Avatar possui o valor de um manifesto. O manifesto de um novo cinema, de uma nova experiência de cinema. O discurso do filme argumenta o tempo todo em favor da renovação técnica / estética que propõe. Argumentos que já são exemplos de aplicação, organizados (tomando-se o sentido mais próprio do radical, que é o mesmo de “organismo”) nas relações sutis (metafóricas) entre os elementos formais (o estilo, mas também o próprio suporte) e os de conteúdo (roteiro, ideologia).
A primeira imagem do filme é uma tomada aérea sobre a selva de Pandora – num movimento veloz e levemente descendente, enquanto a voz em “off” de Jake Sully (o protagonista) nos conta dos seus sonhos de “voar”, constantes durante o período em que estava preso a uma cama de hospital, convalescendo do evento que lhe tiraria o movimento das pernas (Jake é um fuzileiro naval).
Vendo-se o filme em 3D (tudo o que falaremos aqui tem como pressuposto tal modo de exibição), esse primeiríssimo plano produz no espectador uma vertigem que já anuncia, sem maiores preparativos, a quase violência da experiência quase física que James Cameron nos apresenta. Levando-se em conta a voz em “off”, não há dúvida alguma de que o plano em questão se trata de um “câmera subjetiva”.
Com isso, faz valer logo de início o princípio mais elementar da arte, da ciência e da indústria hollywoodianas: a identificação entre espectador e personagem. Soberbamente exibindo já todo o poder da tecnologia inventada para este filme, Cameron nos faz sentir – mais do que simplesmente ver – o mesmo que nosso herói. Somos nós que voamos, com a trilha sonora das palavras de devaneio de Jake Sully.
Assim como ele, nossos movimentos propriamente físicos encontram-se reduzidos: enquanto o personagem encontra-se paraplégico, o espectador – com o perdão da má comparação – numa sala de cinema dispõe menos do movimento das pernas do que dos braços (todos conhecemos muito bem esse desconforto). Dessa maneira, a cama de hospital, a cadeira de rodas, o “caixão” – através do qual a consciência de Jake será transferida para o corpo do avatar – e a poltrona na sala escura são figurações de uma mesma condição.
Trata-se da imobilidade do corpo que permitirá à alma perceber e vivenciar uma hiper-realidade. Como espírito desencarnado, Jake Sully ocupa momentaneamente (e no final, definitivamente) o corpo do avatar, vestindo-se dos seus sentidos (principalmente o tato e a visão) da mesma maneira que nós ocupamos o corpo dele e também o do avatar. A “catch phrase” do casal Jake-Neytiri tem um significado fundamental no jogo: “I see you” (eu vejo você) é uma confirmação da verdade da percepção visual e da realidade do objeto presente.
É o cinema em 3D argumentando que não se trata somente de uma simulação, mas da eliminação da ausência, da distância intransponível em qualquer forma de representação. É evidente que o 3D não torna presente, em si, o objeto; mas, para todos os efeitos (que são justamente os sensoriais / perceptivos – os que mais interessam), a coisa está sim colocada à nossa disposição. Só falta acrescentar: “I touch you”.
Avatar realiza particularmente bem a vocação da sala de cinema para “caverna de Platão”. Tal associação foi primeiro estabelecida pelo teórico Jean-Louis Baudry, pioneiro em estudar o dispositivo cinematográfico (cunhando o próprio termo, que se refere ao conjunto dos elementos materiais envolvidos na produção, circulação e recepção de filmes). Reproduzo algumas palavras do autor, explicadas por Jacques Aumont:
“Baudry constata que o dispositivo cinematográfico determina um estado regressivo artificial, acompanhado do que chama “uma relação recobrindo a realidade” (ausência de delimitação do corpo, que parece fundir-se no mundo diegético, na imagem): ‘O aparelho de simulação consiste [...] em transformar uma percepção em uma quase-alucinação, dotada de um efeito de real incomparável ao que é trazido pela simples percepção’. Baudry ressalta a parte de nostalgia própria a esse dispositivo, que se especifica em várias direções: regressão narcisista, assimilação ao sonho, mas também retorno a um passado mítico, no caso, o mito platônico da caverna. No ‘Le Dispositif’, Baudry traça assim um longo paralelo entre a situação do espectador de filme e a dos escravos acorrentados da parábola de Platão, condenados a verem da realidade apenas as sombras projetadas na parede diante deles.” (“A Imagem”. 14ª ed. São Paulo: Papirus, 2009. p.189)
“Ausência de delimitação do corpo, que parece fundir-se no mundo diegético”; “quase-alucinação”; “assimilação ao sonho”; “retorno a um passado mítico”; palavras que podem ser muito, muito facilmente aplicadas a Avatar, que parece investir nessas características do dispositivo-cinema mais e além de qualquer outra produção jamais realizada. Não é pequena ou gratuita a ambição de James Cameron.
