quarta-feira, abril 13, 2011

O Tempo do Desprezo


A Folha de S. Paulo publicou hoje matéria sobre uma interessante mostra que está sendo lançada em São Paulo e no Rio de Janeiro (“Cinema Brasileiro: Anos 2000, 10 questões”). Em dado momento do texto, após o subtítulo de “Brasil sem saída”, a jornalista escreve:


A primeira pergunta que, no catálogo da mostra, Cléber Eduardo (um dos curadores – nota minha) se coloca é: que imagem do país esses filmes forjaram? "Não é bom [o país] em nenhum dos filmes. Não possui saídas", responde, norteado pelo olhar amargo de "Baixio das Bestas", "Quanto Vale ou É por Quilo" ou "O Signo do Caos".


Bem, não falarei de Rogério Sganzerla, autor do terceiro filme citado, pois confesso que ainda falta eu me dedicar mais à sua obra. Mas, em relação aos cineastas reponsáveis pelos outros dois (respectivamente: Cláudio Assis e Sérgio Bianchi), caberão aqui algumas considerações.


A expressão usada pela reportagem, “olhar amargo”, é bastante feliz e pode ser usada como justa medida para refletirmos acerca dos projetos de cinema desses dois diretores. Principalmente, essa união de substantivo e adjetivo revela com muita clareza o quanto tais cinematografias são antes movidas por idiossincrasias de caráter despudoradamente subjetivo do que por um “retrato” ou “análise” da sociedade brasileira per se.


Todo cinema é discurso, logicamente. Dessa forma, Assis e Bianchi podem com muita legitimidade serem levados a sério. Mas não como se anda fazendo. À sua própria maneira, uma fita como Amarelo Manga (2003) é dotada de tanta realidade e “imagem” do Brasil quanto Xuxa e Os Duendes (2001).


Por quanto tempo ainda continuaremos a ser ludibriados pela retórica fortemente armada de um cinema que remete a nada além da mais simplória e viciosa forma dos velhos e ultrapassados romances de tese (dentro do “naturalismo” literário da segunda metade do século XIX), frutos bichados de um pensamento determinista dos mais preguiçosos?


É uma filosofia altamente questionável; e, se fosse colocada nos filmes enquanto mera filosofia, menos mal – já que o cinema, fazendo-se discurso, é perfeitamente permeável a quaisquer ideologias que lhe sirvam de base. Contudo, o problema que irrita mais verdadeiramente é o fato de professores de escola apresentarem essas películas aos seus pupilos para discutir as “questões sociais”...


Assis e Bianchi são importantes para a cinematografia nacional da última década apenas na medida em que deitam por sobre o país o seu olhar – no sentido mais subjetivo dessa palavra. Chamem de “interpretação” do Brasil se quiserem. Mesmo assim, o pessimismo desses diretores não será menos pueril do que o seu contrário, sugerido por um título como, vejamos... Super Xuxa Contra Baixo Astral (1988).


É impossível não lembrarmos os dois quando lemos a condenação que o jovem François Truffaut faz dos diretores e roteiristas da chamada “Qualidade Francesa” (Henri-Georges Clouzot, René Clément, Claude Autant-Lara, Jean Aurenche, Pierre Bost), que tanto agradavam a crítica daquele país nos anos de 1950:


A vaidade e a arrogância dos diretores de hoje fazem com que estes depreciem seus personagens a bel-prazer. Os cineastas franceses estão se perdendo por falta de humildade. (...) Anátema, blasfêmia, sarcasmo, eis as três senhas dos roteiristas franceses. (...) O artista arrogante pretende-se superior à sua criação; essa presunção justifica, sem absolver, a falência das artes depois da invenção do cinema. (in DE BAECQUE, Antoine. “Cinefilia: invenção de um olhar, história de uma cultura 1944-1968.” São Paulo: Cosacnaify, 2010, p.166)


Citando os nomes dos roteiristas mais prestigiados do momento, o crítico e futuro cineasta destila sua indignação:


Neles, o realismo psicológico dita que os homens sejam fatalmente baixos, infames e estúpidos, e os filmes que eles escrevem, uma vez que convém descrever essa baixeza com o olhar superior daquele que é mais inteligente que os próprios personagens, são ainda mais baixos, infames e estúpidos do que tudo que a arte francesa produzira até o presente. (Idem, Ibidem, p.167)


A quantos e quais dos cineastas e filmes brasileiros da última década as palavras de Truffaut, um dos famosos “jovens turcos” que revolucionaram a crítica de cinema e mais tarde fundariam a nouvelle vague, servirão de carapuça? A crer no depoimento do crítico Cléber Eduardo (da ótima revista online Cinética), citado na Folha de S. Paulo, todos.


