segunda-feira, setembro 07, 2009

Arraste-me Para O Inferno


Modinha do empregado de banco

Eu sou triste como um prático de farmácia,
sou quase tão triste como um homem que usa costeletas.
Passo o dia inteiro pensando nuns carinhos de mulher
mas só ouço o tectec das máquinas de escrever.

Lá fora chove e a estátua de Floriano fica linda.
Quantas meninas pela vida afora!
E eu alinhando no papel as fortunas dos outros.
Se eu tivesse estes contos punha a andar
a roda da imaginação nos caminhos do mundo.
E os fregueses do Banco
que não fazem nada com estes contos!
Chocam outros contos para não fazerem nada com eles.

Também se o diretor tivesse a minha imaginação
o Banco já não existiria mais
e eu estaria noutro lugar.

Murilo Mendes

Eu já trabalhei em banco, por uns dois infelizes anos. Era aquele um ambiente abjeto, repleto de pessoas abjetas vivendo uma rotina abjeta. É claro que nunca recusei a extensão da hipoteca a nenhuma velhinha humilde – meu trabalho lá era bem mais simples do que isso, eu não passava de um arquivista. Mas não foi preciso ser amaldiçoado por nenhuma bruxa cigana para que meu corpo e minha alma fossem definhando a olhos vistos com o passar dos meses. Eu sentia que, se continuasse por muito mais tempo lá, iria morrer...

A morte, quando já se está no inferno. Sim, um inferno dantesco, movido por irônicos tormentos de cujo alívio não se pode ter qualquer esperança. Apesar de tudo, minha vida não era um filme de “terrir” do Sam Raimi (graças a Deus, não?!); desse modo, minha inércia, minha preguiça, minha inaptidão e indisposição para o trabalho ajudaram-me a conquistar uma bem merecida demissão (mas sem justa causa). Depois disso, virei professor de Literatura e nunca mais pus os pés num escritório.

Nos tempos de Citibank (sim, era esse), eu ouvia demais aquele discurso da eficiência, da produtividade, da otimização, da coragem para tomar as “decisões difíceis” – era o suficiente para me fazer quase vomitar cotidianamente no carpete bem aspirado do sétimo andar. Em Arraste-me Para O Inferno (“Drag Me To Hell”, EUA, 2009), a despretensão de Sam Raimi (que, além de diretor, é roteirista) é bem clara: as tão propagadas “decisões difíceis” são o pecado mortal. Além de qualquer redenção, elas levam rápida e diretamente para o inferno.

Já nos cansamos de ver, ao longo dos últimos 150 anos, estratégias econômicas e militares (sobremaneira, mas existem outras) serem pensadas e conduzidas como meras questões de logística, deixando-se absolutamente de lado a dimensão e as consequências humanas de tais políticas. Enfim, não é isso o que define de maneira bem especial a contemporaneidade? Sam Raimi coloca frente a frente duas forças que alegorizam a dualidade do mundo moderno:

1. a razão positivista, a ciência, a tecnologia e a lógica econômica, representadas pela “heroína” e seu namorado. Aquela é a encarnação da futilidade bancária, as mesquinhas ambições profissionais, o consumismo vulgar. Este levanta a bandeira da ciência (no caso, a psicanálise freudiana) como única chave para a descoberta de todas as verdades de um mundo que já “superou” a ilusão do sobrenatural. O “terrir” de Sam Raimi faz uma deliciosa piada com os dois.

2. as forças do inconsciente (e não o simplório inconsciente de Freud, mas o de Jung, animado por incontáveis arquétipos, mitos e forças que escapam ao intelecto, por mais que nos esforcemos em contrário – aliás, a tirada que se faz no filme com a velha polêmica Freud / Jung é muito bem colocada), os poderes teriomórficos (zoomórficos) de uma (sobre) natureza que está muito além do nosso entendimento e mais ainda do nosso controle.

Os primeiros desses elementos tentam varrer os segundos para debaixo do tapete (tanto no capitalismo quanto no comunismo) com uma neurose que nos mostra já o inútil, o ridículo e o doentio de tal mentalidade. É a dissociação tão falada pelos jungianos, que produz o verdadeiro mal estar na nossa civilização, fenômeno a um só tempo psíquico e social. Impossível viver assim. Consequentemente, o inferno não será nada mais do que a figurativização de um estado de alma insuportável que nós inventamos para nós mesmos.

Sam Raimi já tinha feito a “sobre-natureza” revoltar-se sarcasticamente contra a presunção do homem (e da mulher) modernos em The Evil Dead (1981). É claro que ele não é nada tão subversivo quanto George A. Romero, mas distribui lá as suas alfinetadas. Arraste-me Para O Inferno é um daqueles filmes que provocam jocosamente os preconceitos e a ideologia do espectador.

Por exemplo, muitos de nós também não concederíamos a extensão da hipoteca para a pobre velha; afinal, o banco já tinha feito isso duas vezes antes e de nada adiantara. Quantos de nós não concordarão com a atitude da mocinha bancária? Da mesma forma que concordamos com as mais diversas formas da bárbárie que se apresentam diariamente aos nossos olhos, tanto no cinema quanto na TV.

Adiante no filme, quantos de nós não concordarão em “presentear” o objeto amaldiçoado para qualquer pessoa, apenas para escaparmos à condenação eterna? Pelo menos, havemos de concordar em dá-lo para alguém “malvado”, alguém que realmente “mereça”. Contudo, os protagonistas dos filmes de terror de Sam Raimi merecem tudo o que lhes acontece; mas não cabe a nós sermos os seus juízes e (ou) carrascos.

Como já disse Edgar Allan Poe, toda história de terror deve colocar em pauta alguma questão moral. O horror tem que possuir um significado, uma função, uma causa e consequência (sem querer parecer aqui excessivamente racionalista). Os contos de assombro estão mais ligados aos contos de fadas do que se costuma imaginar. E Sam Raimi faz – continua fazendo – isso muito bem.

2 comentários:

Wally disse...

Mais um belo texto. E concordo com Poe, os melhores contos de terror são, também, contos de moralismo. O filme, eu adorei.

Ciao!

André Renato disse...

Valeu, Wally!

O terror faz parte da minha vida, desde sempre...