sábado, abril 24, 2010

Cão Branco


Aqueles que leram as três últimas postagens deste BLOG devem estar achando que eu transformei o SOMBRAS ELÉTRICAS num bestiário. Juro que não foi essa a intenção. Não estou me dedicando particularmente a um “cinema animal”. Coincidências são isso mesmo: apenas coincidências. Agora, vamos ao filme. Eu tinha uns nove ou dez anos na primeira vez em que vi esta fita (no velho videocassete). Adorava filmes de terror “trash”: era particularmente fã de Dia dos Mortos (“Day of The Dead”, EUA, 1986, dir.: George A. Romero), Nasce Um Monstro (“It’s Alive”, EUA, 1974, dir.: Larry Cohen) e, naturalmente, Cão Branco (“White Dog”, EUA, 1982, dir.: Samuel Fuller).

Lembro-me de que a história do pastor alemão albino que era treinado para atacar e matar somente a “black people” impressionou-me bastante (a cena da igreja é especialmente aterradora). Eu já tinha lá os meus medos e traumas de cachorros bravos – nada muito grave, mas que criança não tem? Contudo, na época – logicamente – eu não sabia que este era a film by SAMUEL FULLER (!). Para mim, era nada mais do que um filme B, um daqueles telefilmes sem qualquer referência que as TVs gostam de passar no “Supercine” ou no “Corujão”. E não foi até bem pouco tempo atrás que eu descobri a autoria desta pepita, quando pesquisava para escrever sobre o Capacete de Aço (do mesmo diretor).

Vendo White Dog mais uma vez, vinte e cinco anos depois, depreendo claramente todos os detalhes e profundeza do tema desta alegoria macabra. Samuel Fuller, utilizando-se das formas – e fórmulas – mais banais do melodrama e dos “horror movies”, constrói um contundente manifesto anti-racismo. O filme tem a força e a paixão de uma militância. Cabe lembrar a famosa fala do cineasta, em sua pequena participação no Demônio das Onze Horas (“Pierrot Le Fou”, França, 1965), de Jean-Luc Godard. Trata-se de um breve diálogo entre ele (que se apresenta com o seu próprio nome, como um diretor norte-americano filmando em Paris) e o personagem de Jean-Paul Belmondo, protagonista.

BELMONDO: “Eu sempre quis saber o que é o cinema.” FULLER: “Um filme é como um campo de batalha: como o amor, o ódio, a ação, a violência, a morte. Em uma palavra: as emoções.” White Dog é baseado em fatos reais. Uma jovem atriz de cinema, Julie Sawyer (Kristy McNichol), atropela acidentalmente um pastor alemão branco e o leva para casa. O cão não possui qualquer identificação; mesmo assim, a moça tenta maneiras de achar o seu verdadeiro dono, antes de acabar entregando-o à “carrocinha”. No entanto, quando o cachorro a salva bravamente de um estuprador que invade a sua casa, ela desenvolve grande afeto pelo animal e decide ficar com ele.

Pouco tempo depois, após fugir e voltar coberto de sangue, e após atacar uma atriz amiga sua (negra, por sinal), Julie deduz que o seu bicho de estimação é um “cão de ataque” (treinado para matar). Ela, então, procura um famoso domador e treinador de animais (que trabalha para Hollywood), Mr. Carruthers (Burl Ives), para que ele “descondicione” o cachorro. O homem logo descobrirá que se trata de um “cão branco”: condicionado desde filhote – e da maneira mais traumática, através de constantes e sistemáticos maus-tratos – a perseguir, atacar e assassinar afro-descendentes. A tarefa de “curar” o animal – inocente, afinal de contas – será assumida com grande paixão e paciência pelo sócio de Carruthers, o Sr. Keys (Paul Winfield), ele mesmo afro-americano.

O cineasta originalmente contratado para dirigir essa história era ninguém menos que Roman Polanski. Entretanto (!), este se envolve naquele seu famoso caso de pedofilia e acaba deixando os EUA. Com baixo orçamento e pouco tempo para filmagens, o nome de Samuel Fuller surge como o mais apto. Logicamente, o subversivo diretor de Paixões Que Alucinam (“Shock Corridor”, 1963) não fará pouco caso da temática de racismo presente no roteiro, transformando Cão Branco numa espécie de Tubarão (o do Spielberg) “com patas” (“jaws with paws”), como queria o estúdio da Paramont. Com isso, o filme deixa de ser lançado comercialmente em território norte-americano, temendo uma “publicidade negativa”.

