As imagens de Weerasethakul são profundamente engajadas na realidade, carregadas que são de fortes estímulos sensoriais – quase irrepreensíveis. No entanto, quanto mais o cinema do diretor tailandês abraça com volúpia o físico, mais este se torna prenhe do metafísico. Pois o rigor formal na composição dos quadros parece buscar, incondicionalmente, um diálogo e um equilíbrio entre pares de forças opostas: homem e natureza, realidade e fantasia, profano e sagrado, sonho e vigília, presente e passado, moderno e primitivo, história e mito. Na verdade, todas essas coisas são expressões de uma mesma dualidade, na qual se resume o Ser.
Os poetas bem conhecem esse movimento paradoxal de mergulhar no material para encontrar – no âmago mais íntimo da coisa – o inefável. “Só a natureza é divina, e ela não é divina...”, já dizia Alberto Caeiro, o mais (anti-)metafísico heterônimo de Fernando Pessoa. Neste sentido, podemos dizer que os filmes do diretor de Tropical Malady (2004) são os melhores representantes contemporâneos da – nunca suficiente, nem tranquilamente determinada – vertente do “cinema de poesia”. Em tempos de hiperrealidade, falar da virtualidade espiritual das imagens de cinema pode soar como uma heresia às avessas.
Mas Apichatpong Weerasethakul é, talvez, o “último dos moicanos” ao praticar – quase como profissão de fé – uma forma de cinema do sagrado que pouco tem a ver com a maioria das fitas que adornam as prateleiras de locadoras onde se leem: “bíblico / religioso”. Um filme como Tio Boonme, Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas (2010) parece realizar a profecia que o católico Henri Agel entreviu nas palavras de André Breton, no Segundo Manifesto do Surrealismo:
“Il s’agit toutefois ici d’un point-limite, d’un point idéal, où (…) les contradictoires se résoudraient dans une harmonie transcendante. C’ést bien le lieu de redire que, comme l’ont laissé entrevoir les surréalistes et aussi Jean Epstein, le cinématographe se rapprocherait de ce point ‘où la vie et la mort, le réel et l’imaginaire, le passé et le futur, le communicable et l’incommunicable, le haut et le bas, cessent d’être perçus contradictoirement’”. Métaphysique du Cinéma
(Trata-se, de qualquer maneira, de um ponto-limite, de um ponto ideal, onde (...) as contradições se resolveriam em uma harmonia transcendente. É bem o caso de dizer que, conforme nos deixaram entrever os surrealistas e Jean Epstein, o cinematógrafo se aproximará do ponto em que ‘a vida e a morte, o real e o imaginário, o passado e o futuro, o comunicável e o incomunicável, o alto e o baixo cessem de serem percebidos contraditoriamente’.)
Temos de confessar que é uma vocação bem entusiasmante – ambiciosa e maldita na mesma medida – para a sétima arte, ainda mais em nossos tempos pós-“tudo”. Mas há (ainda) cineastas-xamãs que resistem bravamente ao sistemático processo de desencantamento do mundo e da arte, e que são perniciosamente chamados de conservadores, saudosistas, etc. O buraco, graças aos deuses, é mais embaixo. Citemos o maior de todos eles:
“A questão da vanguarda é peculiar ao século XX, à época em que a arte vem progressivamente perdendo sua espiritualidade. (...) A opinião corrente é a de que esta situação reflete a ‘desespiritualização’ da sociedade moderna, um diagnóstico com o qual, a nível de simples constatação da tragédia, concordo plenamente: trata-se mesmo de um reflexo da atual situação. A arte, porém, não deve apenas refletir, mas também transcender; seu papel é fazer com que a visão espiritual influencie a realidade, como fez Dostoievski, o primeiro a expressar de forma inspirada o mal da época.” Andrei Tarkovski, Esculpir O Tempo
O protagonista de Tio Boonme, Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas sofre de uma doença terminal. Em seus últimos dias, é visitado por dois espíritos: o da falecida esposa e o do filho, transformado este numa espécie de sasquatch fantasmagórico, de assustadores olhos vermelhos que brilham no escuro. A partir daí, empreender-se-ão jornadas arquetípicas por selvas e cavernas, e Tio Boonme sonhará – muito profeticamente – com um futuro no qual tropas do governo hão de caçar e aprisionar os mitológicos “macacos-fantasmas”.
