Hoje o Sombras Elétricas completa 04 anos de vida, em suas 375 postagens, 61.575 visitas e 701 comentários. Agradecimentos muito carinhosos aos leitores, apoiadores, críticos e colegas blogueiros.
Agora, conforme prometido, o texto traduzido da Film Comment – do qual começamos a falar na última postagem.
OS VIVOS E OS MORTOS – “online” vs. “old school”: hora da desmistificação
por Paul Brunick
PARTE I
Para muitos de nós, a prática de crítica cinematográfica é mais excitante hoje do que tem sido por décadas. Sim, realmente. Isto pode soar como uma postura contrariante à luz dos muitos, muitos ensaios que têm recentemente propagado a “morte” da crítica de cinema (um alerta: a culpa é da Internet!); mas minha intenção é apenas constatar os fatos sob um ponto de vista mais comum do que geralmente se pensa.
Quando os “experts” se entregam aos seus devaneios de como a crítica era “antes da Internet”, eles geralmente acabam falando dos anos 60 e 70. É um truque bastante revelador. Embora tal período seja preservado como uma joia rara por muitos cinéfilos, para os críticos a nostalgia é mais severa. Enquanto os cineastas-autores da era clássica encontravam pouco uso para os “connaisseurs”, o momento pós-Cahiers das trocas de farpas beneficiava-se do mútuo enriquecimento entre a crítica e a criação. E as platéias também embarcaram nessa, sincronizando os seus gostos com os dos críticos em uma extensão que estes nunca tinham visto até então (e nunca voltaram a ver depois). Pela primeira vez nos EUA, havia um debate nacional sobre filmes que não se reduzia à sua política ou à sua “influência moral”, mas girava em torno de sua estética. Se a crítica cinematográfica teve uma era de ouro, foi essa.
Mas a festa acabou no começo dos anos 80, e uma ressaca cinzenta tem tipificado as reflexões desde então. A era do blockbuster empurrou a ambiciosa cinefilia para as margens da cultura popular, onde aquela se encontra agora sentada em exílio como um rei deposto que aguarda pacientemente a restauração. Isso não evitou eventuais turnos de entusiasmo crítico – a maneira como os resenhistas escrevem sobre os filmes (semana sim, semana não) é, com frequência, bem diferente de como eles escrevem sobre o cinema como um todo (enquanto indústria e forma de arte). Para os comentadores que têm trabalhado nas últimas três décadas, um filme poderia ser uma comédia em primeiro plano, mas sempre uma tragédia no plano geral. Hoje em dia, o canto de cisne do moribundo crítico de jornal pode ser melhor compreendido como uma luta burocrática nesta guerra fria cultural. Então, por que é que tantas pérolas de pensamento tentam sugerir que o barco ia de vento em popa até os bloggers invadirem a cena e arruinarem a coisa toda?
-
“As lições da História são reveladoras”, escreve Thomas Doherty – colaborador do Chronicle of Higher Education – sobre o documentário For The Love of Movies: The Story of American Film Criticism. Mas o saudosista filme dirigido pelo crítico Gerald Peary é, na verdade, o oposto de revelador. Não passa de uma auto-afirmação. As principais atrações deste filme não vão além das caricaturas apressadas de estorvadas personalidades críticas: a santíssima trindade de Otis Ferguson, Manny Farber e James Agee; além do irrepreensível casal formado por Pauline Kael e Andrew Sarris. Este canônico time dos sonhos foi reunido para representar a crítica cinematográfica do século XX como uma tradição unificada, que se encontraria sitiada na era da Web (visualize imagens de arquivo mostrando mãos datilografando sob a sugestão de uma ambientadora trilha musical, como num “reality show” vulgar).
Para sermos justos, o filme oferece um ocasional aceno em direção ao equilíbrio de pontos de vista, quando a “blogueira” e agora editora de cinema do LA Weekly, Karina Longworth, faz uma aparição. Mas a montagem não deixa de favorecer aquelas cabeças falantes irrepreensivelmente dispostas a vomitar desespero ou cuspir veneno. “O que eu vejo nas resenhas de Internet são pessoas cuja ignorância é apenas ligeiramente menor do que a média expressando-se a si mesmas dentro da média”, opina o crítico da Time Richard Schickel. Quanto a Rex Reed, do The New York Observer, captamos melhor a nuança do seu discurso na insolente escolha das palavras: “essa gente”. Citando ambos, Doherty eleva a investida a paroxismos barrocos. Para ele, críticos digitais são “moleques arruaceiros que ainda pagam meia-entrada nos multiplex”; “homens pueris do povão, viscerais e emotivos”; e “trogloditas semi-letrados que perambulam pela paisagem rugindo exclamações”.
