sábado, abril 10, 2010

Hiroshima Meu Amor


Primeira sequência do filme (após os créditos iniciais e a enigmática figura que lhes serve de fundo): braços entrelaçados num amálgama lascivo, escorregando por sobre ombros e costas; formas curvilíneas dos corpos em comunhão, em síntese, mostrados em primeiro plano na fotografia em preto-e-branco belíssima de Sacha Vierny (parceiro habitual de Resnais). As imagens desse abraço vão se sucedendo em ritmo cadenciado, sob ângulos diferentes. O efeito que elas criam no espectador é o de um surrealismo onírico, carregado de abstração poética. Ângulos, linhas, curvas e formas geométricas: a vanguarda de Alain Resnais opera suas sugestões ao longo de todo o filme, sistematicamente. A rigidez da composição plástica dos planos de Hiroshima Meu Amor (1959) lembra a estilística dos melhores fotógrafos clássicos da França – particularmente a turma da famosa agência Magnum: Henri Cartier-Bresson, Robert Doisneau... O balé das formas.

Voltando ao abraço: não só no começo, mas muitos outros enquadramentos deste filme, em diferentes cenas, parecem querer promover e emoldurar o encontro macio dos corpos dos amantes. Rosto contra rosto, abraços, beijos, mesmo o encontro dos olhares procura sugerir que Hiroshima Meu Amor estrutura-se e desenvolve-se em torno da troca de carícias – a própria câmera parece dotada de grande carinho pelo casal. Lirismo? Alain Resnais atingiu aqui o verdadeiro estado de poesia, enquanto expressão, sugestão, enquanto função poética da linguagem. Cinema de poesia e não de prosa, pois o elemento narrativo é o de menos aqui (e será menos ainda em Ano Passado em Marienbad – 1961 –, o filme seguinte do diretor). A maneira como os dois personagens caminham pelos espaços, acompanhando um ao outro, ou perseguindo um ao outro, encontrando-se e despedindo-se, parados defronte, detrás ou ao lado um do outro, também segue uma geometria de posicionamento bastante expressiva, quase teatral. O balé dos corpos.

O “experimentalismo” da decupagem de Alain Resnais está nos antípodas das realizações do cinema clássico de Hollywood. Resnais, sozinho, vai além de onde jamais sonharam Orson Welles, os neo-realistas italianos e a nouvelle-vague francesa. Pois nada do que o cineasta coloca na tela está em função (exclusiva) de uma narrativa, de um esquema de ação-reação, causa-consequência, começo-meio-fim, etc. A lógica aqui não é a racional, mas sim a poética: as livres-associações produzidas pelas sensações, pelas lembranças, pelo inconsciente. O casal de amantes em Hiroshima Meu Amor perambula pela cidade e pela vida completamente entregue a essas forças primevas do ser. Cada plano deste filme é dotado de múltiplos significados, uma vez que cada imagem singular (desde a primeira, que já citamos) parece construir uma mistura dialética do tipo Yin e Yang. Um exemplo: a mulher (nunca é revelado o seu nome) olha para o seu amante (também inominado) que dorme de bruços: ela fixa a atenção na palma de sua mão, virada para cima.

Corte seco e vemo-la abraçada a seu antigo amante, recém-assassinado; a mão dele encontra-se na mesma posição. Passado e presente associados; a imagem atual (a da visão) e a imagem virtual (a da lembrança). O balé dos tempos. Hiroshima Meu Amor é o breve idílio de uma atriz francesa (interpretada por Emmanuelle Riva) e um arquiteto japonês (vivido por Eiji Okada), que toma lugar na famosa Hiroshima do final dos anos 50. Ambos são casados – com outras pessoas. O filme todo acompanha as lembranças dela (algumas traumáticas); pouco sabemos sobre o seu parceiro – que posa mais como interlocutor. Mas este homem é um interlocutor crítico: o filme começa com um diálogo entre os dois, no qual ele questiona a validade do conhecimento e das lembranças que ela possui da Hiroshima assolada pela bomba atômica – uma vez que tal conhecimento advém mais de museus e memoriais do que da experiência direta dos acontecimentos.