Fiquemos com as maiores evidências: 1. a “assimilação ao sonho” já se produz na primeira imagem do filme, nas primeiras palavras ditas, conforme analisamos. O onírico (as proporções gigantescas de tudo em Pandora, suas cores vivas e talvez a própria textura da luz e das imagens em computação gráfica) é uma das maiores forças, ontológicas, fenomenológicas ou estéticas, de Avatar.
E o sonho, em sua expressão de arquétipos / símbolos, nos conduz invariavelmente ao: 2. o “retorno ao passado mítico”, que se faz presente na “era de ouro” em que vivem os Na’Vi’s, numa perfeita comunhão idílica com a natureza-mãe (E’nya), uma natureza mítica, dotada de poder e vontade numinosos. Agora, o fato não tão arrebatador é que essa “realidade” é sugerida ao espectador pelo método “caverna platônica”.
Sonhos de voar: não é à toa que a mise-en-scène de Avatar privilegie espaços elevados e o próprio espaço “aéreo”. Mais do que esses, as cenas de ação mais tensas do filme parecem tomar lugar nas bordas, nas beiras de precipícios e de quedas de variada ordem. Outra argumentação do 3D em sua própria defesa e busca de legitimidade: James Cameron parece procurar deixar o próprio espectador constantemente na iminência da queda, no perigo indescritível de se cair – ou dar um passo – além do limite que separa o solo do vazio.
Esse tenso contraste entre o apego confortável a um chão e o arremesso para o ar infinitamente desproporcional também é uma fonte na qual o filme nutre boa parte de sua filosofia e estética perceptivo-sensoriais. No limite, o medo que o espectador sente de ser lançado ao vazio é o medo de que o cinema realize total e irremediavelmente a “ausência de delimitação do corpo”.
A ideia é: se emprestarmos nosso corpo para se fundir à imagem diegética, quem garante que ele nos será devolvido? A “quase-alucinação” do dispositivo-Avatar (sim, pois este filme concentra em si todo um Cinema) produzirá, para o melhor e para o pior, efeitos similares aos de drogas alucinógenas: incluindo, naturalmente, a “bad trip”. E talvez, até mesmo o “flashback”: revendo o filme em DVD (logicamente, em 2D), posso afirmar seguramente que senti em meu corpo como que “ecos” das sensações físicas que experimentei no cinema, durante as cenas de ação mais tensas de que falei.
James Cameron realizou o sonho – ou pesadelo – de muitos cineastas, teóricos e críticos: a criação de um cinema do qual não saímos imunes em qualquer maneira – física, emotiva ou intelectualmente. Em relação a esta última, partamos agora para uma outra discussão, antes de darmos por encerrada esta revisão (crítica) de Avatar. A crítica marxista de cinema, particularmente nos anos de 1960, discutia ardorosamente as implicações ideológicas do dispositivo e da estética da sétima arte.
Os críticos argumentavam que uma característica fundamental da ideologia burguesa era precisamente disfarçar-se enquanto ideologia, enquanto discurso, e “naturalizar-se” como dado inquestionável de realidade – conseqüentemente, de verdade. Tal estratégia teria em vista a mais eficiente manutenção do “status quo”, produzindo alienação por todos os cantos. Para tanto, o cinema produzido, divulgado e recebido em escalas industriais, e segundo parâmetros bastante convencionais de forma e de conteúdo, aparecia como instrumento privilegiado.