White Dog é solto na França e no Reino Unido no mesmo ano de 1982. Nos EUA, será transmitido na TV a cabo e lançado oficialmente apenas em 2008, com a edição em DVD. Samuel Fuller, após o aborto de seu filme, muda-se para a França e nunca mais dirige uma película nos EUA. É claro que White Dog não é racista, mas a maneira violenta e pessimista com que Fuller cutuca as chagas abertas do seu país não está lá muito de acordo com o que queriam os estúdios de Hollywood e nem algumas associações de defesa dos direitos de afro-descendentes. Fuller arregaça as contradições dos Estados Unidos sem a menor preocupação com as sensibilidades que poderão se sentir ofendidas no meio do caminho.

Sam Fuller faz um cinema político sem ligar a mínima para as “frescuras” do politicamente correto. Acusá-lo de racista é a pior forma de cegueira ideológica. Fuller é integracionista – como Martin Luther King ou Nelson Mandela –, modificando a história que tem em mãos: no romance em que se baseia o roteiro do filme, o treinador negro que tenta “curar” o cão faz o seu trabalho condicionando-o propositalmente a atacar pessoas brancas. Já na visão do cineasta, o comportamento e o discurso do treinador (Sr. Keys) possuem a força e a beleza da convicção de quem sabe que luta contra uma idéia. E ele sabe também que se trata de uma luta inglória, quixotesca aos olhos do mundo, com pouca ou nenhuma chance de sucesso.

Mesmo assim, o Sr. Keys não arreda do “campo de batalha”: a metafórica arena / jaula usada para domar animais selvagens, que representa o próprio espaço social e também o espaço simbólico do cinema (lembremos a fala de Fuller no filme de Godard). O cão da Srta. Sawyer é o terceiro “cão branco” que o Sr. Keys toma em mãos para tentar provar e legitimar uma idéia (a igualdade), desmontando e desmoralizando outra (o ódio racial). Como ele mesmo diz com grande paixão e intensidade, é muito mais fácil atirar em animais assim, mas isso não extirparia a raiz do problema. E Samuel Fuller usa com grande intensidade os recursos do cinema na construção de sua parábola revolucionária.

São de grande significação as cenas que mostram, sempre dentro do mesmo plano, a “batalha” entre Keys e o cachorro, verdadeira coreografia do ódio. Sentimos o calor dos acontecimentos: a agressividade dos movimentos corporais corresponde aos movimentos contundentes das paixões na retórica do debate social racismo / anti-racismo. É também de grande impacto icônico a imagem do cão branco coberto do vermelho vivo do sangue de suas vítimas. O choque também se faz presente no contraste entre o comportamento e o olhar carinhosos que o cão dedica à sua dona e aqueles que ele lança aos alvos de seus ataques. A idéia é: a barbárie se infiltra disfarçadamente no seio de qualquer lar, em quaisquer relações, conquistando os cidadãos mais “mansos”.

Mas o momento alto deste filme é a sequência que mostra a segunda fuga do cão branco. Vemos na tela uma esquina: do lado direito (em uma rua), está o cachorro fuçando umas latas de lixo; do lado esquerdo (na outra rua), vê-se uma criança pequena (negra) enchendo um balão. Então, o cão continua andando, em direção à esquina, e no momento exato em que ele a cruza, a mãe do menino sai de uma loja, pega-o no colo e volta para dentro, tudo muito naturalmente, sem dar pela presença do cão (nem este os percebe). Mais à frente, o pastor alemão se deparará com um homem (da etnia-alvo) e começará imediatamente a perseguição. O homem corre para dentro de uma igreja (católica), mas em vão.

