Olá, pessoal! Após algum tempo de muito trabalho, mudança de casa, poucos filmes e menos textos, estamos de volta ao Sombras Elétricas – entrando já em seu quinto ano de atividades (incrível, não?). Desejamos um feliz 2010 a todos e que venham grandes filmes! (como o que já será discutido abaixo, com spoilers, avisamos)
Este não é um filme fácil. É de um realismo mágico (adoro essa contradição) que lembra as fábulas infanto-adultas e sobretudo cruéis como O Labirinto do Fauno, Coraline e qualquer coisa feita por Tim Burton. Mas, ei! Spike Jonze também é um diretor maldito, não? Pois bem. Esta adaptação feita por ele de um clássico contemporâneo da literatura infanto-juvenil norte-americana é perturbadora como qualquer produção simbólica que cutuque (com vara curta) as onças mais escondidas do inconsciente humano. E acreditem: não há nada de moral(ismo) neste filme. As soluções encontradas são bastante positivas, mas o que pesa aqui é o processo – difícil e doloroso – de formação psíquica do indivíduo (particularmente a da criança). Então, o filme é sério.
A história é a de um garoto – Max – por volta dos seus dez anos, que se vê na grande dificuldade de encontrar o seu lugar: dentro de si mesmo (antes de mais nada), dentro da família e dentro do mundo. Após brigar com a irmã e com a mãe, ele toma um pequeno barco a vela e se lança ao mar, indo aportar numa ilha distante onde encontra um grupo de monstros – algo fofinhos, algo tenebrosos – que, por sua vez, estão com sérias dificuldades de lidar uns com os outros e consigo mesmos. Max se fará rei do bando e tentará consertar a situação. É aí que o bicho pega (trocadilho infame). A majestade do garoto se baseia na crença que os outros têm em seu grande "poder". Logicamente, dia mais dia menos os monstros perceberão que Max não tem lá muito a lhes oferecer. Então...
Muito bem. Realmente interessante é a solução encontrada pelo garoto. Ele admite não ter poder algum. Coloca-se, no final das contas, como apenas mais uma criatura frágil – tal qual os monstros. E sobretudo, Max coloca-se como amigo deles, disposto a chorar em seus ombros e dar o seu próprio às lágrimas alheias. Ah, e o menino decide voltar para casa! Com grande comoção, as despedidas são feitas e os monstros confessam que Max foi o único "rei" que eles não devoraram. O filme termina com a reconciliação de Max com sua mãe. Antes de mais nada, diga-se que esta narrativa é conduzida num tom bem equilibrado, com o grande e constante apoio da maravilhosa trilha sonora composta por Karen O. (vocalista do Yeah Yeah Yeahs).
Mas o que significa tudo isto? (perguntinha sempre infeliz). Bem, como toda fábula, a leitura deverá ser simbólica. O filme representa uma etapa do que Jung chama de o processo de individuação, que é a formação psíquica do sujeito – o tornar-se si mesmo – que ocorre na verdade ao longo de toda a vida. Os monstros, cada um com sua própria personalidade e suas idiossincrasias, representam aspectos diferentes e conflitantes da personalidade em formação do próprio garoto. A tarefa dele, como o filme bem mostra, será organizar, concatenar, equilibrar e promover as boas relações entre todos os "monstros" internos – sob pena de ser "devorado" por eles (a dissociação psíquica, para Jung, provoca o desabamento do indivíduo como um todo).
Mas o problema maior é que esta missão não poderá ser realizada através do controle despótico da razão. A razão não manda em nada, a razão manda apenas na própria razão, ela é apenas mais um dos muitos elementos que compõem a totalidade do nosso ser. Por isso, Max não pode ser simplesmente o "rei" da galera. Por que é que vocês acham que Max foi o único rei não-devorado pelos monstros? Porque muito provavelmente todos os outros não quiseram abandonar a majestade, o "poder"; não admitiram que não poderiam, afinal de contas, conduzir as relações entre os monstros como um maestro de orquestra. É claro que abandonar a razão não significa entregar-se a todos os caprichos do inconsciente. O equilíbrio está em aceitar-se como se é com naturalidade e ser sobretudo amigo de si mesmo (que piegas isso).
Lidando melhor com as próprias complicações internas, estaremos mais aptos a lidar com as dos outros e com as do mundo. Este é o ponto em que Max atinge a sua maturidade e decide voltar para casa, reconciliando-se com a mãe. Há um momento do filme em que o garoto chega a desejar que aqueles monstros tivessem uma mãe... (!) Puxando isto para Freud, vemos aqui o complexo de édipo e a consequente e necessária castração, processo em que nascerá o desejo que traz propósito às nossas vidas. A função materna é necessária, pois, não podendo tornar-se um com a mãe, o sujeito buscará realizar seu desejo mais primário de união com o outro (ou com o mundo) através de uma esposa, ou ideologia, ou trabalho, etc.
Os monstros viviam sem propósito até a chegada de Max (que lhes proporá a construção do "forte"); neste sentido, o próprio menino já funcionará como uma mãe para todos. E a separação será logicamente necessária para o completo amadurecimento de todos (e do próprio Max). Com tudo isso, o filme, seu cenário e personagens compõem uma verdadeira paisagem da alma; uma "maquete" da alma, digamos assim, tal qual aquela construída pelo monstro Carol. Jung trabalha com a ideia da pedra da alma (presente em algumas mitologias), que, assim como o totem ou outras esculturas (as quais já seriam objetos construídos por mãos humanas), configura uma exteriorização simbólica da psique do indivíduo.
É o que vemos no filme, desde o iglu construído no começo por Max – e que será destruído por um dos amigos da irmã, o que deixará o garoto extremamente triste e indignado – até o forte / imensa moradia para todos os monstros. A moradia, nos sonhos, também caracterizam uma simbolização da psique. Desse modo, entende-se porque Carol aparece no começo destruindo as casas dos seus companheiros (a dissociação psíquica), até que chega Max (o elemento consciente de união e propósito) e propõe a construção do forte – a moradia coletiva de todos os elementos da alma. Enfim, de qualquer maneira, o filme não se reduz a essas viagens de psicologia de porta de botequim, por mais que elas possam ser tentadoras às vezes. O melhor mesmo é ver e sentir e pensar com carinho e naturalidade na experiência proporcionada. Até.
4 comentários:
É exatamente o que espero deste filme, algo bem emocional e psicológico.
Faça bom proveito dele então!
Valeu!
Adorei sua analise. Fascinante
Obrigado! Volte sempre!
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