domingo, maio 02, 2010

Alice no País das Maravilhas



Até que ponto a autoria é possível – e desejável – no cinema industrial? A questão já se tornou banal, muito por conta de opiniões superficiais e engessadas produzidas pelos dois lados em debate (os que defendem e os que atacam os produtos da onipresente indústria cultural), mas ainda não perdeu a sua pertinência. Vamos aos fatos. Desmantelando os pavores dos mais “revolucionários”, não existe um projeto burguês pura e simplesmente que se muna dos instrumentos culturais para legitimar e difundir sua ideologia aos quatro ventos, produzindo alienação e reproduzindo ad infinitum as condições da sociedade capitalista.

Uma das marcas mais visíveis do sistema é a sua inerente contradição. A realidade social e cultural é – felizmente – muito mais complexa do que pretendem as formas de análise marxistas mais engessadas. É uma pobreza dizer que um filme de Hollywood apenas vende “ideologia”. Por outro lado, é preciso sempre tomar cuidado com o entusiasmo eventualmente despertado por tais filmes; o crítico não deve abandonar nunca seu aparato... crítico! Os meios de produção e de recepção de um filme (econômicos, políticos, históricos e sociais) precisam ser levados em conta na compreensão da obra.

De qualquer maneira, parece-nos que é na interação – propriamente dialética – entre um olhar aberto e um olhar desconfiado que se produzirá uma boa análise fílmica. Assim, como podemos nos aproximar da Alice no País das Maravilhas (“Alice in Wonderland”, EUA, 2010), a mais nova – e aguardada – empresa da marca “Tim Burton”? Digamo-lo logo de saída: o filme é uma decepção. Em primeiro lugar, porque a famosa poética do nonsense, tão peculiar a Lewis Carroll, autor do clássico do qual Burton desejou fazer a “sequência”, foi quase que absolutamente constrangida e emparedada dentro das piores e mais banais convenções do cinema “de aventuras”.

As peripécias da Alice de Burton são por demais lógicas, previsíveis a ponto de dar sono (mesmo na gloriosa sala I-MAX 3D). A narrativa não convence. Acompanhamos o filme com a forte impressão de que nada, absolutamente nada do que a protagonista enfrenta constitui um desafio verdadeiro, um desafio no qual se veja a menor sombra do perigo, do fracasso, da reviravolta inesperada. É tudo muito esquematizado. Parece que a história foi pensada a partir da leitura mais apressada da mais resumida cartilha de “como-escrever-contos-de-fadas”. Não convém colocar Alice na mesma estante de grandes fábulas produzidas por Hollywood:

desde Avatar (de James Cameron) e de O Senhor dos Anéis (de Peter Jackson) até os filmes anteriores de Tim Burton, como O Estranho Mundo de Jack (dirigido por Peter Selick sobre roteiro de Burton) e Edward Mãos de Tesoura (do próprio). Veja-se bem: não esperávamos que Alice inoculasse doses de um discurso “de esquerda” dentro do cinemão, como fazem o já citado Avatar e o já clássico Matrix. Mas, mesmo dentro dos parâmetros da própria carreira de Burton e das fórmulas mais tradicionais do blockbuster, esta Alice é um mau produto. Mesmo que façamos de conta que Lewis Carroll nunca existiu (para tentar minimizar os danos).

E torcemos nossos narizes não somente para a estrutura narrativa rala e a capacidade de fabulação afásica do discurso de Burton e sua roteirista (em relação a ele, falta de criatividade deveria ser considerada um pecado contra o Espírito Santo, imperdoável). Sua Alice parece propagar uma mensagem e encarnar uma ideologia questionáveis – para dizer o mínimo. Não precisamos ficar aqui lamentando o quão ingênuas são aquelas opiniões “revolucionárias” a respeito de filmes “hollywoodianos”, as quais apontamos anteriormente. Mas, desta vez, Tim Burton dará um prato cheio para elas.