Mas o problema dessa crítica é: em seus textos, os autores não costumavam se referir à “ideologia burguesa”; e sim, simplesmente à “ideologia”. Ora, sabemos que eles estavam falando da visão de mundo da burguesia; mas, a tomar o sentido exato de suas palavras, o que se dizia poderia ser aplicado a qualquer ideologia, não? Inclusive – por que não? – à ideologia marxista / socialista.
Trocando em miúdos: ou se especifique que é a ideologia burguesa que possui o interesse próprio de se disfarçar para melhor persuadir, ou se continua dizendo que a ideologia possui o interesse próprio de se disfarçar para melhor persuadir; mas, neste caso, admita-se como ideologia não só a capitalista, mas também a socialista, a cristã, a budista, a hedonista, etc.
Tal precaução evitaria a contradição de se criticar as manipulações reacionárias em favor de uma “transparência” que não é nada mais do que outra forma – tão disfarçada e sofisticada quanto – de manipulação: a revolucionária. A não ser, é claro, que se admita como um dado de fato e de direito a “manipulação”. Mas por que estamos falando de tudo isto? Por ser justamente em tal contradição que cai um intelectual / filósofo famoso da atualidade: Slavoj Žižek.
Pensador fortemente armado de referenciais marxistas e psicanalíticos (principalmente lacanianos) na análise das produções da indústria de Hollywood, Žižek escreveu um artigo sobre Avatar para a edição de março último da clássica revista “Cahiers du Cinéma” (ele também costuma escrever esporadicamente para o caderno “Mais” da “Folha de S. Paulo”). Sob o título “Avatar: un exercice d’ideologie politiquement correcte” (Avatar: um exercício de ideologia politicamente correta), o filósofo dispara toda sua munição crítica contra a hipocrisia desse mesmo “exercício” praticado por James Cameron.
Passemos a palavra ao próprio:
“Mais il est facile de découvrir, sous les motifs si évidemment politiquement corrects (un Blanc honnête prenant fait et cause pour d’ecologiquement corrects aborigènes contre le ‘complexe militaro-industriel’ des envahisseurs impérialistes), le vaste arsenal des motifs honteusement racistes véhiculés par le clichê de ‘l’homme qui voulait devenir roi’: un naufragé terrien invalide est assez bon pour mériter la main d’une belle princesse et pour aider les aborigènes à obtenir la victoire finale. De plus, le portrait idyllique qui nous est brossé des aborigènes à la peau bleue fait l’impasse sur leur propre hiérarchie sociale, sans doute de nature oppressive dans la mesure où ils ont une princesse.”
Em livre tradução:
“Mas é muito fácil descobrir que, sob os motivos tão evidentemente politicamente corretos (um Branco honesto tomando a causa dos aborígenes ecologicamente corretos contra o ‘complexo militar-industrial’ dos invasores imperialistas), está o vasto arsenal de motivos pavorosamente racistas veiculados pelo clichê do ‘homem que queria ser rei’: um náufrago terráqueo, inválido, é suficientemente bom para merecer a mão de uma bela princesa e para ajudar os aborígenes a obter a vitória final. Além do mais, o retrato idílico que nos é pintado dos aborígenes da pele azul forma um impasse com a sua própria hierarquia social, sem dúvida de natureza opressora, na medida em que eles possuem uma princesa.”
O autor pode conhecer muito de Marx e de Lacan, mas pouco teve contato com a Antropologia, aparentemente. Quem foi que disse que um grupo claramente representado como uma tribo “aborígene” deverá possuir uma estrutura social “opressora” somente por utilizar-se de uma princesa? Ao som de quaisquer palavras que evoquem “aristocracia”, o autor (nitidamente “de esquerda”) parece já se tremer todo de indignação, certamente lembrando-se das formas mais abjetas de governo do “antigo regime” na Europa, como o Absolutismo ou o Czarismo.