Ela está de partida, mas ele quer que ela fique, que ela passe mais alguns momentos com ele. Nesse processo, ela vai rememorando a história do seu primeiro amor, com um oficial alemão, na França ocupada (a cidadezinha de Nevers). Com a chegada dos aliados, ele é assassinado e ela sofre a punição típica das colaboracionistas francesas na II Guerra: tem os seus cabelos raspados e é trancada num porão. Assim, constrói-se um interessante paralelo testemunhal entre o pós-guerra na França e no Japão (sabemos que o amante japonês perdeu parentes em Hiroshima), ao mesmo tempo que se desenvolve a história de amor – entre pessoas pouco prováveis. O balé da(s) história(s). O elemento histórico neste filme não é apenas um pano de fundo: é estético o jogo de contrastes entre o trauma da experiência coletiva passada (a história) e o gozo da experiência individual presente (o amor). Essa oposição está ainda mais marcada na figura da mulher.

As identidades particulares de ambos se localizam e se perdem em algum ponto da passagem do individual ao coletivo, ou do coletivo ao individual. Não é à toa que, no final, ele a nomeia de Nevers, e ela o chama de Hiroshima. É mais um elemento dialético no filme. Neste particular, é interessante destacar: Hiroshima Meu Amor talvez seja, ocasionalmente, a maior demonstração dos princípios contidos no símbolo taoísta do “Yin” (o feminino, escuro, passivo, frio) e do “Yang” (o masculino, luminoso, ativo, quente). O roteiro é escrito por Marguerite Duras – um dos nomes proeminentes do noveau roman francês (o “novo romance”, que, nos anos 50 e 60, testará as estruturas romanescas assim como a nouvelle vague o fará com o cinema). E no aspecto literário, não podemos jamais nos esquecer de chamar a atenção para os diálogos e discursos dos dois amantes. As falas se encadeiam como versos de um poema, no ritmo de um poema. Os diálogos são visivelmente pouco realistas, pouco espontâneos.

Vemos claramente que são textos que estão sendo lidos. Mas isso não traz qualquer enrijecimento para as cenas, tendo em vista a proposta – repetimos – poética do filme, e não narrativa. O balé das palavras. Muito interessante também é a relação entre as falas e as imagens, principalmente quando aquelas são pronunciadas em off. As palavras não são comentários redundantes ao que se mostra na tela. Muito pelo contrário. A sucessão das frases e a sucessão dos planos obedecem a encaminhamentos próprios, diferentes, mas sempre complementares num sentido muito especial, que não é o da intelecção da mensagem, mas a sua expressão. O balé do audiovisual. Isso aparece de modo muito especial na segunda seqüência do filme (logo após a do balé dos corpos), em que o homem vai questionando o que a mulher “viu” em Hiroshima enquanto ela vai explicando, e as imagens vão mostrando cenas (reais) da barbárie atômica, impressionantes como as do famoso documentário – também de Resnais –: Noite e Neblina (1955).

Enfim, Hiroshima Meu Amor é uma das obras-primas do cinema de todos os tempos. Mas é preciso entender que se trata de um gênero de filme bastante peculiar (como todos os gêneros, afinal). Isso não quer dizer, logicamente, que a obra de Alain Resnais seja um filme “de gênero”. Apenas, não podemos assistir a ele com os mesmos olhos com que vemos Hitchcock, James Cameron ou Glauber Rocha. A riqueza do cinema vem da sua diversidade – isso pode parecer óbvio, mas não estar preparado para essa diversidade é não aproveitar bem o que toda e qualquer película tem a oferecer. Na literatura, uns leitores gostam mais de prosa, outros de poesia. Uns estão mais acostumados àquela, outros recebem esta com choque e desorientação. Ainda que gosto não se discuta, o aprendizado é importante. Muitos espectadores inevitavelmente dormirão em um filme de Resnais, ou se inquietarão a ponto de abandonarem compulsivamente a sala de projeção – ou ainda as duas coisas, respectivamente. Mas com o devido esforço, descobrir-se-á um tesouro para o paladar dos olhos e ouvidos, cujo gosto se tornará apenas mais refinado com o tempo.

2 comentários:

Pedro Henrique Gomes disse...

Acho que é a obra máxima do Resnais...

Mas, André, tu já viu Ervas Daninhas? Putz...o cara é mesmo genial.

Abs!

André Renato disse...

Ainda não vi Ervas Daninhas...

Em verdade, ainda estou descobrindo a obra de Alain Resnais, bem devagar...

Acredito no que o poeta José Paulo Paes disse uma vez: poesia, em doses moderadas, pode ser um remédio; mas em doses grandes, torna-se veneno...

Abs!