terça-feira, novembro 06, 2007

Zodíaco


Como é difícil entregarmo-nos a uma experiência nova, sem preconceitos e sem pré-conceitos, e assimilarmos livremente o que essa experiência nova tem a nos oferecer por si só! O mais comum é, ao nos deparar com algo novo, procurarmos logo enquadrar a novidade dentro de algum padrão já conhecido e aceito. Desse modo, é difícil lermos, de fato, um livro, ou assistirmos verdadeiramente um filme. O que a gente “lê” e o que a gente “assiste” são apenas nossas experiências passadas e nossas idéias já bem estabelecidas. O ideal seria abrir mão e esquecer de todo o nosso repertório pessoal na hora de experimentar uma obra de arte nova. Digo: na hora de experimentar, e não na hora de julgar – pois nesta o repertório tem o seu valor. Naturalmente, o fato de as produções da “indústria cultural” muitas vezes repetirem as mesmas fórmulas de construção e de conteúdo não ajuda nem um pouco para uma boa fenomenologia da recepção.

Assim, quando me sentei para ver Zodíaco (“Zodiac”, EUA, 2007, dir.: David Fincher), não pude deixar de esperar que o filme correspondesse aos (interessantes) padrões das fitas de serial killer, principalmente Seven, Os Sete Crimes Capitais (“Seven”, EUA, 1994), obra-prima do diretor David Fincher. No entanto, que decepção! Zodíaco passa longe de Seven. Mas essa decepção – sem ironia alguma – é o melhor do filme. O diferencial de Zodíaco é que a sua história é muito longa (em torno de 22 anos), confusa, aberta, com várias pontas soltas, sem qualquer definição, sem qualquer significado definitivo, sem desfecho justo ou injusto, sem nem mesmo a famosa justiça poética, sem grandes heroísmos, ou grandes vilanias (a vilania aqui é muito mesquinha e incoerente)... Enfim, a história de Zodíaco é como a própria vida. A vida que é uma obra aberta demais, complexa demais – mas sem qualquer organização perfeitamente lógica ou racional (isso é o pior). A vida não tem aquela grandeza épica, as coisas na vida não se encaixam perfeitamente como numa tragédia clássica, nem tudo na vida se resolve (pelo melhor ou pelo pior). Nesse sentido, a vida não imita a arte. Nem a arte imita a vida. Exceto Zodíaco.

Quando olhamos para uma experiência da vida e dizemos: “Isto bem que daria um filme!”, certamente que essa experiência foge ao comum e cotidiano, isto é, foge à própria vida, vai além dela; por isso, nós nos interessamos, guardamos na memória tal acontecimento e sentimos a vontade de imortalizá-lo numa obra de arte. Assim, em relação a Seven, Os Sete Crimes Capitais, se fosse uma história real ainda não levada ao Cinema, com certeza diríamos que daria um ótimo filme (naturalmente um filme narrativo, com os fatos dramatizados). Porém, não podemos dizer o mesmo de Zodíaco. Filmes de “serial killer” normalmente descobrem verdades, chegam a certezas altamente significativas (isso sem falar na “justiça”) que nós desesperadamente desejamos para as nossas próprias vidas. Mas, como eu disse, a vida nem sempre nos concede esses prêmios. Por isso, muitas vezes o melhor é esquecer, deixar para lá, deixar envelhecer, que o tempo tudo arrasta e apaga e supera, “live and let live” – ou “live and let die” (que é o caso aqui)... Isso é o que recomenda o detetive David Toschi (interpretado por Mark Ruffalo) ao jovem e obsessivo investigador amador Robert Graysmith (Jake Gyllenhaal).

Dessa maneira, Zodíaco está mais para um documentário do que para um filme dramático. A decepção de que eu falei ocorre quando se vê o filme como um suspense policial de ficção, ou, pelo menos, como um enredo baseado em fatos reais onde estes foram romanceados para ficarem mais interessantes. Nada em Zodíaco é feito para ficar mais “interessante”, de acordo com a lógica tipicamente hollywoodiana. Desde Seven, o cinema de David Fincher é um cinema de choque; mas esse choque sempre se pautou pelo inusitado, pelo bizarro, pelo grotesco, pelo violento ou até mesmo pelo fantástico (caso de Alien 3 e de Clube da Luta). Em Zodíaco, o que choca é a ausência desse “choque”; o que choca aqui é a própria vida, absolutamente sem graça, incoerente e frustrante, que nos é jogada na cara. A ausência de respostas, de soluções, de justiças, de verdades, de certezas, de sentidos, de razões... Isso é mais aterrador do que qualquer história romanesca, rocambolesca, mirabolante e fabulosa de “serial killers” sádicos e megalomaníacos. Eu sequer diria que Zodíaco tem um anti-clímax, pois isso já seria um clímax, equivalente a ele, assim como a anti-matéria é equivalente à matéria. Zodíaco simplesmente não tem nada. É um vácuo completo. Quem quiser, que chame isso de niilismo.

Um comentário:

Hugo disse...

Filmes bons são aqueles que ficam marcados em nossa memória e Zodíaco pertence a esse grupo.
Como vc disse, é um filme com cara de documentário, sem heroísmos, mas que nos prende a atenção por todo o tempo.
Muitas vezes as pessoas acham que um diretor deve sempre fazer novos filmes no mesmo estilo de seu sucesso anterior, eu penso o contrário, a graça está na surpresa, naquilo que não esperamos.

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