No entanto, quem foi que disse que quaisquer aborígenes, somente por terem uma “princesa”, serão “absolutistas”? Tal colocação cheira vergonhosamente etnocêntrica para um intelectual do porte e fama de Žižek, não? Isso lembra os “cronistas do descobrimento” do nosso Brasil, que se escandalizavam à dedução de que os índios não deveriam ter “fé”, nem “lei”, nem “rei”, uma vez que não se encontravam em seu alfabeto as letras F, L e R. Mas devolvamos a palavra ao filósofo:
“La leçon du film est donc claire: les aborigènes n’ont d’autre choix que d’être sauvés ou détruits par les humains – dans les deux cas ils ne sont qu’un jouet entre des mains humaines. Au final, ils devront choisir entre la soumission à la brutale réalité impérialiste ou jouer les figurants dans la fantasme de l’homme blanc.”
“A lição do filme é, portanto, clara: os aborígenes não têm outra escolha do que serem salvos ou destruídos por mãos humanas – em ambos os casos, eles não passam de um joguete entre mãos humanas. No final, deverão escolher entre se submeter à realidade brutal do imperialismo ou desempenhar papel de meros figurantes para (as façanhas) do fantasma do homem branco (herói do filme).”
Como contra-exemplo (ideologicamente mais “sadio”) do que acontece em Avatar, o autor nos conta a notável história – real – de uma guerrilha que está acontecendo na Índia, neste exato momento (as fontes citadas datam de novembro do ano passado). Trata-se de uma situação em princípio assustadoramente similar à do filme de Cameron: as colinas habitadas pela tribo Dongria Kondh, no estado indiano de Orissa, foram vendidas a companhias mineradoras que visam explorar as suas copiosas reservas de bauxita.
Segundo Žižek, em resposta a tal intento, formou-se dentre os habitantes uma rebelião maoísta, de características naxalistas (movimento comunista iniciado naquele país durante os anos 1960 que se destaca pela intensa violência das ações). Depois de defender veementemente a guerrilha em Orissa, o autor declara:
“Alors, quel rapport avec le film de Cameron? Aucun: dans l’Orissa, il n’y a pas de nobles princesses attendant les héros blancs qui les séduiront et défendront leur people; il n’y a qu’une guérrilla maoïste qui organise des fermiers affamés.”
“Então, qual a ligação com o filme de Cameron? Nenhuma: em Orissa, não há nobres princesas esperando por heróis brancos que as seduzam e defendam o seu povo; não há nada além de uma guerrilha maoísta que organiza os camponeses esfomeados.”
Muito bem. Eis a delicada pedra de toque: não seria Mao justamente esse herói “branco” (no caso, amarelo – com o perdão da brincadeira) que seduzirá os camponeses e camponesas, os quais, segundo Žižek, vivem em estado bastante “primitivo”, sem contato nem conhecimento em relação a quase nada da “civilização”? De qualquer maneira, os “aborígenes” indianos não possuem escolha por si sós – assim como em Avatar –, dependendo sempre de algum elemento vindo de fora, vindo de povos mais “evoluídos”.
Colocando nos termos do próprio filósofo, ou os Dongria Kondh se submetem ao imperialismo neoliberal, ou eles se fazem de figurantes na universal batalha do socialismo marxista contra o capitalismo. Sim, pois, a deduzir das descrições de Žižek, não se trata de uma revolta natural e espontânea dos habitantes de Orissa; tampouco será o caso, provavelmente, de algum ou alguns deles terem lido ou tomarem algum conhecimento pessoal dos ideais maoístas e decidirem aplicá-los ao seu legítimo movimento.
Tomando como base apenas os fatos mostrados pelo filósofo com a malícia dos discursos daquela esquerda mais fundamentalista que se coloca quase como representante da vontade e da verdade divinas, imaginamos que terá sido algum militante naxalista quem buscou os Dongria Kondh e pregou a eles o evangelho da Revolução. Então, qual a ligação com o filme de Cameron? Todas.
A primeira imagem do filme é uma tomada aérea sobre a selva de Pandora – num movimento veloz e levemente descendente, enquanto a voz em “off” de Jake Sully (o protagonista) nos conta dos seus sonhos de “voar”, constantes durante o período em que estava preso a uma cama de hospital, convalescendo do evento que lhe tiraria o movimento das pernas (Jake é um fuzileiro naval).