E o efeito mais infeliz disso é “queimar o filme” (ainda mais) das boas produções industriais, aos olhos daqueles “críticos” que já não costumam ver esse tipo de filme com a devida atenção e daqueles (e isso é o mais infeliz de tudo) espectadores sob a sua esfera nefasta de influência. Muito obrigado, Sr. Burton, por entregar de mão-beijada a sua arte; por entregá-la não simplesmente ao comércio, mas à forma mais abjeta de comércio. Convenhamos: transformar, no final do filme, Alice numa CEO do imperialismo britânico é forçar a amizade do espectador, não? Quanta desfaçatez...

De quem terá sido essa decisão? Do próprio diretor? Da roteirista? De algum executivo dos estúdios Disney? Do projeto burguês inserido no neoliberalismo (e neo-imperialismo) global? Não interessa saber. O fato é que, em termos da arte, cultura e entretenimento que merecem Lewis Carroll e o próprio cinema (não importando qual seja), batizar de “Wonder” um navio de “comércio” com a China é de uma infelicidade quase indizível. Não obstante, em favor da análise dialética que propusemos no começo, poderia-se contra-argumentar que a sequência dada por Burton às aventuras da Alice de Carroll insere-se dentro da visão de mundo dominante na era vitoriana, em relação à qual o filme seria bastante coerente.

Por exemplo: seria um anacronismo de nossa parte desqualificar os Lusíadas – patrimonial epopéia de Camões – por “defender” o colonialismo, quando o poeta diz: “E entre gente remota edificaram / Novo reino, que tanto sublimaram.” Assim, a Alice imperialista de Burton nada mais representaria do que valores e projetos de vida muito caros à época de Lewis Carroll. Mas tal interpretação comporta dois problemas. Primeiramente, ela sugere que este filme teria se baseado nas análises psicanalíticas mais maliciosas (e reducionistas) da Alice original, entendendo a história como uma mera simbolização do processo de crescimento e amadurecimento do indivíduo

– mais uma vez, o nonsense do autor sofre as piores coerções. Tim Burton parece, de fato, ter seguido essa linha. A sua Alice já tem 19 anos e está prestes a ser “premiada” com um casamento arranjado. O inconformismo dela e o seu comportamento irreverente na festa de noivado mostram que a personagem é uma daquelas almas “de artista”, num sentido romântico bem próprio a Burton (quem não se lembra de Jack Skellington, ou de Vincent?). Neste momento, logo do começo, promete-se um grande filme. Mas tal não se cumprirá, infelizmente.

Por isso, é ainda mais trágico vermos, no final, essa mesma Alice “capitalizando” seu inconformismo e imaginação criativa, canalizando-os naquela forma mais perfeitamente “lógica” do empreendedorismo, onipresente em tantos livros e palestras de auto-ajuda. Entretanto, é este o processo de crescimento rumo à vida “adulta” que Tim Burton parece querer afirmar; a contradição aqui chega ao seu paroxismo, se formos nos lembrar das velhas ideologias do artista romântico, sobre as quais o cineasta parece ter construído – até agora – sua persona e sua obra.

Esta Alice não passa de uma narrativa exemplar para os adolescentes de hoje, que precisam tomar rumo na vida após o Ensino Médio. O fato de ela ter rejeitado definitivamente o casamento arranjado e boa parte do projeto de vida que os padrões burgueses / aristocráticos impunham às mulheres da era vitoriana não deve ser interpretado como algo propriamente subversivo. Quando muito, isso é uma daquelas formas mais datadas e reacionárias de “feminismo”. Tudo bem, é ótimo para as mulheres saírem do fogão e passarem a comandar corporações. Mas o fato a ser devidamente observado aqui é: não devem existir corporações!

Existe um modelo econômico que deve ser em si mesmo questionado, não importa quem o comande: homem ou mulher, negro ou branco, hétero ou homossexual, etc. Um ditador é sempre um ditador. Isso nos leva ao segundo problema daquela possível leitura “positiva” que poderíamos fazer de Alice. Se este filme tivesse sido produzido na época histórica em que o empreendimento imperialista tinha de fato prestígio e legitimidade (século XIX), poderíamos até aceitar o seu discurso como ele é – sob a pena de incorrermos na crítica anacrônica que aplicamos hipoteticamente a respeito de Camões.

