segunda-feira, junho 01, 2009

Sinédoque Nova York


O filósofo italiano Giambattista Vico, em sua Ciência Nova (1725), assim explica as figuras de linguagem que aprendemos na escola – ou no cursinho – sob os nomes de metonímia e de sinédoque:

“Por força dessa mesma lógica (poética), parto de tal metafísica (poética), tiveram os primeiros poetas que dar nomes às coisas a partir das idéias mais particulares e sensíveis: o que vêm a ser as duas fontes, esta da metonímia, aquela da sinédoque. Assim, a metonímia do autor pela obra nasceu porque os autores eram mais nomeados do que as obras; a dos conteúdos pelas suas formas e adjuntos nasceu porque não sabiam abstrair as formas e as qualidades dos objetos; certamente, a das causas pelos efeitos faz uma só coisa com outras pequenas fábulas com as quais imaginaram as causas vestidas de seus efeitos: feia a Pobreza, ingrata a Velhice, pálida a Morte. (...) A sinédoque passou a translato mais tarde, quando os particulares subiram a universais, ou quando as partes se compuseram com outras partes de modo a perfazer os seus inteiros.” (citado por Alfredo Bosi em O Ser e o Tempo da Poesia)

Os filmes de Charlie Kaufman, sejam este Sinédoque Nova York (2008) – o primeiro que ele dirige –, sejam os outros por cujos roteiros o autor se notabilizou: Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças (2004), Adaptação (2002) e Quero Ser John Malkovitch (1999), só para ficar dentre os mais “experimentais”, estes filmes deixam-se guiar livremente pela tão citada e pouco compreendida “lógica poética”. Assim como David Lynch (basta lembrar o mais recente O Império dos Sonhos – 2007), só para ficar dentre os mais contemporâneos, Kaufman não constrói suas histórias baseado nos velhos princípios aristotélicos de narrativa e dramaturgia. Conseqüentemente, o espectador que tentar ver, e principalmente acompanhar, tais filmes com os olhos da razão há de cair do cavalo.

Não adianta querer entender e explicar tudo o que aparece e acontece na tela. A coisa não funciona por aí. Mas isso não quer dizer que não haja alguma razão naquilo que nos é mostrado. Não deixa de haver a razão poética, uma outra razão, fundamentada no pensamento da analogia (a metáfora) e da contigüidade (a metonímia, estando a sinédoque subordinada a ela); ou seja, a lógica dedutivo-abstracionista passa longe daqui, bem longe. Para o espectador contemporâneo, seja ele “intelectualizado” ou não, será quiçá difícil exercitar-se na lógica poética, uma vez que ela tem sido relegada ao esquecimento pelos últimos 200 anos de tradição Iluminista. Qualquer pessoa, “inteligente” ou não, estudada ou não, quererá com o maior dos afincos decodificar da maneira mais exata um filme como Sinédoque Nova York.

No entanto, quem estará mais próximo de conseguir “processar”, digamos assim, um filme como este será a pessoa que dá a maior abertura, dentro de si, à sensação, à emoção e à intuição – que são as outras três maneiras com que a natureza nos dotou para Conhecer. A lógica poética é a lógica do sonho: nós compreendemos apenas e devidamente a sua dimensão humana (as experiências, sensações e emoções que são aí evocadas), e é tal compreensão a única que realmente importa no caso. Se você quer aproveitar bem a Sinédoque Nova York, deixe-se apenas envolver e levar pelo que a “música” das imagens desperta no mais fundo do seu ser.

O que importa, por exemplo, que Hazel (uma das mulheres na vida do protagonista) viva durante anos numa casa em chamas, como se fosse a coisa mais natural do mundo? É claro que podemos buscar explicações racionais para isto e elas podem ser até bem interessantes; mas estas não determinarão a qualidade da experiência que o filme pode proporcionar ao espectador. Dentro das metáforas do palco como o mundo e da encenação teatral como a vida, encontramos a sinédoque (a parte pelo todo) de uma parte de Nova York reconstruída dentro de um galpão, assim como partes da vida do protagonista Caden Cotard (Philip Seymour Hoffman). A metáfora também está nas pessoas que o representam, e a metonímia nas pessoas ligadas a ele que definem, de uma maneira ou de outra, o seu caráter.

Mas a maior de todas as metonímias parece estar na Morte, presente desde o começo do filme através dos seus sinais: as causas (as marcas físicas da doença que Cotard tanto teme que lhe arranque a vida) e os efeitos (a galeria dos mortos que atravessam toda a história: o pai, a mãe, a filha, a esposa, o ator predileto, culminando na apoteótica última cena). Tudo neste filme tem o seu duplo, tudo se reproduz como que num espelho de proporções menores (ou maiores, subjetivamente). Tais duplicidades não são tanto metafóricas (simbólicas) quanto metonímicas: são fragmentos do ser, da vida e do mundo que mal conseguem se juntar na tentativa de um todo, um todo que se compreenda. Neste ponto, o drama do espectador em relação à tessitura do filme é o drama do protagonista em relação à tessitura da própria vida. São obras abertas.

3 comentários:

Wally disse...

Belo texto. Como fã do cinema escrito de Kaufman, estou ansiosissímo para conferi-lo. Farei isto em breve.

Ciao!

BRENNO BEZERRA disse...

ASSIM COMO O WALLY, AINDA NÃO CONFERI E TAMBÉM ESTOU ANSIOSO.

TCHAU

André Renato disse...

Vão com fé, companheiros!

Valeu!