Vendo-se o filme em 3D (tudo o que falaremos aqui tem como pressuposto tal modo de exibição), esse primeiríssimo plano produz no espectador uma vertigem que já anuncia, sem maiores preparativos, a quase violência da experiência quase física que James Cameron nos apresenta. Levando-se em conta a voz em “off”, não há dúvida alguma de que o plano em questão se trata de um “câmera subjetiva”.
Com isso, faz valer logo de início o princípio mais elementar da arte, da ciência e da indústria hollywoodianas: a identificação entre espectador e personagem. Soberbamente exibindo já todo o poder da tecnologia inventada para este filme, Cameron nos faz sentir – mais do que simplesmente ver – o mesmo que nosso herói. Somos nós que voamos, com a trilha sonora das palavras de devaneio de Jake Sully.
Assim como ele, nossos movimentos propriamente físicos encontram-se reduzidos: enquanto o personagem encontra-se paraplégico, o espectador – com o perdão da má comparação – numa sala de cinema dispõe menos do movimento das pernas do que dos braços (todos conhecemos muito bem esse desconforto). Dessa maneira, a cama de hospital, a cadeira de rodas, o “caixão” – através do qual a consciência de Jake será transferida para o corpo do avatar – e a poltrona na sala escura são figurações de uma mesma condição.
Trata-se da imobilidade do corpo que permitirá à alma perceber e vivenciar uma hiper-realidade. Como espírito desencarnado, Jake Sully ocupa momentaneamente (e no final, definitivamente) o corpo do avatar, vestindo-se dos seus sentidos (principalmente o tato e a visão) da mesma maneira que nós ocupamos o corpo dele e também o do avatar. A “catch phrase” do casal Jake-Neytiri tem um significado fundamental no jogo: “I see you” (eu vejo você) é uma confirmação da verdade da percepção visual e da realidade do objeto presente.
É o cinema em 3D argumentando que não se trata somente de uma simulação, mas da eliminação da ausência, da distância intransponível em qualquer forma de representação. É evidente que o 3D não torna presente, em si, o objeto; mas, para todos os efeitos (que são justamente os sensoriais / perceptivos – os que mais interessam), a coisa está sim colocada à nossa disposição. Só falta acrescentar: “I touch you”.
Avatar realiza particularmente bem a vocação da sala de cinema para “caverna de Platão”. Tal associação foi primeiro estabelecida pelo teórico Jean-Louis Baudry, pioneiro em estudar o dispositivo cinematográfico (cunhando o próprio termo, que se refere ao conjunto dos elementos materiais envolvidos na produção, circulação e recepção de filmes). Reproduzo algumas palavras do autor, explicadas por Jacques Aumont:
“Baudry constata que o dispositivo cinematográfico determina um estado regressivo artificial, acompanhado do que chama “uma relação recobrindo a realidade” (ausência de delimitação do corpo, que parece fundir-se no mundo diegético, na imagem): ‘O aparelho de simulação consiste [...] em transformar uma percepção em uma quase-alucinação, dotada de um efeito de real incomparável ao que é trazido pela simples percepção’. Baudry ressalta a parte de nostalgia própria a esse dispositivo, que se especifica em várias direções: regressão narcisista, assimilação ao sonho, mas também retorno a um passado mítico, no caso, o mito platônico da caverna. No ‘Le Dispositif’, Baudry traça assim um longo paralelo entre a situação do espectador de filme e a dos escravos acorrentados da parábola de Platão, condenados a verem da realidade apenas as sombras projetadas na parede diante deles.” (“A Imagem”. 14ª ed. São Paulo: Papirus, 2009. p.189)
“Ausência de delimitação do corpo, que parece fundir-se no mundo diegético”; “quase-alucinação”; “assimilação ao sonho”; “retorno a um passado mítico”; palavras que podem ser muito, muito facilmente aplicadas a Avatar, que parece investir nessas características do dispositivo-cinema mais e além de qualquer outra produção jamais realizada. Não é pequena ou gratuita a ambição de James Cameron.
Fiquemos com as maiores evidências: 1. a “assimilação ao sonho” já se produz na primeira imagem do filme, nas primeiras palavras ditas, conforme analisamos. O onírico (as proporções gigantescas de tudo em Pandora, suas cores vivas e talvez a própria textura da luz e das imagens em computação gráfica) é uma das maiores forças, ontológicas, fenomenológicas ou estéticas, de Avatar.
