quinta-feira, janeiro 15, 2009

O dia em que a Terra parou


Na língua Tupi (dos antigos índios brasileiros) os substantivos se dividem entre possuíveis e não-possuíveis. Os primeiros se referem a coisas vistas como partes de um todo, ou pessoas tomadas como membros de um sistema de relações pessoais. Por exemplo: “xe akanga” (minha cabeça – parte de um todo); “nde membyra” (teu filho – membro de um sistema de relações sociais, no caso, a família). Por sua vez, os nomes não-possuíveis remetem a coisas que os índios não enxergam como parte de um todo ou como algo a ser possuído por alguém. Como exemplo, tem-se a maior parte dos elementos da natureza. Lembrando que qualquer língua sempre retrata uma determinada visão de mundo, os índios brasileiros que falavam o Tupi não concebiam a idéia de que uma pessoa pudesse ser possuidora de algum objeto ou elemento natural.

Não é a natureza que pertence ao homem, e sim o homem que é possuído pelas forças e pelo ambiente natural. A natureza já estava aqui antes de o indivíduo nascer e permanecerá após a morte dele. Uma tal comunhão entre o humano e o natural é o que mais se encontra na cultura de povos ditos “primitivos”. Mas, voltando ao nosso Tupi, seria simplesmente inconcebível que alguém dissesse, na língua e na antiga sociedade indígena, algo do tipo: “xe ybyrá” (minha árvore); ou “Iracema ybyrá” (árvore de Iracema). Por isso, não se aplicam pronomes possessivos a nomes não-possuíveis na língua Tupi, tampouco se estabelecem relações genitivas (que, em nosso Português, poderiam ser expressas pela preposição “de”) envolvendo uma tal classe de substantivos.

E o que é que tudo isso tem a ver, afinal de contas, com O dia em que a Terra parou (“The day the Earth stood still”, EUA, 2008, dir.: Scott Derrickson)? Assista ao filme com carinho e atenção; você perceberá que o melhor dele são certas sacadas mais ou menos sutis, em algumas cenas-chave. A mais importante delas é o primeiro diálogo entre o “invasor” alienígena Klaatu e a secretária de defesa dos EUA, no qual o extraterrestre discorda veementemente – com um ar de intrigante incompreensão – quando ela diz coisas como: “nosso planeta” (pertencente à humanidade). Tomemos aqui, mais uma vez, os nossos amigos tupis e reflitamos: quem é verdadeiramente o “selvagem”, o “bruto”, o “primitivo”?

Uma outra alfinetada linguística deste filme é o fato de todos os personagens chamarem Klaatu e sua nave espacial de “it” (pronome pessoal neutro do Inglês, usado para objetos inanimados, vegetais ou animais com os quais não se tenha relações afetivas), mas, no final da fita, um dos personagens centrais corrigir o seu interlocutor e dizer finalmente “he” (pronome pessoal masculino, equivalente a “ele”). De resto, a idéia e o roteiro mantêm a mesma força do original de 1951, dirigido por Robert Wise (o montador de Cidadão Kane – 1941 – e diretor de A Noviça Rebelde – 1965). A moral foi, naturalmente, adaptada para os tempos de aquecimento global. No entanto, persiste a parvoíce arrogante – ou parva arrogância – das forças militares.

Em tempos de respostas militares desproporcionais e de unilateralismo, nada mais ilustrativo do que ver o começo desta fita.

Um comentário:

Blog do Fer disse...

O filme possui muitas brechas, e se colado numa peneira sobra a mensagem de que devemos pensar na degradação do planeta. Keanu Reaves embarcou numa furada.