sábado, outubro 03, 2009

Deixa Ela Entrar


Palavra de ordem: a experiência da juventude no cinema deve ser registrada a contrapelo (termo retirado de Walter Benjamin). Ou seja, deve-se mostrar o universo adolescente ao contrário do que se espera, ao contrário do que seria o “normal”; sob o risco de, se isso não for feito, contribuir para a destruição, a banalização, a massificação dos indivíduos em sua diversidade e valor criativo, transformador. Vivemos tempos sombrios, em que filmes sobre adolescentes transformaram-se demais em filmes para adolescentes. Quando se incluem no jogo as histórias de vampiros, o cenário fica ainda mais assustador.

De Bram Stoker a Anne Rice, passando por poetas da personalidade de Charles Baudelaire, a figura do vampiro sempre representou a entrega às paixões, aos desejos, aos instintos mais essenciais da nossa humana natureza animal. É claro que de maneira problematizadora, com toda a ambiguidade, os dilemas e as contradições barrocas do indivíduo eternamente dividido entre carne e espírito – e isso vai muito além de uma mera questão “moral”. Agora, numa época dominada por produtos da marca de “Crepúsculo”, só temos a lamentar o empobrecimento da figura e experiência humanas, a vilipendiação de de questões muito sérias e profundas.

Lamentamos e tememos as consequências de tais “grifes” para a diversidade cultural. A barbárie volta a nos espreitar. Quem cresceu lendo e assistindo ao Drácula (o de Bram Stoker e o de Francis Ford Coppola) e à Entrevista com o Vampiro (a de Anne Rice e a de Neil Jordan) será simplesmente muito difícil se conformar com a direção da atual moda dos vampiros. Mas não estamos aqui para falar do que não presta. E sim, para mostrar que ainda há esperança, que ainda existe a exceção, que ainda se fazem filmes sobre jovens e sobre vampiros que vão a contrapelo.

Eis o caso de Deixa Ela Entrar (“Let The Right One In”, Suécia, 2008, dir.: Tomas Alfredson). Enquanto coisas como Twilight são produzidas pela mesma cultura da qual fazem parte os famigerados bullies, “Deixa Ela Entrar” é quase um manifesto revolucionário das vítimas deles. Por isso, é absolutamente ridículo o marketing do filme, que tenta arvorá-lo a seu primo rico dizendo que quem é fã deste também o será daquele. Quem gosta mesmo de “Crepúsculo” não vai gostar (pelo menos, não tanto) de “Deixa Ela Entrar”. São públicos diferentes.

Mesmo correndo o risco de cair na simplificação excessiva que quero tanto criticar aqui, explicarei de maneira bem didática: o primeiro tipo de público (as diversas facetas dos “bullies”) seria formado pelo atleta da escola, pela princesinha líder de torcida, pelo valentão “sarado”, pelos gatões e pelas gatinhas, pelos playboys e patricinhas; no segundo time, teríamos os nerds, os feios (e feias), os esquisitos, os alternativos (góticos, emos, indies ou o que quer que seja), os solitários, os godinhos demais (ou magrinhos demais), os pobretões, etc.

“Deixa Ela Entrar” é a (auto) afirmação das diferenças – dos diferentes. É um filme muito bonito em sua feiúra, em seu grotesco, em seu bizarro. É para os fãs, verdadeiros, do universo de artistas como Tim Burton, Guillermo del Toro e Gus Van Sant. A propósito, em relação a este último, a estética utilizada por Tomas Alfredson parece prestar-lhe tributo na câmera próxima demais dos personagens, como que tentando desvendar-lhes as profundezas. A preferência pelos jovens párias, os “outcasts”, também pode ser reputada ao gosto de Van Sant, diretor de Elefante (2003). De resto, a mise en scène apresenta o rigor e a serenidade dos cineastas mais contemplativos, na linha de Tarkovski, Herzog ou Dreyer.

Falando em Carl Theodor Dreyer, diretor de O Vampiro (1932), também sueco, vê-se que “Deixa Ela Entrar” lida muito bem com a tradição das velhas fitas do terror meditativo nórdico. Também nos lembramos de A Carruagem Fantasma (1921), do dinamarquês Victor Sjöström, de cuja tétrica trilha sonora ouvimos alguns ecos na fita de Alfredson. Não há nada de expressionista neste filme, que não se fale no Nosferatu de Murnau. “Deixa Ela Entrar” está mais puxado num realismo mágico-poético. Está mais para um conto de fadas macabro do que para uma história de terror.

É de uma sensibilidade rara hoje em dia.

6 comentários:

Wally disse...

Todos elogiam mesmo a sensibilidade da obra. E deve ser refrescante assistir à uma obra assim sobre vampiros em contraponto à série brucrática de "Crepúsculo".

Pedro Henrique Gomes disse...

Hm... vou ver hoje!!! Parece ser um ótimo filme!

Abs.

Thiago César disse...

gostaria de deixar aqui uma sugestão de filme, um curta-metragem: La Cravate (1957) de Alexandro Jodorowsky. Se você ainda não viu, vale muito a pena conferir. Quem sabe esse filme não mereça um post aqui no seu blog também... Valeu!

André Renato disse...

Valeu pela sugestão, Thiago! Vou correr atrás e, se tudo der certo, escrevo sobre ele...

karina disse...