E o sonho, em sua expressão de arquétipos / símbolos, nos conduz invariavelmente ao: 2. o “retorno ao passado mítico”, que se faz presente na “era de ouro” em que vivem os Na’Vi’s, numa perfeita comunhão idílica com a natureza-mãe (E’nya), uma natureza mítica, dotada de poder e vontade numinosos. Agora, o fato não tão arrebatador é que essa “realidade” é sugerida ao espectador pelo método “caverna platônica”.
Sonhos de voar: não é à toa que a mise-en-scène de Avatar privilegie espaços elevados e o próprio espaço “aéreo”. Mais do que esses, as cenas de ação mais tensas do filme parecem tomar lugar nas bordas, nas beiras de precipícios e de quedas de variada ordem. Outra argumentação do 3D em sua própria defesa e busca de legitimidade: James Cameron parece procurar deixar o próprio espectador constantemente na iminência da queda, no perigo indescritível de se cair – ou dar um passo – além do limite que separa o solo do vazio.
Esse tenso contraste entre o apego confortável a um chão e o arremesso para o ar infinitamente desproporcional também é uma fonte na qual o filme nutre boa parte de sua filosofia e estética perceptivo-sensoriais. No limite, o medo que o espectador sente de ser lançado ao vazio é o medo de que o cinema realize total e irremediavelmente a “ausência de delimitação do corpo”.
A ideia é: se emprestarmos nosso corpo para se fundir à imagem diegética, quem garante que ele nos será devolvido? A “quase-alucinação” do dispositivo-Avatar (sim, pois este filme concentra em si todo um Cinema) produzirá, para o melhor e para o pior, efeitos similares aos de drogas alucinógenas: incluindo, naturalmente, a “bad trip”. E talvez, até mesmo o “flashback”: revendo o filme em DVD (logicamente, em 2D), posso afirmar seguramente que senti em meu corpo como que “ecos” das sensações físicas que experimentei no cinema, durante as cenas de ação mais tensas de que falei.
James Cameron realizou o sonho – ou pesadelo – de muitos cineastas, teóricos e críticos: a criação de um cinema do qual não saímos imunes em qualquer maneira – física, emotiva ou intelectualmente. Em relação a esta última, partamos agora para uma outra discussão, antes de darmos por encerrada esta revisão (crítica) de Avatar. A crítica marxista de cinema, particularmente nos anos de 1960, discutia ardorosamente as implicações ideológicas do dispositivo e da estética da sétima arte.
Os críticos argumentavam que uma característica fundamental da ideologia burguesa era precisamente disfarçar-se enquanto ideologia, enquanto discurso, e “naturalizar-se” como dado inquestionável de realidade – conseqüentemente, de verdade. Tal estratégia teria em vista a mais eficiente manutenção do “status quo”, produzindo alienação por todos os cantos. Para tanto, o cinema produzido, divulgado e recebido em escalas industriais, e segundo parâmetros bastante convencionais de forma e de conteúdo, aparecia como instrumento privilegiado.
Mas o problema dessa crítica é: em seus textos, os autores não costumavam se referir à “ideologia burguesa”; e sim, simplesmente à “ideologia”. Ora, sabemos que eles estavam falando da visão de mundo da burguesia; mas, a tomar o sentido exato de suas palavras, o que se dizia poderia ser aplicado a qualquer ideologia, não? Inclusive – por que não? – à ideologia marxista / socialista.
Trocando em miúdos: ou se especifique que é a ideologia burguesa que possui o interesse próprio de se disfarçar para melhor persuadir, ou se continua dizendo que a ideologia possui o interesse próprio de se disfarçar para melhor persuadir; mas, neste caso, admita-se como ideologia não só a capitalista, mas também a socialista, a cristã, a budista, a hedonista, etc.
Tal precaução evitaria a contradição de se criticar as manipulações reacionárias em favor de uma “transparência” que não é nada mais do que outra forma – tão disfarçada e sofisticada quanto – de manipulação: a revolucionária. A não ser, é claro, que se admita como um dado de fato e de direito a “manipulação”. Mas por que estamos falando de tudo isto? Por ser justamente em tal contradição que cai um intelectual / filósofo famoso da atualidade: Slavoj Žižek.
