quinta-feira, outubro 25, 2007

Mutum


Eu já discuti neste blog o como é difícil fazer filmes baseados em livros de João Guimarães Rosa. Assim que tive notícias da mais nova tentativa, minhas esperanças se renovaram. Foi com esse espírito que fui ver Mutum (Brasil, 2007, dir.: Sandra Kogut), em exibição na 31ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Antes de mais nada, folguei em saber que a fila enorme era para ver “o Tarantino”. A sala ao lado também estava cheia, mas sem filas. Entrei nela e aguardei. Mutum, debute ficcional da diretora carioca Sandra Kogut – que antes só tinha realizado documentários e vídeo-arte – é inspirado na novela Miguilim, que, junto com Manuelzão, faz parte do livro Campo Geral, de Guimarães Rosa. A história é a do final de infância de um menino (Miguilim no original, Tiago no filme) que vive naquele pedaço do sertão sem marcações muito específicas de espaço ou de tempo, naquele sertão mítico que só o autor de Grande Sertão: Veredas ousou criar. As experiências subjetivas e objetivas por que o menino passa, sejam elas dolorosas ou alegres, caracterizam muito poeticamente o processo de crescimento e amadurecimento, no início de uma vida cujos limites ainda são completamente desconhecidos. Dentre essas vivências, destacam-se o relacionamento com o irmão adorado (Dito ali, Felipe aqui) e com o pai brutal.

Pois bem, vamos ao que interessa. Sandra Kogut soube manter o tom e o caráter de parábola da narrativa original. Ela também filmou com muita poesia a paisagem do sertão de Mutum e as pessoas que ali vivem, intimamente ligadas àquele espaço. Reconhece-se algo (mas não tudo, logicamente) da poesia e da sensibilidade da linguagem de Guimarães Rosa na câmera da cineasta. Mas o que mais vale a pena destacar neste filme é a simplicidade e o despojamento do discurso cinematográfico, perfeitamente adequado ao universo retratado. Muito da qualidade de Mutum – seja do filme em si, seja pensando-se na sua relação com a obra original – vem de escolhas muito raras no nosso Cinema mas bastante acertadas quando feitas e trabalhadas com cuidado. Que escolhas são essas? Podemos citar: a escolha de atores não-profissionais e do ótimo e sábio trabalho que foi feito com eles, fazendo-os manterem nos diálogos a linguagem natural, espontânea e coloquial do sertanejo de Minas Gerais – os atores, especialmente as crianças, foram escolhidos na própria região em que foi feito o filme. Isso traz uma coerência e uma arte incríveis. Algumas falas foram tiradas do livro quase que literalmente, mas sem soarem de modo algum artificiais ou “literárias”. Isso apenas mostra a genialidade de Guimarães Rosa (que foi um dos escritores que mais soube incorporar a língua popular ao discurso literário) e a sabedoria dos roteiristas e dos preparadores de atores do filme.

O engraçado é que a variante lingüística falada no filme é tão específica que não seria tão absurdo se Mutum fosse legendado em “português culto urbano”. O efeito negativo de tal trabalho de linguagem é que ela fica ainda mais difícil de entender em alguns momentos por causa do péssimo som do filme – muito abafado (a sonoridade das nossas produções ainda tem muito o que melhorar). Eu acompanhei a história facilmente, pois já tinha lido a novela. Mas quem não estiver preparado poderá encontrar dificuldades – embora parecesse que muitas pessoas na sala também já conheciam a obra de Rosa, haja vista a comoção forte e geral na cena em que Felipe / Dito “apenas” machuca o pé. Enfim, Mutum não tem aquela afetação, aquele pedantismo discursivo de alguns atores profissionais, particularmente os vindos do teatro ou da TV. O ator mais profissional e conhecido do filme é o promissor João Miguel (como o pai de Tiago), que é justamente um modelo para a atuação natural que o cinema pede, tendo já ganhado prêmios por sua participação em Cinema, Aspirinas e Urubus (2005).

Além do trabalho simples e espontâneo dos atores, a outra feliz escolha do filme foi a ausência total de música na trilha sonora. Em nenhum plano, o conteúdo dramático ou emocional é assinalado por aquela melodia chata. Todos os sons são diegéticos, ou seja, da própria cena. A verdadeira música do filme é o som da “fala gostosa do povo” (no dizer do poeta Manuel Bandeira) e o som da natureza do sertão: o vento nas árvores, a chuva, os passarinhos... De novo, a produção ganha em simplicidade e numa poesia coerentes tanto com o que é mostrado na tela quanto com o que foi escrito por Guimarães Rosa. A melhor qualidade mesmo de Mutum é essa simplicidade e naturalidade poéticas. Sandra Kogut mostra aquele povo sem o preconceito de uma visão apegada ao aspecto exótico, pitoresco ou grotesco que infectou muito a nossa Literatura antes de Guimarães Rosa e que continua infectando o nosso Cinema até hoje. Não há crítica ou conteúdo social em Mutum / Miguilim. Por que é que, no Brasil, toda obra que fale do “povo” tem que ter aparência de tese sociológica? A obra de Kogut / Rosa é uma parábola de cunho universal. O Cinema brasileiro respiraria muito melhor, com um fôlego mais profundo e longo, se se fizessem mais filmes universais.

Entretanto, o conteúdo universal não pode cair no pedantismo de um discurso filosófico que se debruça sobre um fato como uma jibóia abraça sua presa. Na obra de Rosa, o universal nasce do particular, da maneira a mais natural e espontânea possível. Guimarães Rosa incorpora a linguagem e o pensamento do povo sertanejo, misturando ao seu próprio pensamento, de um modo que não aparece aquela visão hierárquica, elitista, do escritor sobre o seu assunto, que é precisamente o que contamina muitos livros e filmes já cometidos neste país. Um problema antigo para a nossa Literatura e contemporâneo para o nosso Cinema é o da dissociação explícita entre o discurso narrativo do autor e o universo cultural representado, predominando uma visão “de cima para baixo” do escritor ou do cineasta sobre o seu objeto temático (que, no caso, envolve o universo das classes mais baixas). Sandra Kogut soube muito bem manter no discurso do filme a simplicidade, a naturalidade e a espontaneidade do olhar daquele povo, aliados ao “matutar” filosófico que pertence igualmente àquele povo (incorporado também por Guimarães Rosa). Esse é um sinal de respeito, de uma verdadeira sabedoria antropológica. Sem contar que, artisticamente, o filme ganha muito mais coerência. Aquele povo no filme não se enxerga a si mesmo como “povo”, como “classe popular”, mas como pessoas que vivem alegrias e tristezas de pessoas, daí o caráter universal.

Simplicidade, sensibilidade, coerência e universalismo. Lições para o Cinema tupiniquim.


2 comentários:

Ana Carolina disse...

confesso que ainda não tive coragem de ver o Mutum, só porque o Miguilim foi a novela mais bonita que eu já li, e eu tenho muito medo do filme me decepcionar drasticamente...

André Renato disse...

A experiência proporcionada por um filme será sempre bem diferente daquela que temos em um livro...

Mas, o interessante é que o filme Mutum tem valor independentemente da novela, se só existisse esse filme, ele seria um filme muito belo... Agora, comparando com Rosa, é claro que a Literatura dele é algo inatingível, incomparável e inadaptável...