quinta-feira, abril 15, 2010

O Sangue das Bestas


A primeira imagem que aparece na tela é a da estátua brônzea de um imponente touro no alto de um pedestal. Tal monumento deve provavelmente adornar uma praça qualquer numa cidade qualquer. E qualquer que seja a sua função citadina, Georges Franju esvazia aquele belo touro de qualquer alegoria moderna e desloca a sua figura contundente para servir de referência irônica / melancólica a tempos mais ingênuos e remotos, nos quais prestávamos tributo às divindades teriomórficas que nos concediam as dádivas da caça. Diversas mitologias primitivas baseiam-se na comunhão equilibrada entre o homem e a natureza, a qual garantia a (boa) sobrevivência do todo. O deus-animal devia ser reverenciado com o devido temor pelos caçadores de almas compungidas. A caça e a sua preparação eram exercidas como rituais. Dessa atividade nasceu a arte: as pinturas rupestres de bisões que eram mais do que meras representações, eram a magia em ação, a indissociabilidade entre código e referente.

O diretor Georges Franju munir-se-á justamente do poder de índice da imagem cinematográfica para lamentar a desmitologização das relações humanas com a carne da qual nossa espécie se alimenta. Ao touro de bronze sobrepor-se-á o título do filme: O Sangue das Bestas (“Le Sang des Bêtes”, França, 1948). Na era da indústria, esse sangue já não é o vinho sacrificial do cordeiro imolado. Esse sangue é apenas resíduo industrial, a escorrer lavado para os ralos do piso imundo do matadouro. Os cordeiros – pelo menos uns dez deles – são enfileirados de barriga para cima ao longo de uma grande bancada e, um a um, rapidamente degolados. Ficam as patas agitando-se convulsivamente no ar, em reflexo post-mortem. Este curta-metragem documental de Franju (apenas 20 minutos) é todo estruturado em imagens inconsolavelmente agressivas, mostrando fatos explícitos e banais do funcionamento de uma indústria cujas entranhas poucos de nós – consumidores de carne – conhecemos a fundo. Abstemo-nos de conhecer.

Mas o que faz deste um grande filme não é o choque ultrarrealista da “denúncia”. A violência no cinema, entregue à plástica da sua própria brutalidade, não passa de mau gosto: veja-se como exemplo o também documentário Terráqueos (“Earthlings”, EUA, 2007, dir.: Shaun Monson), que não passa de um muito superficial proselitismo vegano. Georges Franju, por sua vez, é artista crítico e sensível o suficiente para sublimar esteticamente tal violência – o que não quer dizer necessariamente que ele deva eclipsá-la. O cineasta mostra tudo o que deve mostrar, mas procurando extrair de tudo uma fotogenia de aspecto onírico; eis a sua poesia. Por exemplo, a referida cena dos cordeiros mostra em profundidade de campo as inúmeras patas sacudindo descontroladamente, formando um balé do absurdo; as linhas desenhadas por sua movimentação vão sugerindo um sentido de abstração propriamente surreal. O brilho da fotografia em preto-e-branco, a névoa e o vapor, os gestos automáticos dos trabalhadores do matadouro em sua sangrenta lida (são profissionais), tudo isso vai construindo a poética de sereno pesadelo peculiar a este filme.

Noel Burch (“Práxis do Cinema”. 1ª ed. São Paulo: Perspectiva, 1992.) afirma que o cinema-verdade de Franju é o das “meditações poéticas” (p.191). Estas aproximam-se mais do ensaio do que da tese – tal liberdade das formas, juntamente de sua inerente humildade, faz também com que O Sangue das Bestas seja mais digno do que “Terráqueos”. O contraponto (irônico ou não) é igualmente característica do estilo meditativo e poético de Geoorges Franju. As estruturas de agressão do filme que estamos discutindo são balanceadas por imagens que evocam todo o contrário. Por exemplo, no começo somos apresentados a imagens singelas das periferias de Paris e sua vida quase bucólica: crianças brincando, moças bonitas ao sol, um lustre pendurado num galho de árvore (já revelando o gosto pela condensação surreal do diretor). Em seguida, vemos um belo e forte cavalo branco sendo conduzido calmamente pelas rédeas para dentro de um galpão. Quando menos nos damos conta, vemo-lo de um só golpe sendo abatido e imediatamente começando o processo de dissecação (na França se come carne de cavalo).

O propósito objetivo dessa cena é situar o matadouro dentro de um espaço urbano específico. A idéia é: podemos ser vizinhos de uma dessas casas de barbárie e sequer nos darmos conta. Tal estrutura se repetirá ao serem mostrados outros matadouros franceses, nos quais veremos gado, ovelhas e até mesmo novilhos – em relação a esses últimos, é grotescamente belo o plano que mostra os troncos sem couro de uns quatro ou cinco animais, dispostos por sobre mesas numa composição em perspectiva. Outras imagens, de estripação, evocam pela crueza as agressões barrocas de um Rembrandt (“Boi Abatido” c.1643 – óleo sobre madeira). Faltam, em Franju, as cores. Mas o monocromatismo do filme garante justamente a dose necessária de estetização / abstração que balanceará o choque das imagens por elas próprias e fará com que a fita como um todo seja melhor apreciada e compreendida. Contribui muito também para o balanço da obra o tom objetivo e descritivo da narração em off.

As estruturas podem ser agressivas, mas o discurso do filme (em imagem, som ou verbo) não ataca a inteligência ou a sensibilidade do espectador – o que é mais do que se pode dizer de outros documentários, como o já citado mais acima. Enfim, o que constitui o maior dos contrapontos e a maior das ironias em O Sangue das Bestas é a cena em que os operários do matadouro cantam a famosa e bucólica canção “La Mer” (de Charles Trenet), enquanto exercem seu cruel ofício. A música tem o peso de uma afronta, quase de uma blasfêmia. Toda a cena, em seu espírito, lembra o que será o famoso “número” executado pelo delinquente Alex e seus comparsas ao som de “Singin’ in The Rain”, em Laranja Mecânica (EUA, 1971, dir.: Stanley Kubrick). Tamanha irreverência (no sentido mais literal da palavra) é mesmo própria de um mundo e de um tempo pós-industrial, pós-moderno, desmitologizado, desencantado, no qual os seres todos foram reificados (homens e animais igualmente), seja pelo capital, seja por ideologias quaisquer. As bestas somos todos nós.

2 comentários:

Wally disse...

Intrigante texto. Não conhecia o filme.

André Renato disse...

Este filme faz parte dos extras do DVD de "Os Olhos Sem Rosto" (longa do mesmo diretor), da coleção Magnus Opus, do selo Continental.