O cachorro o estraçalha na frente do altar – enquanto a câmera mostra em travelling as imagens santas e ouvimos os gritos do homem misturados aos rosnados do bicho. Após, num jogo de campo / contra-campo, vemos um primeiro plano do cão (a mandíbula ofegante repleta de sangue) a olhar para algo por cima do altar, que é (mudança de plano) um vitral com a imagem de São Francisco de Assis cercado de animais (!); volta-se ao cachorro, e vemo-lo virar com desprezo a cabeça e continuar o seu caminho. Com esta grande ironia, não é de todo incompreensível que o filme seja censurado. E já que falamos em ironia, é interessante analisar o como Samuel Fuller direciona as suas provocações ao próprio cinema.

Na cena em que o cachorro ataca a parceira de Julie, durante uma filmagem em que ambas contracenam, tem-se primeiramente um plano-sequência que acompanha – pela frente – o diretor do filme chegando ao set. Ele caminha alguns metros em linha reta, e vemo-lo ofuscado pela luz de um projetor que está por trás. Quando chega ao centro da ação (ainda no mesmo plano, com leves movimentos de câmera buscando o reenquadramento), o cameraman vigorosamente o repreende, dizendo que não dá para trabalhar com o telão em que está sendo projetada a paisagem que servirá de fundo à ação representada (em Veneza), pois está “fora de sincronia” e fica “piscando” o tempo todo.

À impaciência e nervosismo do operador, o sereno cineasta responde, não sem alguma dose de gracejo, que aquilo é na verdade algo “artístico”, como se diz na França, e “formidable”, como diz Truffaut. Na cova do leão do cinema industrial norte-americano (mesmo se tratando de uma fita de baixo orçamento), Sam Fuller brinca com as oposições de linguagem entre a decupagem tradicional dos EUA – que busca sempre a verossimilhança, o efeito de realidade –, e o estilo cinematográfico mais “europeu” (particularmente em Godard) – no qual o cinema se afirma como discurso, construído artificialmente, revelando ao espectador as suas entranhas e procurando criticar, através da não-obediência, a gramática dominante do cinema industrial.

Woody Allen fará a mesma brincadeira em Dirigindo no Escuro (“Hollywood Ending”, EUA, 2002), colocando-a de modo central no enredo do filme. Agora, a provocação metalingüística mais deliciosa em Cão Branco está na inflamada reclamação do Sr. Carruthers (o qual, como vimos, é um prestigioso treinador de animais para filmes), que lamenta inconsolável o fato de um “robô” ter ocupado o lugar de um animal no cinema. Lugar que se trata, mais exatamente, de uma função: o elemento com o qual as crianças vão se identificar, que disparará toda uma série de merchandising e que fará a arte e os lucros dos treinadores e domadores.

O robô do qual o velho fala é nada menos do que o fofo R2-D2, da série Star Wars (1977-2005, dir.: George Lucas). O Sr. Carruthers mantém, em seu escritório, um pôster de R2-D2, que ele usa como alvo para dardos, descarregando toda a sua raiva impotente. É extremamente tentador admitir que tal discurso venha do romantismo incondicional do próprio Fuller. O mais curioso é tomar para pensar um trecho da fala do velho treinador, dizendo à jovem Julie que dali a vinte e cinco anos já não se veria mais animal nenhum nos filmes, coroando a decadência do cinema (de um estilo, de uma tradição de cinema, entenda-se bem). Vejamos: 1982 + 25 = 2007.

Do nascimento dos “blockbusters” (justamente com o Lucas de Guerra nas Estrelas) até o caso muito especial de Avatar (2010, dir.: James Cameron), parece relativamente confirmada a profecia do Sr. Carruthres, não? É com nostalgia que nos lembramos de filmes como As Aventuras de Chatran (“Koneko Monogatari”, Japão, 1986, dir.: Masanori Hata) e A Incrível Jornada (“Homeward Bound: The Incredible Journey”, EUA, 1993, dir.: Duwayne Dunham), que parecem ter-se enfiado debaixo da mesa com o rabo por entre as pernas, hoje em dia. Enfim, White Dog existia no Brasil em VHS, lá pelos idos perdidos dos anos 80. Em DVD, não há qualquer sinal. Mas, com o lançamento de Capacete de Aço e o relançamento de Paixões Que Alucinam, quem sabe?

quinta-feira, abril 22, 2010

O Cavalo Branco


O Cavalo Branco (“Crin Blanc: le cheval sauvage”, França, 1953) é um belo curta-metragem de Albert Lamorisse, que realizaria em seguida O Balão Vermelho (“Le Ballon Rouge”, 1956) – obra-prima do cinema universal (e que já discutimos aqui). Ambos os filmes constituem paradigma para um cinema infantil inteligente, sensível e esteticamente valioso. Ambos crescem segundo as direções da fábula e do mito. Porém, Crin Blanc procura se enraizar no documentário antes de mais nada, assentando dessa maneira a base – necessária em qualquer mitologia – da qual partirão os voos imaginativos que caracterizarão a sua grande poesia.

