quarta-feira, janeiro 27, 2010

Os Incompreendidos



O que é que traz o encanto específico à obra de François Truffaut? Qual é a personalidade presente em todos os seus filmes? Acredito que seja, acima de tudo, uma naturalidade bastante especial. Truffaut filma com espontaneidade. Mas não é aquela espontaneidade calculada (ótimo paradoxo) dos filmes de tese neo-realistas, ainda que a forte influência da escola italiana se faça sentir não só no diretor de Os Incompreendidos, mas também nos seus companheiros da nouvelle vague. Truffaut filma como uma criança fascinada com a novidade, com a vida, com o mundo. Filma com ingenuidade (mas sabe muito bem o que faz). Filma com alegria: é o mais apaixonado dentre os diretores franceses de sua geração. Apaixonado pelo próprio cinema: seus textos de reflexão, suas críticas (ele começou escrevendo para a Cahiers du Cinema, apadrinhado por ninguém menos do que André Bazin – que o teria tirado das ruas ainda garoto, infância que ecoará no seu primeiro filme), as entrevistas empreendidas com Alfred Hitchcock, tudo o que fez esse rapaz (morreu ainda jovem) atesta um amor em relação ao cinema que é “calmo e prestante”, um amor de amigo e de amante, um amor total (no dizer do poeta Vinícius de Morais).

Os Incompreendidos (“Les Quatre-Cents Coups”, 1959) é uma das obras-primas universais sobre a infância. Sobretudo sobre a infância abandonada. O filme ecoa o espírito rebelde / traquinas de Jean Vigo (Zero de Conduta, 1934) – Truffaut se arvora somente nos melhores. A propósito, o cinema-criança-alegria de Truffaut também se faz notar pelo modo “peralta” de filmar, podemos dizer assim. Mas a liberdade e a sede de viver andam carregadas do desprezo, da inadequação, da repressão. Daí nasce o bem conhecido drama. Há um momento do filme em que a montagem expressa muito sugestivamente essa tensão: o jovem protagonista, Antoine Doinel (vivido por Jean-Pierre Léaud), está preso no centro de correção para menores infratores; vemo-lo enrolando um cigarro. Corte. Primeiro plano de seus dedos segurados pela mão de um adulto enquanto são tiradas suas impressões digitais. O filme todo dá esse destaque para as mãos, os dedos em gestos cotidianos que passeiam entre o carinho e a agressão. Outros momentos significativos são: logo no começo, quando Antoine põe a mesa para a família jantar; ou quando ele recebe no rosto um inesperado tapa do agente penitenciário. “Tenho duas mãos e o sentimento do mundo”, dizia o poeta Drummond. O poeta François Truffaut também tem.

2 comentários:

Wally disse...

Comprei ele em Julho e já assisti umas duas vezes. Adorei toda a composição e fiquei apaixonado pelo sentimento exprimido pela película. Poesia e cinematografia em união das mais sóbrias.

André Renato disse...

Sobriedade no cinema clássico é algo que particularmente me inspira bastante!