É foda! Eu até gostaria de dizer que os sentimentos de Doherty são únicos, mas artigos parecidos com o dele (tão parecidos, que poderiam ser escritos com os mesmos templates) têm sido uma fixação da imprensa mainstream por muito tempo. Tendo vinte e poucos anos, eu preciso admitir que esta compulsória condescendência em relação às gerações mais novas é particularmente irritante. Aparentemente, eu não leio. Coisa alguma. Nem tenho eu qualquer interesse em assistir ao “Encouraçado Pokémon” de Albert Einstein, porque, cá entre nós, eu já vi a versão colorida mesmo. Felizmente, o severo déficit de atenção de que sofro me compele a clicar para longe desses artigos e de seus justos sermões.
Bater-se de frente contra a retórica vazia da retaguarda crítica torna-se simplesmente improdutivo a partir de certo grau. Eu escrevi alguns parágrafos cuidadosamente urdidos em resposta aos prognósticos do crítico do New York Press, Armond White; mas, honestamente, de que adianta? Testemunhei White esbravejar contra a devastação cultural que seria o ciberespaço em alguns ensaios bem longos e meia dúzia de entrevistas, mas ainda falta vê-lo nomear quaisquer sites específicos que vão além do Ain’t It Cool News e do Rotten Tomatoes, os quais são certamente frutos bem rasteiros. Embora a autoridade histórica e o dinamismo verbal de White intimidem você quase a ponto de achar que ele está certo, quanto mais eu o releio, mais claro se torna o fato de que suas polêmicas não encontram chão na realidade empírica do presente. É apenas um esforço de má-fé, uma recusa total de se dedicar ao objeto em questão, porque tal objeto é definido – a priori – como indigno de dedicação. Isso nos lembra daqueles críticos que, em 1937, ainda faziam manha contra o som sincronizado.
Então, por que responder? Parcialmente, porque acredito que o talento crítico emergente na Web beneficiar-se-ia de maior apoio institucional. Mas principalmente, porque eu faço objeção à maneira como tais artigos barateiam a cinefilia. Esses “experts” brandem os nomes dos meus heróis da crítica como se estes fossem pouco mais do que paus e pedras na malhação dos jovens iniciantes. Eles se posicionam como designados guardiões de uma sabedoria herdada, tendendo a inflamarem-se conforme a idade das trevas digital se espalha pela terra; mas, ao invés de pensamento histórico aplicado, eles comercializam utilizando nostalgia pré-fabricada e desdém reacionário. Enquanto isso, uma geração de cinéfilos nascentes está sendo afastada do mesmo cânone que esses “experts” querem defender. Como a molecada diria hoje em dia: JÁ ERA! A história do comentário de filmes tem muito mais a dizer sobre o seu presente e futuro do que a fácil auto-afirmação do status quo.
-
Antes de tentar explorar as vastas paisagens do ciberespaço (o que será feito na próxima edição), vamos dar uma segunda olhada nas carreiras de dois críticos muito violentados. O artigo de Doherty no Chronicle prossegue em For The Love of Movies: “A sua narrativa espinhal é a lendária e rancorosa disputa entre Andrew Sarris e Pauline Kael... Kael deu o primeiro golpe em seu duro ataque ao culto do diretor enquanto autor – ‘Circles and Squares’, publicado em 1963. Esse ensaio ajudou a deslanchar duas carreiras: a dela própria, enquanto crítica que não leva desaforo para casa, e a do seu alvo (Sarris), que subitamente reconheceu o manifesto de uma nova crença nos textos obscuros que publicara na Film Comment (de baixa circulação na época).”