Além de Assis e Bianchi (os mais emblemáticos), podemos apontar também para Lírio Ferreira (diretor de Baile Perfumado e Árido Movie), Hilton Lacerda (roteirista de Baile Perfumado, Amarelo Manga, Árido Movie, Baixio das Bestas, A Festa da Menina Morta), a Anna Muylaert que escreveu e encenou Durval Discos, o Heitor Dhalia que co-roteirizou e dirigiu O Cheiro do Ralo, quem mais?


Eis o Brasil “sem saída”. Falta perceber que, na verdade, é nosso cinema que talvez se encontre sem saída.


P.S.: Mas uma bela saída pode ser encontrada aqui:

2 comentários:

Bruno Carmelo disse...

Polêmico texto, André.

Por que Amarelo Manga seria tão desprovido de realidade quanto os filmes da Xuxa? Não discordo necessariamente do conteúdo, mas do método: Como medir o grau de realidade de um filme? Entendo que prefira O Grão aos outros filmes, mas o que faz de le mais real do que os filmes "tese", pessimistas? Abraço.

André Renato disse...

Olá, Bruno.

Fiz o texto no calor das impressões despertadas pela reportagem, mas pretendo desenvolver mais as reflexões sobre a tendência "naturalista" no cinema brasileiro. De qualquer maneira, tinha começado a escrever sobre esta em:

http://sombras-eletricas.blogspot.com/2009/04/maldicao-da-cor-local.html

E sobre Cláudio Assis em:

http://sombras-eletricas.blogspot.com/2006/11/sobre-o-sr-cludio-assis-e-o-seu-cinema.html

e

http://sombras-eletricas.blogspot.com/2006/11/continuao-de-cludio-assis.html

O fato é que os filmes da Xuxa não pretendem exercer aquela que parece ser a missão do cinema brasileiro da retomada: elaborar explicações sociológicas para a nossa miséria e nossa violência. "Forjar uma imagem do Brasil", como diz o crítico. Por que é que todo filme nacional tem que diagnosticar e sentenciar o país?

Muito bem, os filmes de Cláudio Assis são muitas vezes recepcionados pelo público como se fizessem parte dessa tendência de "filmes-tratado". Mas o que me incomoda é que esse "tratado" é terrivelmente superficial (perto de um Cidade de Deus ou Tropa de Elite) e mais composto, nitidamente, por posicionamentos sectários por parte do diretor do que por reflexões bem dispostas sobre a complexidade do real em si.

Desse modo, Assis cria uma fantasia de Brasil equivalente à dos filmes "comerciais". A diferença é só o sinal: em Amarelo Manga, a fantasia é negativa.

Cláudio Assis (e Bianchi) exageram nos determinismos, mostrando - via de regra - os personagens como escravos de baixos instintos (animais), ligados a uma suposta natureza humana negativa e a uma - não tão suposta assim, logicamente - realidade social problemática.

Hoje sabemos que tal forma de determinismo ou darwinismo social possui tão pouco de "ciência" quanto a velha antropometria de Lombroso (todas essas eram consideradas ciência séria no XIX).

Com isso, mais parece que Assis força a realidade, usando os personagens apenas como "cascas" para guardar a visão de mundo intransigente e rancorosa do próprio diretor. É um julgamento por demais sumário, unilateral e simplista da realidade.

Por sua vez, filmes como O Grão dão mais abertura para a complexidade e liberdade do ser humano, para a ambivalência da vida e do meio social. O Grão não deixa de apontar para os problemas, mas não o faz no sentido de "diagnosticar" e "condenar" a realidade brasileira, equilibrando o lado negativo com o "positivo" das vivências subjetivas (o amor, a família, a fábula). É um filme mais sutil.

Enfim, acho que é isso. Vamos trocar mais ideias...

Valeu pelo comentário!