Mais uma vez, como no já citado Tropical Malady, o universo de Weerasethakul é o da fábula animada por – às vezes ingênuas, às vezes aterrorizantes – prosopopeias. Tio Boonme... dá continuidade à temática das metamorfoses (imagens teriomórficas são uma das representações de forças inconscientes, para ficarmos num registro psicológico). A epígrafe é, também aqui, esclarecedora: “Encarando a selva, as colinas e vales, meu passado vive na forma de um animal, e outros seres se erguem à minha frente.”
A lógica das associações poéticas rege a montagem deste filme, muito mais do que encadeamentos “explicáveis” de enredo. Isso fica patente no final “catatônico”, espécie de devaneio por cujas razões talvez seja até melhor o espectador se abster de buscar; a fruição de certas obras deve ser exercida com “outras antenas”, como diria Guimarães Rosa. De qualquer maneira, a selva é como a representação exterior da paisagem de alma do moribundo Tio Boonme, na qual estão para se resolver em “harmonia transcendente” todos os contrários que são o quinhão da existência terrena.
A natureza como quadro do espírito já havia sido colocada em Tropical Malady (naquele caso, enquanto figuração do desejo amoroso). Também daquele filme, toma-se o personagem Tong (um dos protagonistas), que lá mesmo já cita – em uma cena – que possui um tio chamado Boonme que pode recordar-se de suas vidas passadas. Porém, o mais importante em Tio Boonme..., em sua escolhas estéticas, não é a presença “concreta” do fantasmagórico em si, através de quaisquer efeitos especiais que permitem o aparecimento e desaparecimento do espírito da ex-esposa do protagonista, tanto quanto da maquiagem que entrega aos nossos olhos os terríveis “macacos-fantasmas”.
As figuras explícitas e inequívocas da surrealidade podem ser bastante impressionantes; mas não são elas que dotam o filme (junto do próprio cinema) daquela polivalência entre o físico e o metafísico de que tratamos no primeiro parágrafo deste texto. O metafísico deve permanecer sempre implícito na imagem cinematográfica, como um segredo, ou mistério. O metafísico usa como veículo, exclusivamente, a sugestão. As “antenas” com que o captamos são as da intuição. O metafísico deve provocar, em todos nós, aquela sensação de estranhamento (o das unheimlich freudiano) na qual justamente se resolvem em harmonia transcendente o familiar e o estranho.
Há uma cena exemplar neste filme em que a imagem é dotada dessa especial ambiguidade – acreditamos que seja o afortunado ápice dos resultados estéticos almejados por Weerasethakul. Trata-se de quando Tio Boonme, acompanhado pelo sobrinho, pela atual esposa e pelo espírito da anterior, atravessa o pórtico de uma gigantesca gruta (no fundo da qual ele finalmente virá a falecer). A entrada da caverna é formada por duas imensas rochas laterais, que deixam no meio um vão que lembra uma ferida exposta. Uma dessas rochas, filmada à contraluz (a câmera colocada no lado de dentro da gruta), assume a forma inconfundível de um rosto humano – visto de perfil.
A sabedoria do cineasta foi manter a câmera fixa enquanto cada um dos personagens vai passando cuidadosamente e desaparecendo em primeiro plano, sendo que um deles instintivamente apóia a mão sobre o que seriam os lábios do rosto de pedra. É tempo suficiente para que o espectador perceba a sugestão (se partilhar com o diretor da mesma visão poética). Essa imagem simples é exemplo e prova de um cinema que se abre para além do caráter mais concreto e racional da realidade. É modelo de um verdadeiro cinema metafísico.
Os filmes de Weerasethakul são altamente conceituais (a cena em questão nada mais é do que demonstração dos conteúdos mais fundamentais de Tio Boonme... que viemos discutindo: as profundas sínteses entre a natureza e o ser humano), mas não são filmes “de ideias” (a praga incontrolável do cinema dito “de arte”); são filmes em que a fotogenia das coisas fala antes de mais nada, uma vez que a sétima arte trata de imagens, e imagens em movimento. Sim, as imagens falam. E seu discurso é pleno de significado. Isso basta.