Pode ser meio chato apontar que os primeiros artigos de Sarris foram, na verdade, publicados em Film Culture (ele só começaria a colaborar regularmente com esta revista em 1970), mas é um detalhe insignificante. Film Culture foi o órgão não-oficial da cena cinematográfica underground de Nova York, um trabalho de amor nutrido pelos irmãos Adolfas e Jonas Mekas. Só podia ser considerada uma revista “impressa” na medida em que não era escrita à mão num guardanapo de bar, uma vez que o seu espírito anti-establishment tinha pouco em comum com o jornalismo mainstream. Quando Sarris começou a escrever para ela no final dos anos 50, ele o fazia de graça.
E quanto a Pauline Kael? Ela mal poderia tirar Sarris da obscuridade em 1963, quando ela própria ainda era perfeitamente obscura. Seu debute se deu alguns anos mais tarde, quando uma coletânea de seus primeiros escritos, I Lost It All at the Movies, tornou-se um surpreendente bestseller. Examine o índice desse livro e você verá que muitos dos seus ensaios derivaram de trabalhos freelance inacreditavelmente sub-remunerados, feitos para periódicos de nichos específicos e comércio acadêmico; “Circles and Squares” rodou em Film Quarterly, uma revista que quase tinha abaixado as portas poucos anos antes por falta de assinantes. E muitas das resenhas são transcrições de participações que Kael escreveu e gravou para rádios universitárias, mais uma vez, de graça. Mas quando ela finalmente conquistou uma posição fixa no periódico de alta circulação McCall’s, em 1965, o seu contrato inicial de um ano jamais foi renovado. Por que? Como o editor Robert Stein admitiu com bastante franqueza anos mais tarde: “Ela não parava de detonar todo e qualquer filme comercial”.
Por um acaso, qualquer um desses fatos parecem a você afirmações auto-evidenciadas de profissionalismo de mercado? Por um acaso, iconoclastas e autodidatas do tipo de Kael e Sarris teriam realmente enxergado o poder de auto-publicação da Internet como algum tipo de intrusão indesejada?
As trajetórias pessoais de Kael e Sarris sugerem para mim que os grandes críticos de filmes sabem conciliar integridade e carreirismo numa tensão produtiva que torna insignificante qualquer noção de hierarquia. De modo mais prático, as suas obras demonstram que críticos de cinema trabalham melhor quando são capazes de escrever numa variedade de formatos que variam enormemente em volume, estilo retórico e público presumido. A inteligência de Kael, que viaja na velocidade da luz, associada à frequência também veloz com que escreve, fizeram com que o trabalho de resenhas semanais que ela tinha no The New Yorker fosse bem adequado ao seu temperamento; mas o seu legado pode igualmente ser encontrado nos longos ensaios com estilo de manifestos nos quais ela atacou questões mais abrangentes de indústria e de estética. “Trash, Art and The Movies”, artigo de 1969 publicado no Harper, tinha 15.000 palavras sobre... bem, não é tão fácil fazer uma sinopse. E este é o ponto da questão. Que bela revista impressa hoje em dia aceitaria publicar um texto de tal tamanho e tal ambição? Para qual revista se dirigiria um seguidor contemporâneo de Sarris que quisesse publicar umas “Anotações Sobre a Política dos Autores em 2010”?
-
Se há um ponto no qual eu até simpatizo com as facções “apocalípticas”, é na sua solidariedade para com os recentemente desempregados das seções de artes e cultura de qualquer jornal. Não posso imaginar o que deve ser passar décadas em uma carreira que outrora prometia estabilidade até a aposentadoria apenas para ter o tapete puxado debaixo de seus pés. É trágico. O sadismo com que se realiza cada uma dessas demissões é nojento, e são geralmente retardados os argumentos em favor da imprestabilidade social da figura do crítico (há sempre algum pesquisador aplicado que descobre que “crítico” é etimologicamente relacionado a “criticar”). Porém, o grau com que esses cortes de pessoal ocasionaram reflexões a respeito do futuro da crítica acabou distorcendo a análise, lembrando frequentemente aquelas racionalizações posteriores que se tentam fazer de uma explosão de nervos. E quanto à ideia de que este período de destruição pode levar a uma ressurreição das próprias cinzas, como uma Fênix? Você consegue sequer sugerir isso sem soar como um completo malcriado?