SPOILER (ao menos possivelmente)

Sei que o filme e o texto são antigos para os padrões da internet, mas so ontem consegui ver « Deixa Ela Entrar », reli seu texto e fiquei pensando:

E se...
Eli nunca existiu. O filme trata do processo de construção mental de um psicopata. Os abusos na escola, a ausência dos pais, a vida em uma sociedade regrada ao extremo (um dos personagens diz, no bar, que eles têm leis demais), todas as clàssicas explicações para a psicopatia. Eli é o alter ego de Oskar, no melhor estilo “Clube da Luta”, sua justificativa para ser violento, porque é mais facil conviver com o fato de que é preciso matar do que com o fato de que se sente prazer em matar (uma das falas de Eli remete a isto). Ninguém, a não ser Oskar, vê Eli. Todos que a vêem o fazem de relance e dizem se tratar de uma criança que ataca. Eli tem a mesma idade de Oskar! Não seria estranho, além disto, uma criança viver sozinha em um apartamento, sem nem ir à escola, sem que ninguém faça questionamentos a respeito? O apartamento em que Eli vive é, na verdade, um apartamento desocupado, dai o papel que obstrui a janela. Quem resolve o cubo màgico é Oskar (um esteriotipo cinematogràfico, clichê, mesmo, é a inteligência do psicopata). Quem mata os garotos na piscina é Oskar, com sua faca mostrada insistentemente (mas não a toa) pelo filme. Os garotos da piscina não foram decaptados, foram esfaqueados. A decaptação é o exagero da mente perturbada de Oskar, como o são , também, outras cenas do filme, como Eli subindo pelas paredes do hospital ou sangrando diante de Oskar. Além disto, o filme se passa nos anos de 1970, mas isto é mostrado sutilmente (modelos de automoveis, decoração da casa de Oskar, roupas, foto de moda no apartamento abandonado de Eli, poster do The Clash, que teve seu auge nesta década, menção à guerra fria). Por que? Para se concluir que hoje Oskar é um adulto. Um psicopata jà formado, com seus 35 ou 40 anos de idade. O filme e seus exageros de decapitação são as memorias desta mente em sofrimento. Em suas memorias, Oskar não é abusado exclusivamente pelo bulling dos colegas de escola. Ele também sofre abusos sexuais. A cena com o amigo do pai não està là por um acaso. Oskar é abusado sexualmente com a conivência do proprio pai, dai a troca de olhares entre os dois homens. O abuso é condição para que Oskar tenha a atenção do pai. E abuso sexual é outro elemento clàssico da formação da mente psicopata, ao menos para o cinema. Quando Oskar vê Eli nua, ele vê, rapidamente, o que parece ser um membro castrado. Eli é Oskar (a câmera, muitas vezes proxima demais de Oskar, dà a sensação de que ele està sozinho na presença de Eli). Um Oskar castrado sexualmente pelo abuso sofrido com a conivência paterna. Por isto Eli diz mais de uma vez não ser uma garota. Durante os abusos, Oskar é tratado como uma garota e mutilado em sua masculinidade.
Finalmente, quando Oskar parte, ele leva um grande caixa com Eli dentro. E ele so consegue arrastar aquilo porque a caixa està vazia. Assim, o fato de Eli se mudar para uma cidade tão pequena não é um buraco de roteiro. Oskar nasceu là, assim como sua psicopatia. “Deixa Ela Entrar”, deixa a psicopatia entrar, porque é preciso deixar que a perturbação tome conta da mente. Mas Oskar é socializado demais, vive em uma sociedade regrada demais para se admitir um assassino. E preciso jogar esta responsabilidade adiante. E a figura do vampiro como alegoria às paixões, aos desejos, aos instintos parece bastante adequada. Mais sutil e inteligente do que “Clube da Luta”, Tomas Alfredson não explica tudo tim tim por tim tim como o faz David Fincher.

Obs: Ah, vi na internet que em hebraico, Eli significa Jeovà, ou elevação, enquanto Oskar em escandinavo significa força ou lança divina.

Obs 2: minhas sinceras desculpas pelo tamanho do comentàrio

André Renato disse...

Nossa!

Bem, vamos por partes:

1. Estou pouco me lixando para os "padrões" de novidade da Internet, não se preocupe com isso, Karina...

3. Também não se preocupe com o tamanho do comentário, uma das maiores razões de eu ter iniciado este blog foi a possibilidade de ter conversas verdadeiramente cinematográficas com outras pessoas que veem filmes com tanta atenção e paixão como você.

Por fim, vamos ao comentário em si:

2. Sua interpretação é muito, muito boa mesmo. Absolutamente pertinente. Eu, particularmente, adoro a dimensão alegórica nos filmes, mas sequer percebi coisa alguma a respeito deste. Talvez pelo grande efeito de realidade dele (o que pode contribuir muito, paradoxalmente, para o valor da alegoria). Concordo bastante com a referência a "Clube da Luta". Boa sacada. Enfim, a possibilidade que você descobriu é para ser seriamente considerada. Só gostaria de acrescentar que, pelo que eu acredito, uma leitura realista e uma leitura alegórica não se excluem mutuamente, mas devem se acrescentar no escopo das possibilidades significativas e das experiências proporcionadas por um filme. Ainda que Eli seja apenas uma alegoria para a psicopatia de Oskar, isso não significa que a dimensão material dela e a questão vampiresca sejam menos apreciáveis, valorizáveis em si ou que exerçam um impacto menor enquanto "realidade" encenada pelo filme e testemunhada por nós. No fundo, são as mesmas ideias que trabalhei a respeito de "O Labirinto do Fauno": o mágico tem valor como mágico em si, além do seu valor "meramente" alegórico. Um não deve sobre (ou sub) valorizar o outro. Acho que é isso.

Parabéns pela análise, volte sempre e comente (o quanto quiser)!