Existem filmes que pulsam aos nossos olhos, com um brilho que prende o espectador num estado de epifânica catatonia. E de onde vem essa luz morna e reconfortante? Não vem simplesmente da Forma, que não faz mais do que servir de recurso expressivo (o que já é suficientemente heróico). “Tudo, da forma, só para abrir planos, campos e caminhos novos, a estrito serviço do conteúdo”, já dizia Guimarães Rosa. Acredito que a glória de alguns pequenos grandes filmes vem do Tema.
Mas vamos entender bem uma coisa por aqui: não se trata de filmes programáticos, que se propõem a “discutir” um tema. As melhores obras do engenho artístico não costumam nascer de interesses lá muito definidos. Nascem de sensibilidade. De uma grande sensibilidade em relação a homens, mulheres, suas “questões”, suas relações – a vida nas suas maneiras mais espontâneas (e sem dose alguma de condescendência, esse crime capital da expressão).
Os melhores filmes não partem de temas, não viajam em cima de temas e, sobretudo, não chegam a “parque” temático algum. Mas o tema sempre está lá, acompanhando todos os seus passos. Filmes assim exigem de seus autores uma alma de dramaturgo, uma vontade de romancista, um caráter de poeta. Enfim, é com esses cuidados que podemos dizer que O Espantalho (“Scarecrow”, EUA, 1973, dir.: Jerry Schatzberg) é um belíssimo filme (sobre?) amizade.
Esta obra-prima humilde (e humilhada, uma vez que foi um fracasso comercial) é um road movie que acompanha as andanças de dois perfeitos renegados: Max (Gene Hackman), um ex-detento brigão; e Lion (Al Pacino), um marinheiro meio clown. Ambos estão de retorno à sociedade após vários anos de exílio: o primeiro na cadeia, o segundo no oceano. Conhecendo-se na estrada, Max convida Lion a tornar-se seu sócio num lava-rápido que irá abrir com o dinheiro poupado durante o cárcere.
Mas este precisa, antes, visitar a ex-esposa e conhecer o filho que nascera após ele ter fugido de casa. Na viagem, empreendida por regiões abjetas do meio-oeste americano através de caronas e tomadas clandestinas de trens de carga, os laços entre os dois se estreitarão e um começará a assumir traços da personalidade do outro, sem deixarem de enfrentar grandes doses do medo e ódio que o mundo reserva aos párias. Em todo o processo, a atuação de Hackman e Pacino é assombrosa.
Na verdade, só o fato de ver esses dois atores monstruosos contracenando no mesmo plano já traz um entusiasmo épico – um encontro de titãs. E tal encontro é ainda mais potencializado pelo incrível refinamento estético do diretor, que se apóia predominantemente em planos de longa duração com bastante – e sutil – aproveitamento da profundidade de campo.
Aliás, a bela plástica deste filme é algo que nos faz lembrar vividamente que o cinema é, antes de mais nada, uma linguagem (audio)visual – no meio de tantos filmes que parecem tanto se esforçar para que esqueçamos esse fato essencial. A fotografia geometricamente calculada atinge as raias da perfeição estética, evocando um formalismo sábio que jamais abandona o elemento humano, ponto de destaque em todas as imagens aqui. O olhar do cineasta é de uma volúpia que vemos em poucas películas.
E tal volúpia parece atingir o grau do sinestésico: sentimos o frio de Al Pacino ao mergulhar numa fonte pública em uma tarde gelada; o fedor das muitas camadas de roupas velhas e esfarrapadas que Gene Hackman costuma vestir para escapar do mesmo frio; o paladar nauseabundo de pequenos pedaços de frango frito grudados ao redor da boca de Hackman enquanto come, os quais sua “namorada” arrancará com beijos lascivos (tudo mostrado em primeiro plano!).
E não podemos nos esquecer do silêncio opressor da primeira cena, quando os dois protagonistas se conhecem. Quatro sentidos, reunidos e misturados na sugestão poderosa do olhar do cineasta por trás das lentes. Jerry Schatzberg é o nome pouco conhecido – e menos sucedido – daquela geração que tomou Hollywood de assalto nos anos 1970 (Francis Ford Coppola, Brian de Palma, Martin Scorsese, Steven Spielberg, George Lucas).
Mas o mais interessante é que ele já tinha um posição muito bem estabelecida como fotógrafo profissional de moda, clicando para revistas famosas como a “Vogue”. Fato: o olhar profundamente fotográfico em O Espantalho lembra bastante a visão de um outro cineasta-fotógrafo que surgiria pouco mais tarde: Wim Wenders, principalmente em seu genial Paris Texas (1984), outro road movie já clássico.
O Espantalho ganhou a Palma de Ouro em Cannes, no ano de 1973. Schatzberg já havia concorrido ao prêmio dois anos antes, com Os Viciados (“The Panic in Needle Park”, 1971), que também contava com a participação de Al Pacino – o filme acabou ganhando o prêmio de melhor atriz, para Kitty Winn. Se, dentre as principais tarefas do crítico de cinema estão:
1. “proselitismo em favor dos criativamente triunfantes, mas comercialmente marginais”; 2. “vasculhar catálogos antigos de cinema à procura de obras-primas não-apreciadas”, segundo o jovem crítico norte-americano Paul Brunick, então que não se esqueçam de O Espantalho – recém-lançado em DVD no Brasil pela Lume Filmes (parabéns).