No geral, a crise existencial do jornalismo tem sido exagerada. Se você mantém as rédeas curtas durante as grandes recessões, mas soltando-as para o grande número de posições criadas pela economia do ciberespaço, acreditando (como eu) que o futuro da publicidade online ainda está para ser conquistado, então as perspectivas passam de desesperadoras para apenas ruins. Dentro da próxima década, a indústria de notícias encontrará uma solução para seus problemas de rendimentos (minha teoria pessoal é de que edições digitais de marcas bem estabelecidas serão embrulhadas e entregues como se fazem com os pacotes de TV a cabo). Se esta confiança soa ingênua, é porque ela nasce de um questionável cinismo: no fundo, acredito que a revolução das fontes livres na Web será inevitavelmente esvaziada em tamanho e efeitos pela contrarrevolução de direcionamento econômico que está para chegar. O capitalismo sempre acha um jeito.
Mas aqui vai um toque de realidade: o sistema que atualmente está sendo reestruturado não era, particularmente, um grande sistema para começo de conversa. E os críticos sabem disso. Eles têm reclamado durante os últimos 30 anos. Quando Hollywood reconhece experimentalismos de linguagem e complexidade dramática só tardiamente, relegando-os maliciosamente às divisões “especiais” de seus estúdios; quando o lançamento de filmes estrangeiros é relegado a guetos específicos num punhado de cidades grandes; quando os espectadores são definidos pelo mais baixo denominador comum de sua indiferença; então, temos aí a situação em que dúzias de críticos profissionais tentam expandir sua inteligência coletiva para encontrar novas maneiras de analisar sarcasticamente o virtuosismo de um Brett Ratner ou a desumanidade de um Michael Bay (ambos os casos dignos de nota, mas dificilmente seriam o apogeu da crítica cultural). Mas e quanto às outras funções de um crítico: proselitismo em favor dos criativamente triunfantes, mas comercialmente marginais; garimpagem em velhos catálogos à busca de obras-primas não-apreciadas em seu tempo; colocação dos filmes dentro das narrativas mais abrangentes da história das ideias; transformação de gosto pessoal em arte ensaística para o benefício de si própria? Nas mercantilizadas colunas de resenhas em jornais, tais práticas têm sido a exceção, e não a regra.
Elogiar saudosamente o passado da crítica de filmes é, no final das contas, traí-lo. Como Oscar Wilde escreveu uma vez: “É somente o moderno que sempre sai de moda”. O presente digital – incipiente, desengonçado, volátil, mas bastante vivo – anima-se de uma promessa pulsante: a próxima era de ouro pode estar apenas a alguns cliques de distância.
Por hoje é só, galera. Na sequência: comentários ao texto acima.
Agora, conforme prometido, o texto traduzido da Film Comment – do qual começamos a falar na última postagem.
OS VIVOS E OS MORTOS – “online” vs. “old school”: hora da desmistificação
por Paul Brunick
PARTE I
Para muitos de nós, a prática de crítica cinematográfica é mais excitante hoje do que tem sido por décadas. Sim, realmente. Isto pode soar como uma postura contrariante à luz dos muitos, muitos ensaios que têm recentemente propagado a “morte” da crítica de cinema (um alerta: a culpa é da Internet!); mas minha intenção é apenas constatar os fatos sob um ponto de vista mais comum do que geralmente se pensa.
Quando os “experts” se entregam aos seus devaneios de como a crítica era “antes da Internet”, eles geralmente acabam falando dos anos 60 e 70. É um truque bastante revelador. Embora tal período seja preservado como uma joia rara por muitos cinéfilos, para os críticos a nostalgia é mais severa. Enquanto os cineastas-autores da era clássica encontravam pouco uso para os “connaisseurs”, o momento pós-Cahiers das trocas de farpas beneficiava-se do mútuo enriquecimento entre a crítica e a criação. E as platéias também embarcaram nessa, sincronizando os seus gostos com os dos críticos em uma extensão que estes nunca tinham visto até então (e nunca voltaram a ver depois). Pela primeira vez nos EUA, havia um debate nacional sobre filmes que não se reduzia à sua política ou à sua “influência moral”, mas girava em torno de sua estética. Se a crítica cinematográfica teve uma era de ouro, foi essa.
