Tropa de Elite deixa seu lugar marcado no Cinema nacional. O que não quer dizer que o filme seja bom ou ruim, essa é outra discussão. Não vou ficar aqui comentando a polêmica – em boa parte inútil – que se criou em cima da estréia na ficção de José Padilha (que fizera antes Ônibus 174). Acho que às vezes exige-se demais do cinema brasileiro, o que não deixa de ser compreensível. Em vista disso, eu prefiro destacar as escolhas – em forma e em conteúdo – que uma determinada fita faz e pesá-las com o que já se fez e ainda se faz no conjunto da sétima arte de uma nação. Essas escolhas não garantem, necessariamente e por si só, a “qualidade” de uma película; mas assinalam sua importância no contexto artístico e também no social (a arte não deve estar apenas a favor da própria arte). Quero dizer: além de ser bom ou ruim, um filme deverá ser pertinente pelo que mostra e pelo modo como mostra.
Assim sendo, quais são as escolhas de Tropa de Elite? O que fez esse filme que pode ser considerado marco (sem querer sobredourar demais a pílula) em nosso Cinema? É simples, nada muito difícil de perceber para quem vê com os olhos abertos:
1. A obra de Padilha traz o melhor do cinema policial, e sabemos que fazer filme de gênero no Brasil é quase uma utopia. E tem mais: Tropa de Elite ainda flerta com os filmes de guerra. Numa guerra, todas as coisas acabam ganhando uma proporção absurda, insustentável e irremediável, um verdadeiro impasse, inclusive moral. O melhor do cinema de guerra nos mostra o quanto a lógica e os valores se perdem, se misturam, se invertem e se confundem até o nível do pânico (que o diga o Capitão Nascimento).
2. O ponto de vista da narrativa é o de um policial (atenção ao que eu disse: não falei que o ponto de vista é o da polícia, mas o de um policial, devidamente individualizado e construído de modo complexo e profundo como toda personagem verdadeiramente humana; infelizmente muitos espectadores não tiveram o discernimento de perceber isso). Cansei de filme brasileiro que fala de “bandido”. Vamos dar voz também para o outro, ou outros lados, visto que o fenômeno é bem mais complexo do que se quer enxergar; o Brasil não é um país para iniciantes, aqui o maniqueísmo mocinho / bandido só serve à ingenuidade de uns ou à má fé de muitos.
3. José Padilha parece saber (sorte dele) da tolice de se acreditar no maniqueísmo acima. Desse modo, o seu filme toma todas as precauções para escapar ao policiamento ideológico que é uma das pragas neste país. Tropa de Elite chega a ser até irritante e simploriamente didático (especialmente na primeira parte) ao mostrar que o “buraco” do fenômeno social polícia-bandido é bem “mais embaixo”. Inútil. Se mesmo com toda essa pedagogia (o que faz a obra perder em arte), este filme ainda foi alvo dos piores vícios reacionários tanto da “direita” (gente que passa a adorar “o filme do Capitão Nascimento”) quanto da “esquerda” (gente que simplesmente execra “o filme fascista do Capitão Nascimento”), imagine se Tropa de Elite tivesse a sutileza que se pediria a uma obra verdadeiramente adulta... No fundo, muitos espectadores não sabem dissociar a voz do narrador e a voz do autor de uma obra, acredito que o cinema encontra-se num estado como o romance literário no século XIX. Assim, rezo para que apareça na nossa sétima arte um “Machado de Assis”, para quem o narrador não-confiável é o centro da obra. José Padilha mostra o caminho...
