domingo, agosto 01, 2010

Mary e Max - Uma Amizade Diferente


“Através das associações poéticas, intensifica-se a emoção e torna-se o espectador mais ativo. Ele passa a participar do processo de descoberta da vida, sem apoiar-se em conclusões já prontas, fornecidas pelo enredo, ou nas inevitáveis indicações fornecidas pelo autor. Ele só tem à sua disposição aquilo que lhe permite penetrar no significado mais profundo dos complexos fenômenos representados diante dele.” (TARKOVSKI, Andrei. Esculpir O Tempo. 2ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p.17)

Mary e Max – Uma Amizade Diferente (“Mary e Max”, Austrália, 2009, dir.: Adam Elliot) é um filme de verdade. Enquanto muitos “live action” por aí não passam de mentirinha. Os rostos talhados em massa de modelar dos personagens deste filme possuem mais densidade humana e expressividade de alma do que os rostos de plástico de muitas celebridades do cinemão, modelados à base de botox, silicone, enxertos e outros horrores frankenstenianos.

Por isso, é absolutamente feliz a escolha de contar a história incrível – mas real – desta amizade entre uma garotinha e um homem de meia-idade através de animação em “stop motion”. Ao caricatural e virtual da forma de representação contrapõem-se o singular e verdadeiro dos conteúdos. Se existe uma verdade; se esta verdade é o humano em si; e se é função do cinema e de qualquer outra forma de representação veicular esta verdade humana, então Mary e Max é uma pequena obra-prima.

Tal verdade elide quaisquer apreensões filosóficas, psicológicas, antropológicas, etc. A razão está além e aquém de seus atributos e manifestações. A verdade humana está na própria vida, na vida simples das crianças e dos loucos. Por isso, o singelo desta animação dirigida aos adultos, dirigida àqueles que se esqueceram de sua natureza primeira – ou que nunca tiveram a feliz ou infeliz oportunidade de entrar em contato com ela.

É por isso também que Max sente-se traído quando Mary (já adulta) transforma-o em objeto de estudo acadêmico. Como disse o mestre russo no trecho citado acima, as associações poéticas têm mais poder no esclarecimento dos significados de fenômenos subjetivos do que as associações racionais. Mary e Max vivem sua amizade de afinidades e trocas de experiências e de impressões subjetivas dentro do próprio processo de descoberta da vida, processo esse absolutamente livre, sem indicações, sem conclusões.

A vida em sua essência. O ser-no-mundo despojado de quaisquer amarras. Por isso, Mary e Max são párias, cada qual à sua maneira. Não se encaixam num mundo que só faz por suprimir o ser, reprimir a vida. Max é um judeu solitário com síndrome de Asperger (uma forma de autismo) e que vive em Nova York. Mary é uma menina “nerd”, muito criativa, sistematicamente ignorada pela família e humilhada na escola, vivendo a um mundo de distância de Max (Austrália).

Mas o filme não se reduz ao estereótipo. A vida e o ser passam além da auto-afirmação sectária dos “winners” ou dos “losers”. Este não é um filme da Disney; tampouco de Lars Von Trier. O verdadeiramente humano sobressai em Mary e Max, com suas vitórias e fracassos, sua força e fraqueza, ambas colocadas com grande sinceridade e auto-consciência. Aceitar-se como se é, conforme recomenda Max a Mary, numa das cartas.

E o que se é não pode ser colocado em rótulos, sejam estes de qualquer tipo ou propósito. São filmes assim que fazem o espectador sair da sala de cinema com a alma mais leve (o que não quer dizer, necessariamente, que esta lhe tenha sido aliviada), com uma sensação de liberdade e disponibilidade – que é a própria sensação de vida. Somente filmes de verdade, de verdade humana, são capazes de exercer tal efeito.

Lembrando mais uma vez a fala de Tarkovski, as emoções tornam-se mais intensificadas (não interessa quais sejam) e o espectador mais ativo – eis o mais importante. Não são filmes que nos “ajudam” ou “ensinam” a descobrir a vida; quem faz isso é Disney e – mais uma vez – Trier. Pois não passam de discurso, de indicações e conclusões. Falemos é de filmes que participam conosco desse processo maravilhoso de descobrir e viver a vida. Filmes realmente verdadeiros como Mary e Max.

3 comentários:

Wally disse...

Adorei seu primeiro parágrafo. Mais uma vez uma crítica muito densa e reflexiva - vou ver esse filme em breve.

André Renato disse...

Ver uma animação em estilo tradicional de vez em quando é um alívio para nossas almas.

leo disse...

Esse é um filme que não me canso de assistir