Mas vamos entender bem uma coisa por aqui: não se trata de filmes programáticos, que se propõem a “discutir” um tema. As melhores obras do engenho artístico não costumam nascer de interesses lá muito definidos. Nascem de sensibilidade. De uma grande sensibilidade em relação a homens, mulheres, suas “questões”, suas relações – a vida nas suas maneiras mais espontâneas (e sem dose alguma de condescendência, esse crime capital da expressão).
Os melhores filmes não partem de temas, não viajam em cima de temas e, sobretudo, não chegam a “parque” temático algum. Mas o tema sempre está lá, acompanhando todos os seus passos. Filmes assim exigem de seus autores uma alma de dramaturgo, uma vontade de romancista, um caráter de poeta. Enfim, é com esses cuidados que podemos dizer que O Espantalho (“Scarecrow”, EUA, 1973, dir.: Jerry Schatzberg) é um belíssimo filme (sobre?) amizade.
Esta obra-prima humilde (e humilhada, uma vez que foi um fracasso comercial) é um road movie que acompanha as andanças de dois perfeitos renegados: Max (Gene Hackman), um ex-detento brigão; e Lion (Al Pacino), um marinheiro meio clown. Ambos estão de retorno à sociedade após vários anos de exílio: o primeiro na cadeia, o segundo no oceano. Conhecendo-se na estrada, Max convida Lion a tornar-se seu sócio num lava-rápido que irá abrir com o dinheiro poupado durante o cárcere.
Mas este precisa, antes, visitar a ex-esposa e conhecer o filho que nascera após ele ter fugido de casa. Na viagem, empreendida por regiões abjetas do meio-oeste americano através de caronas e tomadas clandestinas de trens de carga, os laços entre os dois se estreitarão e um começará a assumir traços da personalidade do outro, sem deixarem de enfrentar grandes doses do medo e ódio que o mundo reserva aos párias. Em todo o processo, a atuação de Hackman e Pacino é assombrosa.
Na verdade, só o fato de ver esses dois atores monstruosos contracenando no mesmo plano já traz um entusiasmo épico – um encontro de titãs. E tal encontro é ainda mais potencializado pelo incrível refinamento estético do diretor, que se apóia predominantemente em planos de longa duração com bastante – e sutil – aproveitamento da profundidade de campo.
Aliás, a bela plástica deste filme é algo que nos faz lembrar vividamente que o cinema é, antes de mais nada, uma linguagem (audio)visual – no meio de tantos filmes que parecem tanto se esforçar para que esqueçamos esse fato essencial. A fotografia geometricamente calculada atinge as raias da perfeição estética, evocando um formalismo sábio que jamais abandona o elemento humano, ponto de destaque em todas as imagens aqui. O olhar do cineasta é de uma volúpia que vemos em poucas películas.
E tal volúpia parece atingir o grau do sinestésico: sentimos o frio de Al Pacino ao mergulhar numa fonte pública em uma tarde gelada; o fedor das muitas camadas de roupas velhas e esfarrapadas que Gene Hackman costuma vestir para escapar do mesmo frio; o paladar nauseabundo de pequenos pedaços de frango frito grudados ao redor da boca de Hackman enquanto come, os quais sua “namorada” arrancará com beijos lascivos (tudo mostrado em primeiro plano!).
E não podemos nos esquecer do silêncio opressor da primeira cena, quando os dois protagonistas se conhecem. Quatro sentidos, reunidos e misturados na sugestão poderosa do olhar do cineasta por trás das lentes. Jerry Schatzberg é o nome pouco conhecido – e menos sucedido – daquela geração que tomou Hollywood de assalto nos anos 1970 (Francis Ford Coppola, Brian de Palma, Martin Scorsese, Steven Spielberg, George Lucas).
Mas o mais interessante é que ele já tinha um posição muito bem estabelecida como fotógrafo profissional de moda, clicando para revistas famosas como a “Vogue”. Fato: o olhar profundamente fotográfico em O Espantalho lembra bastante a visão de um outro cineasta-fotógrafo que surgiria pouco mais tarde: Wim Wenders, principalmente em seu genial Paris Texas (1984), outro road movie já clássico.
O Espantalho ganhou a Palma de Ouro em Cannes, no ano de 1973. Schatzberg já havia concorrido ao prêmio dois anos antes, com Os Viciados (“The Panic in Needle Park”, 1971), que também contava com a participação de Al Pacino – o filme acabou ganhando o prêmio de melhor atriz, para Kitty Winn. Se, dentre as principais tarefas do crítico de cinema estão:
1. “proselitismo em favor dos criativamente triunfantes, mas comercialmente marginais”; 2. “vasculhar catálogos antigos de cinema à procura de obras-primas não-apreciadas”, segundo o jovem crítico norte-americano Paul Brunick, então que não se esqueçam de O Espantalho – recém-lançado em DVD no Brasil pela Lume Filmes (parabéns).
2 comentários:
Papel cumprido. Já estou em busta deste e de "Os Viciados"
Fico feliz em saber, Karina!
Você não se arrependerá...
Postar um comentário