Concordo plenamente que para “revolucionar”, para mostrar de maneira livre e crítica certas coisas que as pessoas precisam ver, é necessário ou minimamente interessante, às vezes, procurar chocar. O artista responsável deve fazer o seu público sair da posição por demais cômoda do cotidiano e refletir sobre outros aspectos e fatos da vida e do mundo. Grandes obras de arte chocam de maneira radical e exemplar. Contudo, há que se ter um discernimento. O choque nunca, jamais deve ser gratuito; muito menos em favor de idéias e mensagens altamente questionáveis no sentido ético e (ou) moral. Pois bem, não me parece ser exatamente este o caso do cinema do Sr. Cláudio Assis.
“Amarelo Manga”, sob o (justo e até louvável) pretexto de mostrar de modo contundente o pior aspecto do ser humano, da vida e do mundo – especialmente o brasileiro – , e assim conscientizar e libertar a mente do seu espectador, acaba, no fundo do seu decorrer, servindo apenas de veículo ideológico e panfletário à visão mais abjeta da existência, fruto bem pessoal da mente de seu diretor. O filme comete o mesmíssimo engano dos romances naturalistas: ao invés de utilizar filosofias como instrumento para se compreender uma determinada realidade, acaba-se manipulando e deturpando a realidade para se encaixar melhor àquelas filosofias, crendo-se que com isso elas serão provadas empiricamente. Não passa de propaganda ideológica do tipo mais pobre (e, repito, referente a ideologias altamente questionáveis, o que é ainda pior). A diferença entre o Sr. Cláudio Assis e um artista de verdade é que este último constrói uma “piscina” realmente profunda, que faz o seu público ficar assombrado com a escuridão misteriosa de suas águas e ansioso (ainda que com medo) por mergulhar nelas e desvendar o seu fundo; já o realizador de “Baixio das Bestas” (parece o título de algum romance da sub-literatura folhetinesca da “bèlle epòque”) constrói uma “piscina” extremamente rasa, mas turva as suas águas com tintas escuras para fazê-las parecerem profundas. Quem tentar mergulhar nelas vai quebrar a cara...
A parte do meu pensamento que se apega à filosofia, à sociologia e à psicanálise, sentiu-se bastante ofendida em ver “Amarelo Manga”. Minha inteligência fica tão ofendida quanto ao acompanhar certas campanhas do marketing político ou do religioso. A estupidez é a mesma na esquerda e na direita; isso é o que poucos parecem perceber. Repito: é natural se os filmes de Cláudio Assis agradarem a adolescentes revoltados, mas esse cinema não resiste a um pensamento e gosto mais maduros.
Outro parêntesis: não quero incorrer no mesmo erro do Sr. Assis, por minha parte desqualificando as pessoas que apreciam os filmes desse diretor. Peço desculpas se meus argumentos parecerem ofensivos, mas o fato é que: podemos apreciar a estética desses filmes e alguma parcela de seu conteúdo; mas certas idéias ali presentes e propagandeadas são intolerantes, desrespeitosas e anti-éticas. Essas coisas não podem ser apreciadas sem uma dose questionável de condescendência.
Também fico ofendido como contribuinte, ao saber que filmes assim são feitos com a ajuda de verbas públicas. Mas não vou falar aqui de critérios para a concessão de dinheiro público ao cinema, pois com certeza alguém resmungará: “censura!”, chamando-me de repressor, autoritário, etc.
Chama muito a atenção o atual estado da nossa inteligentsia. Ela cai de amores por um filme como “Amarelo Manga”, que não passa de um proselitismo descarado da forma mais superficial, intolerante, desrespeitosa e absolutista de um materialismo niilista (a cena em que o próprio diretor, como figurante, diz uma frase “de efeito” ao ouvido de uma moça evangélica – que obviamente encarna ali TODOS os evangélicos –, numa cena totalmente solta e gratuita no conjunto do filme, é de um desrespeito gritante para com esse grupo social e religioso). Por outro lado, a inteligentsia promove um verdadeiro levante com todas as suas armas contra um filme como “A Paixão de Cristo”, de Mel Gibson, chamando-o precisamente de excessiva e gratuitamente violento, intolerante, desrespeitoso, absolutista, proselitista, etc, ou seja, exatamente as mesmas características que apresenta o cinema de Cláudio Assis. Realmente, não dá pra entender. Na verdade, até dá, mas eu prefiro me calar, pois eu já sei exatamente quais serão as críticas que receberei por isso, e quero evitá-las. Não darei trela a nenhum espírito malicioso. Como eu já disse, não falarei nada sobre o Sr. Cláudio Assis e sobre os seus filmes, pois eu tenho medo dele. Tenho medo de que ele também chame a mim de “imbecil”, “culpado”, ou coisa pior.
3 comentários:
Olá!
Antes de mais nada, obrigado pelo comentário e pelas críticas!
Bem, não nego que o filme possa servir como belo objeto de estudos teórico-científicos.
Mas, para mim, é aí que se encontra o problema. Boa parte da linha dos romances naturalistas do XIX nada mais eram do que tentativas bastante artificiais e forçadas de se tentar fazer a realidade encaixar em uma teoria (quando o contrário é o que deveria acontecer). O que me deixa triste é que essa "farra positivista" ainda continua, apenas trocando-se (quando muito) certos cientificismos por outros. Filmes como Amarelo Manga são apenas a ilustração de uma tese, conduzida da maneira mais dogmática e simplista possível. Compare-se, por exemplo (e guardando as devidas proporções, naturalmente), com os filmes de Bergman, também muito dotados de uma tese intransigente, niilista, desconstrutivista, etc: no entanto, são belos, dão a abertura e a ambiguidade suficientes que toda obra de arte precisa para respirar e viver por conta própria, e não como panfleto de determinados pressupostos ideológicos. De resto, não creio que eu tenha sido moralista. Acredito em uma diferença semântica entre moralismo e moral. Esta última é pressuposto inalienável para a análise de uma obra, pois diz respeito a valores e princípios muito humanos (ética, respeito às diferenças, respeito à integridade do corpo - o próprio e o alheio, etc). Não sei quais são os significados que os filósofos dão para a moral, mas sei que não gosto de um discurso que faz pouco caso do ser humano, em sua complexidade, em sua diversidade, em sua liberdade, em seus valores (por mais relativos e antropologicamente, historicamente determinados que estes sejam).
Detalhe: a produção cinematográfica "autoral" também produz suas verdades preestabelecidas, que passam a ser papagueadas de modo sub-industrial por cineastas sem fôlego, sem visão, sem repertório...
Postar um comentário