A verdade material em Crin Blanc encontra-se nas singelas descrições dos trabalhos de “cowboys” na região de Camargue, sul da França. Essa localidade é historicamente habitada por uma forte raça de cavalos selvagens, perfeitamente adaptados aos mangues que ocupam os arredores do delta do Rio Rhône. Dentre esses animais, encontra-se o “Crina Branca” do título, líder de manada e que resiste sistematicamente às – agressivas – tentativas dos cavaleiros em domá-lo. É então que entra em cena o menino chamado apenas de Folco, jovem pescador da região, que mora numa rústica cabana com um velho (seu avô?) e uma menina (sua irmã?) ainda mais jovem do que ele.

O cotidiano dessa pequena família também é mostrado com um realismo de poesia e sensibilidade. No filme como um todo, predominam planos gerais que desenham as figuras humanas (e animais) em composição equilibrada com a paisagem natural – a qual lhes provém moradia e sustento. Exemplo disso é o belo plano que mostra (primeiramente em sonho, depois na “realidade”) o menino conduzindo seu cavalo branco pela planície de lama e água que reflete as figuras alvas dos dois. Folco será o único capaz de domar Crina Branca, e disso nascerá uma pura amizade – a identificação entre ambos é reforçada metaforicamente pelo branco dos pêlos do animal e o branco das roupas do garoto.

Eis a verdade espiritual do filme. No entanto, como diz Guimarães Rosa e conforme Lamorisse mostrará também em O Balão Vermelho, “viver é muito perigoso”. E as ameaças ao bucólico idílio Folco / Crina Branca não tardarão a surgir na forma dos “cowboys” que tentarão se apropriar do cavalo branco, disparando os eventos que desembocarão no paradoxalmente trágico e sublime final, não de todo desprovido de umas conotações surreais: cavalo e cavaleiro “galopando” por sobre das ondas do mar rumo ao infinito. O que é particularmente interessante, na estética de Lamorisse, é – conforme referido no parágrafo anterior – o trabalho de expressão dentro do plano.

O valor de “real” da decupagem do diretor – segundo André Bazin em “Montagem Proibida” (in O Cinema: ensaios. 1ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1991) é que ele procura construir toda a ação no interior de cada quadro, mostrando juntos os personagens envolvidos e sem apelar para o recurso facilitador do corte e da montagem – a qual, com certeza, ajudaria nos “truques” do filme. O importante, para o espectador, é testemunhar na tela a integridade do acontecimento – mesmo sabendo que este se trata de um “truque”, de uma ficção ensaiada. Diz o eminente crítico: “O que é preciso, para a plenitude estética do empreendimento, é que possamos acreditar na realidade dos acontecimentos, sabendo que se trata de um truque” (p. 60).

Isso fica patente na cena, citada por Bazin, da caçada ao coelho, na qual nunca deixamos de ver no mesmo plano as figuras de Crina Branca, Folco e o coelho – cujo remate se dá numa bela profundidade de campo. É pena que Lamorisse não tenha logrado estender o mesmo procedimento à cena da perseguição, em alta velocidade, do cavalo branco e do menino pelos pastores (vemos alternadamente estes correndo atrás e aqueles em fuga desbaratada). A “lei estética” de Bazin é: “Quando o essencial de um acontecimento depende de uma presença simultânea de dois ou mais fatores da ação, a montagem fica proibida” (p. 62). Albert Lamorisse, assim como Jean Renoir, Orson Welles, e o neo-realismo italiano, é um grande mestre nessa estética.