Pensador fortemente armado de referenciais marxistas e psicanalíticos (principalmente lacanianos) na análise das produções da indústria de Hollywood, Žižek escreveu um artigo sobre Avatar para a edição de março último da clássica revista “Cahiers du Cinéma” (ele também costuma escrever esporadicamente para o caderno “Mais” da “Folha de S. Paulo”). Sob o título “Avatar: un exercice d’ideologie politiquement correcte” (Avatar: um exercício de ideologia politicamente correta), o filósofo dispara toda sua munição crítica contra a hipocrisia desse mesmo “exercício” praticado por James Cameron.
Passemos a palavra ao próprio:
“Mais il est facile de découvrir, sous les motifs si évidemment politiquement corrects (un Blanc honnête prenant fait et cause pour d’ecologiquement corrects aborigènes contre le ‘complexe militaro-industriel’ des envahisseurs impérialistes), le vaste arsenal des motifs honteusement racistes véhiculés par le clichê de ‘l’homme qui voulait devenir roi’: un naufragé terrien invalide est assez bon pour mériter la main d’une belle princesse et pour aider les aborigènes à obtenir la victoire finale. De plus, le portrait idyllique qui nous est brossé des aborigènes à la peau bleue fait l’impasse sur leur propre hiérarchie sociale, sans doute de nature oppressive dans la mesure où ils ont une princesse.”
Em livre tradução:
“Mas é muito fácil descobrir que, sob os motivos tão evidentemente politicamente corretos (um Branco honesto tomando a causa dos aborígenes ecologicamente corretos contra o ‘complexo militar-industrial’ dos invasores imperialistas), está o vasto arsenal de motivos pavorosamente racistas veiculados pelo clichê do ‘homem que queria ser rei’: um náufrago terráqueo, inválido, é suficientemente bom para merecer a mão de uma bela princesa e para ajudar os aborígenes a obter a vitória final. Além do mais, o retrato idílico que nos é pintado dos aborígenes da pele azul forma um impasse com a sua própria hierarquia social, sem dúvida de natureza opressora, na medida em que eles possuem uma princesa.”
O autor pode conhecer muito de Marx e de Lacan, mas pouco teve contato com a Antropologia, aparentemente. Quem foi que disse que um grupo claramente representado como uma tribo “aborígene” deverá possuir uma estrutura social “opressora” somente por utilizar-se de uma princesa? Ao som de quaisquer palavras que evoquem “aristocracia”, o autor (nitidamente “de esquerda”) parece já se tremer todo de indignação, certamente lembrando-se das formas mais abjetas de governo do “antigo regime” na Europa, como o Absolutismo ou o Czarismo.
No entanto, quem foi que disse que quaisquer aborígenes, somente por terem uma “princesa”, serão “absolutistas”? Tal colocação cheira vergonhosamente etnocêntrica para um intelectual do porte e fama de Žižek, não? Isso lembra os “cronistas do descobrimento” do nosso Brasil, que se escandalizavam à dedução de que os índios não deveriam ter “fé”, nem “lei”, nem “rei”, uma vez que não se encontravam em seu alfabeto as letras F, L e R. Mas devolvamos a palavra ao filósofo:
“La leçon du film est donc claire: les aborigènes n’ont d’autre choix que d’être sauvés ou détruits par les humains – dans les deux cas ils ne sont qu’un jouet entre des mains humaines. Au final, ils devront choisir entre la soumission à la brutale réalité impérialiste ou jouer les figurants dans la fantasme de l’homme blanc.”
“A lição do filme é, portanto, clara: os aborígenes não têm outra escolha do que serem salvos ou destruídos por mãos humanas – em ambos os casos, eles não passam de um joguete entre mãos humanas. No final, deverão escolher entre se submeter à realidade brutal do imperialismo ou desempenhar papel de meros figurantes para (as façanhas) do fantasma do homem branco (herói do filme).”