Os poetas bem conhecem esse movimento paradoxal de mergulhar no material para encontrar – no âmago mais íntimo da coisa – o inefável. “Só a natureza é divina, e ela não é divina...”, já dizia Alberto Caeiro, o mais (anti-)metafísico heterônimo de Fernando Pessoa. Neste sentido, podemos dizer que os filmes do diretor de Tropical Malady (2004) são os melhores representantes contemporâneos da – nunca suficiente, nem tranquilamente determinada – vertente do “cinema de poesia”. Em tempos de hiperrealidade, falar da virtualidade espiritual das imagens de cinema pode soar como uma heresia às avessas.
Mas Apichatpong Weerasethakul é, talvez, o “último dos moicanos” ao praticar – quase como profissão de fé – uma forma de cinema do sagrado que pouco tem a ver com a maioria das fitas que adornam as prateleiras de locadoras onde se leem: “bíblico / religioso”. Um filme como Tio Boonme, Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas (2010) parece realizar a profecia que o católico Henri Agel entreviu nas palavras de André Breton, no Segundo Manifesto do Surrealismo:
“Il s’agit toutefois ici d’un point-limite, d’un point idéal, où (…) les contradictoires se résoudraient dans une harmonie transcendante. C’ést bien le lieu de redire que, comme l’ont laissé entrevoir les surréalistes et aussi Jean Epstein, le cinématographe se rapprocherait de ce point ‘où la vie et la mort, le réel et l’imaginaire, le passé et le futur, le communicable et l’incommunicable, le haut et le bas, cessent d’être perçus contradictoirement’”. Métaphysique du Cinéma
(Trata-se, de qualquer maneira, de um ponto-limite, de um ponto ideal, onde (...) as contradições se resolveriam em uma harmonia transcendente. É bem o caso de dizer que, conforme nos deixaram entrever os surrealistas e Jean Epstein, o cinematógrafo se aproximará do ponto em que ‘a vida e a morte, o real e o imaginário, o passado e o futuro, o comunicável e o incomunicável, o alto e o baixo cessem de serem percebidos contraditoriamente’.)
Temos de confessar que é uma vocação bem entusiasmante – ambiciosa e maldita na mesma medida – para a sétima arte, ainda mais em nossos tempos pós-“tudo”. Mas há (ainda) cineastas-xamãs que resistem bravamente ao sistemático processo de desencantamento do mundo e da arte, e que são perniciosamente chamados de conservadores, saudosistas, etc. O buraco, graças aos deuses, é mais embaixo. Citemos o maior de todos eles:
“A questão da vanguarda é peculiar ao século XX, à época em que a arte vem progressivamente perdendo sua espiritualidade. (...) A opinião corrente é a de que esta situação reflete a ‘desespiritualização’ da sociedade moderna, um diagnóstico com o qual, a nível de simples constatação da tragédia, concordo plenamente: trata-se mesmo de um reflexo da atual situação. A arte, porém, não deve apenas refletir, mas também transcender; seu papel é fazer com que a visão espiritual influencie a realidade, como fez Dostoievski, o primeiro a expressar de forma inspirada o mal da época.” Andrei Tarkovski, Esculpir O Tempo
O protagonista de Tio Boonme, Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas sofre de uma doença terminal. Em seus últimos dias, é visitado por dois espíritos: o da falecida esposa e o do filho, transformado este numa espécie de sasquatch fantasmagórico, de assustadores olhos vermelhos que brilham no escuro. A partir daí, empreender-se-ão jornadas arquetípicas por selvas e cavernas, e Tio Boonme sonhará – muito profeticamente – com um futuro no qual tropas do governo hão de caçar e aprisionar os mitológicos “macacos-fantasmas”.
Mais uma vez, como no já citado Tropical Malady, o universo de Weerasethakul é o da fábula animada por – às vezes ingênuas, às vezes aterrorizantes – prosopopeias. Tio Boonme... dá continuidade à temática das metamorfoses (imagens teriomórficas são uma das representações de forças inconscientes, para ficarmos num registro psicológico). A epígrafe é, também aqui, esclarecedora: “Encarando a selva, as colinas e vales, meu passado vive na forma de um animal, e outros seres se erguem à minha frente.”