Mas a festa acabou no começo dos anos 80, e uma ressaca cinzenta tem tipificado as reflexões desde então. A era do blockbuster empurrou a ambiciosa cinefilia para as margens da cultura popular, onde aquela se encontra agora sentada em exílio como um rei deposto que aguarda pacientemente a restauração. Isso não evitou eventuais turnos de entusiasmo crítico – a maneira como os resenhistas escrevem sobre os filmes (semana sim, semana não) é, com frequência, bem diferente de como eles escrevem sobre o cinema como um todo (enquanto indústria e forma de arte). Para os comentadores que têm trabalhado nas últimas três décadas, um filme poderia ser uma comédia em primeiro plano, mas sempre uma tragédia no plano geral. Hoje em dia, o canto de cisne do moribundo crítico de jornal pode ser melhor compreendido como uma luta burocrática nesta guerra fria cultural. Então, por que é que tantas pérolas de pensamento tentam sugerir que o barco ia de vento em popa até os bloggers invadirem a cena e arruinarem a coisa toda?
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“As lições da História são reveladoras”, escreve Thomas Doherty – colaborador do Chronicle of Higher Education – sobre o documentário For The Love of Movies: The Story of American Film Criticism. Mas o saudosista filme dirigido pelo crítico Gerald Peary é, na verdade, o oposto de revelador. Não passa de uma auto-afirmação. As principais atrações deste filme não vão além das caricaturas apressadas de estorvadas personalidades críticas: a santíssima trindade de Otis Ferguson, Manny Farber e James Agee; além do irrepreensível casal formado por Pauline Kael e Andrew Sarris. Este canônico time dos sonhos foi reunido para representar a crítica cinematográfica do século XX como uma tradição unificada, que se encontraria sitiada na era da Web (visualize imagens de arquivo mostrando mãos datilografando sob a sugestão de uma ambientadora trilha musical, como num “reality show” vulgar).
Para sermos justos, o filme oferece um ocasional aceno em direção ao equilíbrio de pontos de vista, quando a “blogueira” e agora editora de cinema do LA Weekly, Karina Longworth, faz uma aparição. Mas a montagem não deixa de favorecer aquelas cabeças falantes irrepreensivelmente dispostas a vomitar desespero ou cuspir veneno. “O que eu vejo nas resenhas de Internet são pessoas cuja ignorância é apenas ligeiramente menor do que a média expressando-se a si mesmas dentro da média”, opina o crítico da Time Richard Schickel. Quanto a Rex Reed, do The New York Observer, captamos melhor a nuança do seu discurso na insolente escolha das palavras: “essa gente”. Citando ambos, Doherty eleva a investida a paroxismos barrocos. Para ele, críticos digitais são “moleques arruaceiros que ainda pagam meia-entrada nos multiplex”; “homens pueris do povão, viscerais e emotivos”; e “trogloditas semi-letrados que perambulam pela paisagem rugindo exclamações”.
É foda! Eu até gostaria de dizer que os sentimentos de Doherty são únicos, mas artigos parecidos com o dele (tão parecidos, que poderiam ser escritos com os mesmos templates) têm sido uma fixação da imprensa mainstream por muito tempo. Tendo vinte e poucos anos, eu preciso admitir que esta compulsória condescendência em relação às gerações mais novas é particularmente irritante. Aparentemente, eu não leio. Coisa alguma. Nem tenho eu qualquer interesse em assistir ao “Encouraçado Pokémon” de Albert Einstein, porque, cá entre nós, eu já vi a versão colorida mesmo. Felizmente, o severo déficit de atenção de que sofro me compele a clicar para longe desses artigos e de seus justos sermões.
Bater-se de frente contra a retórica vazia da retaguarda crítica torna-se simplesmente improdutivo a partir de certo grau. Eu escrevi alguns parágrafos cuidadosamente urdidos em resposta aos prognósticos do crítico do New York Press, Armond White; mas, honestamente, de que adianta? Testemunhei White esbravejar contra a devastação cultural que seria o ciberespaço em alguns ensaios bem longos e meia dúzia de entrevistas, mas ainda falta vê-lo nomear quaisquer sites específicos que vão além do Ain’t It Cool News e do Rotten Tomatoes, os quais são certamente frutos bem rasteiros. Embora a autoridade histórica e o dinamismo verbal de White intimidem você quase a ponto de achar que ele está certo, quanto mais eu o releio, mais claro se torna o fato de que suas polêmicas não encontram chão na realidade empírica do presente. É apenas um esforço de má-fé, uma recusa total de se dedicar ao objeto em questão, porque tal objeto é definido – a priori – como indigno de dedicação. Isso nos lembra daqueles críticos que, em 1937, ainda faziam manha contra o som sincronizado.