4. Tropa de Elite é um dos raríssimos estudos cinematográficos da sociedade brasileira que ousa apontar o dedo para a classe média (o espectador, sentado ou no conforto do cinema ou no conforto do seu sofá após ter comprado a cópia pirata da fita, que riu e se divertiu com o circo pegando fogo, jamais deve se esquecer da última imagem do filme). Pois é fácil botar a culpa no povo, nos bandidos, nos vagabundos, nos políticos corruptos, nos empresários cruéis ou numa alta elite sem rosto. O difícil é reconhecer o papel que todos nós fazemos neste estado de coisas. O playboy que usa drogas alimenta sim a criminalidade. Agora, se o caso é de legalizar as drogas ou de reprimir o usuário, isso é a segunda etapa do processo. Mas se a atitude do Capitão Nascimento é execrável, saibamos que somos nós os responsáveis no fundo por essa atitude. O Capitão Nascimento é apenas aquele que faz o serviço sujo para nós, e ele não gosta disso. O seu discurso como narrador (ponto alto do filme), entre irônico e ressentido, atesta bem os fatos. Mas o que fazer? Afinal, se o papa quer dormir perto da favela, a segurança da sua santidade precisa ser garantida, e nisso alguém vai ter que morrer, dentre polícia e bandido. Pois não se vai revelar para a sua santidade a guerra suja e inútil em que se vive no Brasil, muito menos se vai correr o risco do ocupante do trono de Pedro tomar uma bala perdida, até parece... (apenas reproduzo livremente o discurso do próprio Capitão Nascimento).
Dei muita risada com a cena dos universitários discutindo Foucault (“Vigiar e Punir”) na sala de aula. Esse pseudo-esclarecimento, no fundo hipócrita, das nossas elites intelectuais é foda mesmo. O playboy maconheiro estudante de sociologia com consciência social... que merda! O que é que essa gente entende dos fatos, de todos os horrores da guerra que se passa na vida real, fora da bolha acadêmica? Por isso Tropa de Elite faz muito bem em dar a voz ao policial, pois só o soldado tem credibilidade para falar do front (no fundo, o filme tem muito esse caráter de crônica do front). A obra de Padilha é tão didática que mostra o que significa, na verdade, o fato de a polícia ser uma das instituições que servem apenas aos poderosos (de acordo com Foucault): toda a questão do Batalhão de Operações Especiais “proteger” a todo o custo o papa mostra justamente isso. E mostra o como são difíceis as escolhas do policial numa situação dessas. É triste que aqueles universitários, trancados na sua torre de marfim, estejam muito, mas muito longe de entender isso – assim como muitos espectadores... Polícia para quem precisa, né?
Assim sendo, quais são as escolhas de Tropa de Elite? O que fez esse filme que pode ser considerado marco (sem querer sobredourar demais a pílula) em nosso Cinema? É simples, nada muito difícil de perceber para quem vê com os olhos abertos:
1. A obra de Padilha traz o melhor do cinema policial, e sabemos que fazer filme de gênero no Brasil é quase uma utopia. E tem mais: Tropa de Elite ainda flerta com os filmes de guerra. Numa guerra, todas as coisas acabam ganhando uma proporção absurda, insustentável e irremediável, um verdadeiro impasse, inclusive moral. O melhor do cinema de guerra nos mostra o quanto a lógica e os valores se perdem, se misturam, se invertem e se confundem até o nível do pânico (que o diga o Capitão Nascimento).
2. O ponto de vista da narrativa é o de um policial (atenção ao que eu disse: não falei que o ponto de vista é o da polícia, mas o de um policial, devidamente individualizado e construído de modo complexo e profundo como toda personagem verdadeiramente humana; infelizmente muitos espectadores não tiveram o discernimento de perceber isso). Cansei de filme brasileiro que fala de “bandido”. Vamos dar voz também para o outro, ou outros lados, visto que o fenômeno é bem mais complexo do que se quer enxergar; o Brasil não é um país para iniciantes, aqui o maniqueísmo mocinho / bandido só serve à ingenuidade de uns ou à má fé de muitos.
3. José Padilha parece saber (sorte dele) da tolice de se acreditar no maniqueísmo acima. Desse modo, o seu filme toma todas as precauções para escapar ao policiamento ideológico que é uma das pragas neste país. Tropa de Elite chega a ser até irritante e simploriamente didático (especialmente na primeira parte) ao mostrar que o “buraco” do fenômeno social polícia-bandido é bem “mais embaixo”. Inútil. Se mesmo com toda essa pedagogia (o que faz a obra perder em arte), este filme ainda foi alvo dos piores vícios reacionários tanto da “direita” (gente que passa a adorar “o filme do Capitão Nascimento”) quanto da “esquerda” (gente que simplesmente execra “o filme fascista do Capitão Nascimento”), imagine se Tropa de Elite tivesse a sutileza que se pediria a uma obra verdadeiramente adulta... No fundo, muitos espectadores não sabem dissociar a voz do narrador e a voz do autor de uma obra, acredito que o cinema encontra-se num estado como o romance literário no século XIX. Assim, rezo para que apareça na nossa sétima arte um “Machado de Assis”, para quem o narrador não-confiável é o centro da obra. José Padilha mostra o caminho...
