serão os nossos.

E o próprio título não é, por si mesmo, totalmente desprovido de antífrases: o “mal dos trópicos” em questão está longe de ser aquelas doenças (malária, por exemplo) que fazem o horror das mentalidades colonialistas; tampouco se faz daquela libido de cunho exclusivamente sexual e fortemente estimulada pelo calor das zonas próximas à linha do Equador, em obediência às mentalidades ridiculamente deterministas da época do neocolonialismo (século XIX), ou à não menos determinista psicanálise freudiana.

O universo arquetípico, mitológico e poético que dá fôlego à realização rigorosamente formal e “conceitual” de Weerasethakul vai muito além da história única que se conta dos povos do “terceiro mundo”, dos homossexuais, etc. O discurso de Weerasethakul, além de ser diferenciado, é um discurso sóbrio (o que só contribui para a intensidade dos temas), cantarolado quase em murmúrio num filme prenhe de silêncios (a presença de letreiros entre as cenas não deixa de lembrar o velho cinema mudo).

Tropical Malady ganhou o prêmio do juri no Festival de Cannes em 2004 (tendo sido indicado também à Palma de Ouro) e o prêmio da crítica na Mostra de SP – no mesmo ano. Está em terceiro lugar na lista dos melhores filmes da década de 2000, elaborada pelos Cahiers du Cinéma. Apichatpong Weerasethakul está atualmente nos cinemas brasileiros com Tio Boonmee, Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas (2010), ganhador da Palma de Ouro ano passado. Mas esse fica para depois do carnaval.

2 comentários:

Anônimo disse...

Meu Caro, já esperava há algum tempo seu ponto de vista sobre este que é um dos cineastas da minha predileção. E o que você é muito exato e justo. Parabéns.
Wanderson Lima

André Renato disse...

Obrigado, Wanderson!

Agora estou para ver o "Tio Boonme..."