Então, por que responder? Parcialmente, porque acredito que o talento crítico emergente na Web beneficiar-se-ia de maior apoio institucional. Mas principalmente, porque eu faço objeção à maneira como tais artigos barateiam a cinefilia. Esses “experts” brandem os nomes dos meus heróis da crítica como se estes fossem pouco mais do que paus e pedras na malhação dos jovens iniciantes. Eles se posicionam como designados guardiões de uma sabedoria herdada, tendendo a inflamarem-se conforme a idade das trevas digital se espalha pela terra; mas, ao invés de pensamento histórico aplicado, eles comercializam utilizando nostalgia pré-fabricada e desdém reacionário. Enquanto isso, uma geração de cinéfilos nascentes está sendo afastada do mesmo cânone que esses “experts” querem defender. Como a molecada diria hoje em dia: JÁ ERA! A história do comentário de filmes tem muito mais a dizer sobre o seu presente e futuro do que a fácil auto-afirmação do status quo.
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Antes de tentar explorar as vastas paisagens do ciberespaço (o que será feito na próxima edição), vamos dar uma segunda olhada nas carreiras de dois críticos muito violentados. O artigo de Doherty no Chronicle prossegue em For The Love of Movies: “A sua narrativa espinhal é a lendária e rancorosa disputa entre Andrew Sarris e Pauline Kael... Kael deu o primeiro golpe em seu duro ataque ao culto do diretor enquanto autor – ‘Circles and Squares’, publicado em 1963. Esse ensaio ajudou a deslanchar duas carreiras: a dela própria, enquanto crítica que não leva desaforo para casa, e a do seu alvo (Sarris), que subitamente reconheceu o manifesto de uma nova crença nos textos obscuros que publicara na Film Comment (de baixa circulação na época).”
Pode ser meio chato apontar que os primeiros artigos de Sarris foram, na verdade, publicados em Film Culture (ele só começaria a colaborar regularmente com esta revista em 1970), mas é um detalhe insignificante. Film Culture foi o órgão não-oficial da cena cinematográfica underground de Nova York, um trabalho de amor nutrido pelos irmãos Adolfas e Jonas Mekas. Só podia ser considerada uma revista “impressa” na medida em que não era escrita à mão num guardanapo de bar, uma vez que o seu espírito anti-establishment tinha pouco em comum com o jornalismo mainstream. Quando Sarris começou a escrever para ela no final dos anos 50, ele o fazia de graça.
E quanto a Pauline Kael? Ela mal poderia tirar Sarris da obscuridade em 1963, quando ela própria ainda era perfeitamente obscura. Seu debute se deu alguns anos mais tarde, quando uma coletânea de seus primeiros escritos, I Lost It All at the Movies, tornou-se um surpreendente bestseller. Examine o índice desse livro e você verá que muitos dos seus ensaios derivaram de trabalhos freelance inacreditavelmente sub-remunerados, feitos para periódicos de nichos específicos e comércio acadêmico; “Circles and Squares” rodou em Film Quarterly, uma revista que quase tinha abaixado as portas poucos anos antes por falta de assinantes. E muitas das resenhas são transcrições de participações que Kael escreveu e gravou para rádios universitárias, mais uma vez, de graça. Mas quando ela finalmente conquistou uma posição fixa no periódico de alta circulação McCall’s, em 1965, o seu contrato inicial de um ano jamais foi renovado. Por que? Como o editor Robert Stein admitiu com bastante franqueza anos mais tarde: “Ela não parava de detonar todo e qualquer filme comercial”.
Por um acaso, qualquer um desses fatos parecem a você afirmações auto-evidenciadas de profissionalismo de mercado? Por um acaso, iconoclastas e autodidatas do tipo de Kael e Sarris teriam realmente enxergado o poder de auto-publicação da Internet como algum tipo de intrusão indesejada?