Como contra-exemplo (ideologicamente mais “sadio”) do que acontece em Avatar, o autor nos conta a notável história – real – de uma guerrilha que está acontecendo na Índia, neste exato momento (as fontes citadas datam de novembro do ano passado). Trata-se de uma situação em princípio assustadoramente similar à do filme de Cameron: as colinas habitadas pela tribo Dongria Kondh, no estado indiano de Orissa, foram vendidas a companhias mineradoras que visam explorar as suas copiosas reservas de bauxita.
Segundo Žižek, em resposta a tal intento, formou-se dentre os habitantes uma rebelião maoísta, de características naxalistas (movimento comunista iniciado naquele país durante os anos 1960 que se destaca pela intensa violência das ações). Depois de defender veementemente a guerrilha em Orissa, o autor declara:
“Alors, quel rapport avec le film de Cameron? Aucun: dans l’Orissa, il n’y a pas de nobles princesses attendant les héros blancs qui les séduiront et défendront leur people; il n’y a qu’une guérrilla maoïste qui organise des fermiers affamés.”
“Então, qual a ligação com o filme de Cameron? Nenhuma: em Orissa, não há nobres princesas esperando por heróis brancos que as seduzam e defendam o seu povo; não há nada além de uma guerrilha maoísta que organiza os camponeses esfomeados.”
Muito bem. Eis a delicada pedra de toque: não seria Mao justamente esse herói “branco” (no caso, amarelo – com o perdão da brincadeira) que seduzirá os camponeses e camponesas, os quais, segundo Žižek, vivem em estado bastante “primitivo”, sem contato nem conhecimento em relação a quase nada da “civilização”? De qualquer maneira, os “aborígenes” indianos não possuem escolha por si sós – assim como em Avatar –, dependendo sempre de algum elemento vindo de fora, vindo de povos mais “evoluídos”.
Colocando nos termos do próprio filósofo, ou os Dongria Kondh se submetem ao imperialismo neoliberal, ou eles se fazem de figurantes na universal batalha do socialismo marxista contra o capitalismo. Sim, pois, a deduzir das descrições de Žižek, não se trata de uma revolta natural e espontânea dos habitantes de Orissa; tampouco será o caso, provavelmente, de algum ou alguns deles terem lido ou tomarem algum conhecimento pessoal dos ideais maoístas e decidirem aplicá-los ao seu legítimo movimento.
Tomando como base apenas os fatos mostrados pelo filósofo com a malícia dos discursos daquela esquerda mais fundamentalista que se coloca quase como representante da vontade e da verdade divinas, imaginamos que terá sido algum militante naxalista quem buscou os Dongria Kondh e pregou a eles o evangelho da Revolução. Então, qual a ligação com o filme de Cameron? Todas.
6 comentários:
Caro amigo: mesmo podendo discordar de alguns aspectos por, em minha opinião, se poderem afastar do cerne da questão, os meus parabéns pela crítica, embora continue (por enquanto?) a gostar mais do "cinema clássico" (sem 3D).
Eu também prefiro o cinema clássico e o antigo. De qualquer maneira, é interessante acompanhar os debates em torno do 3D.
Sem querer monopolizar, só mais uma achega: uma das coisas de que gosto muito é ler teatro. Ora aí só estão as falas (escritas) dos actores e, às vezes, um esboço das cenas. Talvez por isso goste também muito do cinema despojado de grandes artifícios, em que a imagem é fundamental, complementada pelo som (mas há obras-primas absolutas no cinema mudo, que ainda hoje nos tocam profundamente).
abraço
Acredito que os artifícios, se bem trabalhados, dão uma plasticidade incrível para a imagem (veja-se a obra de Tim Burton). Mas o despojamento também é muito interessante quando se quer compor com os elementos internos à própria imagem (citando o caso do cinema mudo, vejam-se os filmes de Dreyer, verdadeiras composições renascentistas - no dizer de Bazin).
Cara, excelente texto. E concordo totalmente sobre esta ligação personagem-audiência manifestada logo de início.
Ainda bem que fala no Tim Burton, porque é um dos meus cineastas norte-americanos preferidos, entre os vivos e activos! Aí está de facto um caso em que os efeitos especiais não me parecem gratuitos.
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