A lógica das associações poéticas rege a montagem deste filme, muito mais do que encadeamentos “explicáveis” de enredo. Isso fica patente no final “catatônico”, espécie de devaneio por cujas razões talvez seja até melhor o espectador se abster de buscar; a fruição de certas obras deve ser exercida com “outras antenas”, como diria Guimarães Rosa. De qualquer maneira, a selva é como a representação exterior da paisagem de alma do moribundo Tio Boonme, na qual estão para se resolver em “harmonia transcendente” todos os contrários que são o quinhão da existência terrena.
A natureza como quadro do espírito já havia sido colocada em Tropical Malady (naquele caso, enquanto figuração do desejo amoroso). Também daquele filme, toma-se o personagem Tong (um dos protagonistas), que lá mesmo já cita – em uma cena – que possui um tio chamado Boonme que pode recordar-se de suas vidas passadas. Porém, o mais importante em Tio Boonme..., em sua escolhas estéticas, não é a presença “concreta” do fantasmagórico em si, através de quaisquer efeitos especiais que permitem o aparecimento e desaparecimento do espírito da ex-esposa do protagonista, tanto quanto da maquiagem que entrega aos nossos olhos os terríveis “macacos-fantasmas”.
As figuras explícitas e inequívocas da surrealidade podem ser bastante impressionantes; mas não são elas que dotam o filme (junto do próprio cinema) daquela polivalência entre o físico e o metafísico de que tratamos no primeiro parágrafo deste texto. O metafísico deve permanecer sempre implícito na imagem cinematográfica, como um segredo, ou mistério. O metafísico usa como veículo, exclusivamente, a sugestão. As “antenas” com que o captamos são as da intuição. O metafísico deve provocar, em todos nós, aquela sensação de estranhamento (o das unheimlich freudiano) na qual justamente se resolvem em harmonia transcendente o familiar e o estranho.
Há uma cena exemplar neste filme em que a imagem é dotada dessa especial ambiguidade – acreditamos que seja o afortunado ápice dos resultados estéticos almejados por Weerasethakul. Trata-se de quando Tio Boonme, acompanhado pelo sobrinho, pela atual esposa e pelo espírito da anterior, atravessa o pórtico de uma gigantesca gruta (no fundo da qual ele finalmente virá a falecer). A entrada da caverna é formada por duas imensas rochas laterais, que deixam no meio um vão que lembra uma ferida exposta. Uma dessas rochas, filmada à contraluz (a câmera colocada no lado de dentro da gruta), assume a forma inconfundível de um rosto humano – visto de perfil.
A sabedoria do cineasta foi manter a câmera fixa enquanto cada um dos personagens vai passando cuidadosamente e desaparecendo em primeiro plano, sendo que um deles instintivamente apóia a mão sobre o que seriam os lábios do rosto de pedra. É tempo suficiente para que o espectador perceba a sugestão (se partilhar com o diretor da mesma visão poética). Essa imagem simples é exemplo e prova de um cinema que se abre para além do caráter mais concreto e racional da realidade. É modelo de um verdadeiro cinema metafísico.
Os filmes de Weerasethakul são altamente conceituais (a cena em questão nada mais é do que demonstração dos conteúdos mais fundamentais de Tio Boonme... que viemos discutindo: as profundas sínteses entre a natureza e o ser humano), mas não são filmes “de ideias” (a praga incontrolável do cinema dito “de arte”); são filmes em que a fotogenia das coisas fala antes de mais nada, uma vez que a sétima arte trata de imagens, e imagens em movimento. Sim, as imagens falam. E seu discurso é pleno de significado. Isso basta.
4 comentários:
Bastante perspicaz sua leitura da cena da caverna. Não havia percebido.Nem lembrava da alusão ao tio em Tropical Malady.
Já escrevi sobre "Síndromes e um século":
http://blogdowandersonlima.blogspot.com/2010/06/sindromes-e-um-seculo-2006-de.html
A cena da caverna é bem sutil... Singela!
Tô passando lá agora pra ler o seu texto.
Belo texto! É dos meus filmes favoritos, se não o favorito.
A proposito, tb escrevi sobre o filme no meu blog. Lembro que há muito tempo você tinha comentado nele sobre o Dog Soldiers, lembra? Abraços
Obrigado, colega! Vou passar lá para dar uma olhada...
"Dog Soldiers" do Neil Marshall, não? Meu predileto é "Abismo do Medo", falta ver "Centurião"...
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