As trajetórias pessoais de Kael e Sarris sugerem para mim que os grandes críticos de filmes sabem conciliar integridade e carreirismo numa tensão produtiva que torna insignificante qualquer noção de hierarquia. De modo mais prático, as suas obras demonstram que críticos de cinema trabalham melhor quando são capazes de escrever numa variedade de formatos que variam enormemente em volume, estilo retórico e público presumido. A inteligência de Kael, que viaja na velocidade da luz, associada à frequência também veloz com que escreve, fizeram com que o trabalho de resenhas semanais que ela tinha no The New Yorker fosse bem adequado ao seu temperamento; mas o seu legado pode igualmente ser encontrado nos longos ensaios com estilo de manifestos nos quais ela atacou questões mais abrangentes de indústria e de estética. “Trash, Art and The Movies”, artigo de 1969 publicado no Harper, tinha 15.000 palavras sobre... bem, não é tão fácil fazer uma sinopse. E este é o ponto da questão. Que bela revista impressa hoje em dia aceitaria publicar um texto de tal tamanho e tal ambição? Para qual revista se dirigiria um seguidor contemporâneo de Sarris que quisesse publicar umas “Anotações Sobre a Política dos Autores em 2010”?
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Se há um ponto no qual eu até simpatizo com as facções “apocalípticas”, é na sua solidariedade para com os recentemente desempregados das seções de artes e cultura de qualquer jornal. Não posso imaginar o que deve ser passar décadas em uma carreira que outrora prometia estabilidade até a aposentadoria apenas para ter o tapete puxado debaixo de seus pés. É trágico. O sadismo com que se realiza cada uma dessas demissões é nojento, e são geralmente retardados os argumentos em favor da imprestabilidade social da figura do crítico (há sempre algum pesquisador aplicado que descobre que “crítico” é etimologicamente relacionado a “criticar”). Porém, o grau com que esses cortes de pessoal ocasionaram reflexões a respeito do futuro da crítica acabou distorcendo a análise, lembrando frequentemente aquelas racionalizações posteriores que se tentam fazer de uma explosão de nervos. E quanto à ideia de que este período de destruição pode levar a uma ressurreição das próprias cinzas, como uma Fênix? Você consegue sequer sugerir isso sem soar como um completo malcriado?
No geral, a crise existencial do jornalismo tem sido exagerada. Se você mantém as rédeas curtas durante as grandes recessões, mas soltando-as para o grande número de posições criadas pela economia do ciberespaço, acreditando (como eu) que o futuro da publicidade online ainda está para ser conquistado, então as perspectivas passam de desesperadoras para apenas ruins. Dentro da próxima década, a indústria de notícias encontrará uma solução para seus problemas de rendimentos (minha teoria pessoal é de que edições digitais de marcas bem estabelecidas serão embrulhadas e entregues como se fazem com os pacotes de TV a cabo). Se esta confiança soa ingênua, é porque ela nasce de um questionável cinismo: no fundo, acredito que a revolução das fontes livres na Web será inevitavelmente esvaziada em tamanho e efeitos pela contrarrevolução de direcionamento econômico que está para chegar. O capitalismo sempre acha um jeito.
Mas aqui vai um toque de realidade: o sistema que atualmente está sendo reestruturado não era, particularmente, um grande sistema para começo de conversa. E os críticos sabem disso. Eles têm reclamado durante os últimos 30 anos. Quando Hollywood reconhece experimentalismos de linguagem e complexidade dramática só tardiamente, relegando-os maliciosamente às divisões “especiais” de seus estúdios; quando o lançamento de filmes estrangeiros é relegado a guetos específicos num punhado de cidades grandes; quando os espectadores são definidos pelo mais baixo denominador comum de sua indiferença; então, temos aí a situação em que dúzias de críticos profissionais tentam expandir sua inteligência coletiva para encontrar novas maneiras de analisar sarcasticamente o virtuosismo de um Brett Ratner ou a desumanidade de um Michael Bay (ambos os casos dignos de nota, mas dificilmente seriam o apogeu da crítica cultural). Mas e quanto às outras funções de um crítico: proselitismo em favor dos criativamente triunfantes, mas comercialmente marginais; garimpagem em velhos catálogos à busca de obras-primas não-apreciadas em seu tempo; colocação dos filmes dentro das narrativas mais abrangentes da história das ideias; transformação de gosto pessoal em arte ensaística para o benefício de si própria? Nas mercantilizadas colunas de resenhas em jornais, tais práticas têm sido a exceção, e não a regra.
Elogiar saudosamente o passado da crítica de filmes é, no final das contas, traí-lo. Como Oscar Wilde escreveu uma vez: “É somente o moderno que sempre sai de moda”. O presente digital – incipiente, desengonçado, volátil, mas bastante vivo – anima-se de uma promessa pulsante: a próxima era de ouro pode estar apenas a alguns cliques de distância.
