sábado, dezembro 06, 2008

Queime Depois de Ler


Esta é mais uma deliciosa encenação daquele niilismo cínico, o velho pessimismo “cool” dos irmãos Coen – para quem aprecia, claro. Todas as marcas registradas dos diretores de Onde Os Fracos Não Têm Vez estão aqui: a parvoíce do norte-americano médio, a tragicomédia de erros, as pessoas que se acham maiores do que a vida, o “mcguffin”, a sutilíssima ironia, o humor-negro. Há definitivamente algo de Hitchcock – ou algo de clássico, que seja – nos Coen: a direção de atores em seus filmes possui aquela exatidão que só encontramos no cinema antigo: são incríveis os jogos de olhares, expressões faciais, gestos e posturas dotados da mais alta (e sempre sutil, jamais banal) expressividade.

Eis a natureza verdadeiramente cinematográfica de um filme como Queime Depois de Ler (EUA, 2008): o drama é carregado mais nos significantes visuais (a própria corporalidade do ator, especialmente em pequenos gestos ou expressões que dificilmente seriam captados por um espectador teatral) do que nos tradicionais diálogos verbais. Nos Coen, há um diálogo de corpos – nem sempre em acordo, naturalmente. Um diálogo violento, e sempre com imenso impacto visual. O elenco ajuda bastante para tanto: tem-se aqui um George Clooney que causará grande estranhamento a quem já está acostumado com o velho George Clooney.

O espectador também há de estranhar – e se divertir bastante – com um Brad Pitt caricatamente homossexual. Quanto a John Malkovitch, estão lá o grande espetáculo de intensidade, de loucura e de ridículo que casam muito bem com o próprio rosto do ator. Ah, e tem também a velha Frances McDormand, merecedora de mais um Oscar. O humor-negro e a ironia em Queime Depois de Ler são daquelas meias-tintas quase imperceptíveis – ou, para usar mais um termo hitchcockiano – daquela espécie de understatement. Não há praticamente nada, na forma do filme, que sugira o burlesco: o ritmo, a trilha sonora, o rigor da fotografia, tudo corresponde a um filme “sério”.

Mesmo assim, trata-se de uma comédia (!). Pode ser difícil de acreditar, mas o humor está no mais puro conteúdo, no enredo, nos acontecimentos mostrados (jamais na forma de mostrá-los, a qual procurará ser completamente o oposto, enriquecendo – e complicando mais ainda – o efeito da ironia). É claro que só achará tudo aquilo engraçado quem tiver a mente “doentia” o bastante para compartilhar da terrível visão de mundo “pós-moderna” dos diretores. Mas aí é que está o truque: tamanha cumplicidade autor-receptor só é exigida pelos grandes mestres – Machado de Assis, Clarice Lispector, Alfred Hitchcock, Charles Chaplin.

Quanto ao “mcguffin”, para os Coen ele tem ainda menos importância do que aquela pouca importância (pretexto) que lhe é proverbial. O CD com dados “confidenciais” da CIA é pouco mais que nada... No entanto, as repercussões e conseqüências factuais – e sobretudo humanas – que ele provocará são de outra e muito mais elevada ordem. É aí que começa a se mostrar a filosofia social dos cineastas: em nossas vidinhas pequeno-burguesas, permeadas por fantasias hollywoodianas, pretendemos sempre que haja grandes narrativas, acontecimentos bombásticos do destino, daqueles que são vendidos (ou prometidos) constantemenste pelos “best-sellers” de auto-ajuda.

Pretendemos que nossas vidas – e o mundo – sejam dotados da mais perfeita coerência e significação (sem esquecer o final feliz) dos filmes de aventuras, de espionagem, filmes policiais, comédias românticas, etc. Mas o único quinhão que nos é dado é o desengano, a desilusão, a trapaça, o equívoco, a frustração, a tola e falsa expectativa. E, acima de tudo: a dúvida, eterna dúvida, a incerteza que fere mais do que qualquer arma; e também o acaso, o mais ridículo acaso, eis a natureza das coisas, a natureza do universo. Não há nada que o bicho-homem possa fazer em relação a isso, mas a grande causa do nosso sofrimento é simplesmente não enxergarmos e não aceitarmos tais “verdades”.

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