4. Tropa de Elite é um dos raríssimos estudos cinematográficos da sociedade brasileira que ousa apontar o dedo para a classe média (o espectador, sentado ou no conforto do cinema ou no conforto do seu sofá após ter comprado a cópia pirata da fita, que riu e se divertiu com o circo pegando fogo, jamais deve se esquecer da última imagem do filme). Pois é fácil botar a culpa no povo, nos bandidos, nos vagabundos, nos políticos corruptos, nos empresários cruéis ou numa alta elite sem rosto. O difícil é reconhecer o papel que todos nós fazemos neste estado de coisas. O playboy que usa drogas alimenta sim a criminalidade. Agora, se o caso é de legalizar as drogas ou de reprimir o usuário, isso é a segunda etapa do processo. Mas se a atitude do Capitão Nascimento é execrável, saibamos que somos nós os responsáveis no fundo por essa atitude. O Capitão Nascimento é apenas aquele que faz o serviço sujo para nós, e ele não gosta disso. O seu discurso como narrador (ponto alto do filme), entre irônico e ressentido, atesta bem os fatos. Mas o que fazer? Afinal, se o papa quer dormir perto da favela, a segurança da sua santidade precisa ser garantida, e nisso alguém vai ter que morrer, dentre polícia e bandido. Pois não se vai revelar para a sua santidade a guerra suja e inútil em que se vive no Brasil, muito menos se vai correr o risco do ocupante do trono de Pedro tomar uma bala perdida, até parece... (apenas reproduzo livremente o discurso do próprio Capitão Nascimento).
Dei muita risada com a cena dos universitários discutindo Foucault (“Vigiar e Punir”) na sala de aula. Esse pseudo-esclarecimento, no fundo hipócrita, das nossas elites intelectuais é foda mesmo. O playboy maconheiro estudante de sociologia com consciência social... que merda! O que é que essa gente entende dos fatos, de todos os horrores da guerra que se passa na vida real, fora da bolha acadêmica? Por isso Tropa de Elite faz muito bem em dar a voz ao policial, pois só o soldado tem credibilidade para falar do front (no fundo, o filme tem muito esse caráter de crônica do front). A obra de Padilha é tão didática que mostra o que significa, na verdade, o fato de a polícia ser uma das instituições que servem apenas aos poderosos (de acordo com Foucault): toda a questão do Batalhão de Operações Especiais “proteger” a todo o custo o papa mostra justamente isso. E mostra o como são difíceis as escolhas do policial numa situação dessas. É triste que aqueles universitários, trancados na sua torre de marfim, estejam muito, mas muito longe de entender isso – assim como muitos espectadores... Polícia para quem precisa, né?
4 comentários:
É o filme nacional do ano (pelo menos, até agora). Ainda vejo potencial ele para concorrer a muitos prêmios ano que vem. Estou querendo ler o livro, mas sabe como é... em época de lançamento do filme todo mundo corre atrás. Aí já viu!
(http://claque-te.blogspot.com): Entre o Céu e o Inferno, de Craig Brewer.
Tem potencial sim! Não acho que Tropa de Elite seja o modelo acabado para a nossa produção, mas aponta direções e abre caminhos... Seus diferenciais ajudam o nosso cinema a respirar e crescer...
Um bom texto/comentário sobre o filme do momento, meu caro. Vejo, também, que alguns de seus "filmes eternos" me são igualmente valiosos. É o caso de "Meu tio", por exemplo. Um abraço. Voltarei.
Muito bom o seu texto, especialmente quando menciona que Tropa é também um filme de guerra, onde a moral se inverte e tudo mais. Perfeito. Um abraço.
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