Por hoje é só, galera. Na sequência: comentários ao texto acima.
4 comentários:
Prezado,
A crítica de cauda longa ("long tail") é só mais um fenômeno da democratização cultural. Todo o modelo dos jornalões está combalido porque os tópicos da formação de opinião, especialização e "qualidade" não valem mais.
Hoje, é possível ter acesso a muito mais opiniões, a muito mais terrenos críticos, e compor por si só as suas leituras preferenciais.
Hoje as tecnologias sociais garantem que também possamos ser emissores, nós de uma rede acéfala, daí múltipla e dinâmica. E o jornalão não consegue acompanhar. Isto vale pra arte, pra política, pro esporte.
Caíram as credenciais. Eu, por exemplo, sou produto por assim dizer de uma "cinefilia selvagem", por fora de cinematecas e cineclubes. Nasci na década de 1970 numa cidade média e vivi intensamente o VHS. De cinéfilo passei a crítico, sem adquirir credenciais na academia ou no jornalismo cultural. Não à toa me apaixone por Tarantino. Ofereço uma opinião descredenciada, autodidata, diletante, mas que também constitui o seu público. Eu e muitos outros blogues.
Abraço! acompanho-o há meses.
A maior prova de que a grande crítica (e análise) de Cinema hoje em dia se encontra na web é este blog...
Aonde mais alguém se daria ao trabalho de traduzir este artigo, comentá-lo e ainda abrir espaço para receber comentários de visitantes...
Parabéns pelo blog, André...
Bruno: Concordo bastante. Sempre odiei parâmetros de especialização, assim como cânones pré-estabelecidos e supostamente inquestionáveis. É claro que um professor de artes ou crítico cultural deveria ter, em princípio, uma formação mais aprofundada e abrangente do que o público "leigo", mas esta deve tomar como ponto de partida e de apoio ao longo do caminho o cultivo, por parte do cidadão, de sua própria alma, personalidade e preferências, sem as quais ninguém pode se achar um verdadeiro "apreciador" das artes, sob a pena de se tornar igual ao oficial nazista e "connaisseur" de O TREM, de Frankenheimer (ótimo filme!). Esta prática se faz livremente, e a Internet é mesmo um grande terreno ainda pouco explorado. O texto de Brunick me entusiasmou muito e me fez acreditar bastante num senso de comunidade entre os blogueiros. Devemos mesmo nos unir e fazer valer nossa voz, aproveitando a oportunidade histórica que temos em mãos. Viva o autodidatismo! Viva o diletantismo! Não precisamos de jornais, não precisamos de faculdades de jornalismo (nem de cinema). Nós sabemos o interesse e compromisso que temos. Trocaremos mais ideias... Valeu por acompanhar o blog! Começarei a visitar o seu agora mesmo...
Bernardo: Muito obrigado! De coração! A coisa toda dá trabalho mesmo, mas encontrar apoio em leitores que também se dispõem a acompanhar e refletir um pouco mais a fundo sobre as coisas faz valer a pena!
Abraços!
Salve, André,
O coinaisseur fascista não curte a arte, mas a sua função de reafirmar a sua superioridade e diferenciação em relação a classes ditas plebéias. Daí participar de um sistema de gosto elitizado que separa a alta cultura das manifestações degeneradas.
Existe um outro tipo de conaisseur, que é o mecenas burguês, pra quem a arte justifica a existência na sua transcendência e, assim, substitui-lhe a religião, o mito, a política. Veja o personagem do príncipe siciliano em "O Casamento" (Bellocchio, 2006).
E ainda outro, que confesso me inspirar um pouco, que é o conaisseur dos romances e contos de Fitzgerald. Aquele diletante irônico que se faz em conversas em bares, cafés, filas de cinema, soirées.
Porque tenho uma percepção bastante amarga das humanidades na academia brasileira. Me parece fábrica de bacharéis burocráticos, a faculdade não ensina a escrever e falha redondamente em colocar o estudante à altura de seu tempo. Digo isso depois de ter completado duas graduações de 5 anos. Nenhum mestrado-mingau me interessou até agora.
Nada como o bom e velho blogue.
Um abraço! adorei a última postagem.
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