Mas, em um mundo no qual se faz presente (supostamente) uma Organização das Nações Unidas, seria no mínimo irresponsabilidade (e no máximo, malícia) um filme como este pretender apenas retratar a visão de mundo de uma época. Ou seja, Tim Burton e cia. são ou ingênuos demais ou estrategistas ideológicos com pouca sutileza e escrúpulo. Em outras palavras: para ser coerente consigo mesmo (apenas representando a mentalidade imperialista da maneira heróica como ela aparecia em produtos culturais da época, tais como os romances que narram as aventuras de Allan Quatermain – como “As Minas do Rei Salomão”,

escritos por H. R. Haggard, ou as narrativas infanto-juvenis de Rudyard Kipling, como “Kim”; claro está que Lewis Carroll não se enquadra nesses casos), o filme tem que contradizer muitos discursos legítimos de nossa época (em que se costuma criticar o imperialismo do XIX, correndo o risco, por isso mesmo, de ser interpretado como condescendente ou apologético em relação a tal sistema econômico; ou seja, não faz o menor sentido o fato de Tim Burton, hoje, querer produzir uma obra nas mesmas condições da forma mais baixa da literatura-entretenimento do século retrasado; mesmo uma possível ironia – como Paul Verhoeven faz em Tropas Estelares, de 1997 – estaria fora de questão; Alice parece ser um filme sério no que mostra).

Agora, pode ser que Alice seja mesmo uma propaganda das formas equivalentes desse imperialismo que ainda resistem hoje em dia, defendendo os interesses de grupos sociais poderosos que estão por detrás de toda esta máquina cinema-economia. Neste caso, a produção (roteiro) do filme seria coerente com a realidade mostrada (século XIX) e também com certos discursos mais ou menos legítimos de hoje (as formas de imperialismo em nosso tempo são mais sutis e menos confessas do que antigamente). Mas, de qualquer maneira, Lewis Carroll ainda se reviraria em seu caixão. Mataram a poesia.

9 comentários:

Wally disse...

Quem diria. Um dos grandes poetas visuais do Cinema, Tim Burton mataria a poesia literária de "Alice no País das Maravilhas"... Fiquei ainda mais desanimado agora depois de sua crítica.

André Renato disse...

Veja o filme, tudo vale a pena ser visto... Só não é exatamente o que esperávamos...

Kico Santos disse...

Belo texto André! Vou começar a acompanhar o seu blog, parabéns..

Anônimo disse...

Pobre poesia. Mas dessa vez ela esta com O Mundo Imaginario do Dr. Parnassus, aguardo uma critica sua desse maravilhoso filme.

André Renato disse...

Estou para assistir! E escreverei sobre ele com certeza...

Roberta Durán disse...

Acabo de ver o filme (bem "atrasadamente") e tive a mesma decepção. Achei esta crítica por acaso, ao procurar "alice + imperialismo" no google, hehehe!
Felicitações! Excelente texto!

Malva Mauvais disse...

"Sua Alice parece propagar uma mensagem e encarnar uma ideologia questionáveis – para dizer o mínimo" >> Perfeito. E eu diria mais: trata-se de uma traição à obra de Lewis, representante do nonsense, um dos braços do Romantismo, movimento que representou uma reação à sociedade burguesa que estava se estabelecendo.
Estava aqui procurando imagens do Dr. Parnassus, minha próxima crítica, e achei link pro seu texto. Gostei muito! Abs.

Anônimo disse...

Ah, já passei por aqui... rs... Mas não vou deixar de dizer que essa frse é um achado: "batizar de “Wonder” um navio de “comércio” com a China é de uma infelicidade quase indizível".

Unknown disse...

Atrevo-me a recomendar amplamente Alice no País das Maravilhas! Uma vez que é um filme que, apesar de ser fantasia, interpreta temas muito interessantes, tais como valores de amor e amizade, mas também mostra o que uma pessoa pode fazer para ganhar o poder, em suma, me fascina! Cumprimentos e obrigado pela informação!