quinta-feira, abril 15, 2010

O Sangue das Bestas


A primeira imagem que aparece na tela é a da estátua brônzea de um imponente touro no alto de um pedestal. Tal monumento deve provavelmente adornar uma praça qualquer numa cidade qualquer. E qualquer que seja a sua função citadina, Georges Franju esvazia aquele belo touro de qualquer alegoria moderna e desloca a sua figura contundente para servir de referência irônica / melancólica a tempos mais ingênuos e remotos, nos quais prestávamos tributo às divindades teriomórficas que nos concediam as dádivas da caça. Diversas mitologias primitivas baseiam-se na comunhão equilibrada entre o homem e a natureza, a qual garantia a (boa) sobrevivência do todo. O deus-animal devia ser reverenciado com o devido temor pelos caçadores de almas compungidas. A caça e a sua preparação eram exercidas como rituais. Dessa atividade nasceu a arte: as pinturas rupestres de bisões que eram mais do que meras representações, eram a magia em ação, a indissociabilidade entre código e referente.

O diretor Georges Franju munir-se-á justamente do poder de índice da imagem cinematográfica para lamentar a desmitologização das relações humanas com a carne da qual nossa espécie se alimenta. Ao touro de bronze sobrepor-se-á o título do filme: O Sangue das Bestas (“Le Sang des Bêtes”, França, 1948). Na era da indústria, esse sangue já não é o vinho sacrificial do cordeiro imolado. Esse sangue é apenas resíduo industrial, a escorrer lavado para os ralos do piso imundo do matadouro. Os cordeiros – pelo menos uns dez deles – são enfileirados de barriga para cima ao longo de uma grande bancada e, um a um, rapidamente degolados. Ficam as patas agitando-se convulsivamente no ar, em reflexo post-mortem. Este curta-metragem documental de Franju (apenas 20 minutos) é todo estruturado em imagens inconsolavelmente agressivas, mostrando fatos explícitos e banais do funcionamento de uma indústria cujas entranhas poucos de nós – consumidores de carne – conhecemos a fundo. Abstemo-nos de conhecer.

Mas o que faz deste um grande filme não é o choque ultrarrealista da “denúncia”. A violência no cinema, entregue à plástica da sua própria brutalidade, não passa de mau gosto: veja-se como exemplo o também documentário Terráqueos (“Earthlings”, EUA, 2007, dir.: Shaun Monson), que não passa de um muito superficial proselitismo vegano. Georges Franju, por sua vez, é artista crítico e sensível o suficiente para sublimar esteticamente tal violência – o que não quer dizer necessariamente que ele deva eclipsá-la. O cineasta mostra tudo o que deve mostrar, mas procurando extrair de tudo uma fotogenia de aspecto onírico; eis a sua poesia. Por exemplo, a referida cena dos cordeiros mostra em profundidade de campo as inúmeras patas sacudindo descontroladamente, formando um balé do absurdo; as linhas desenhadas por sua movimentação vão sugerindo um sentido de abstração propriamente surreal. O brilho da fotografia em preto-e-branco, a névoa e o vapor, os gestos automáticos dos trabalhadores do matadouro em sua sangrenta lida (são profissionais), tudo isso vai construindo a poética de sereno pesadelo peculiar a este filme.

Noel Burch (“Práxis do Cinema”. 1ª ed. São Paulo: Perspectiva, 1992.) afirma que o cinema-verdade de Franju é o das “meditações poéticas” (p.191). Estas aproximam-se mais do ensaio do que da tese – tal liberdade das formas, juntamente de sua inerente humildade, faz também com que O Sangue das Bestas seja mais digno do que “Terráqueos”. O contraponto (irônico ou não) é igualmente característica do estilo meditativo e poético de Geoorges Franju. As estruturas de agressão do filme que estamos discutindo são balanceadas por imagens que evocam todo o contrário. Por exemplo, no começo somos apresentados a imagens singelas das periferias de Paris e sua vida quase bucólica: crianças brincando, moças bonitas ao sol, um lustre pendurado num galho de árvore (já revelando o gosto pela condensação surreal do diretor). Em seguida, vemos um belo e forte cavalo branco sendo conduzido calmamente pelas rédeas para dentro de um galpão. Quando menos nos damos conta, vemo-lo de um só golpe sendo abatido e imediatamente começando o processo de dissecação (na França se come carne de cavalo).

O propósito objetivo dessa cena é situar o matadouro dentro de um espaço urbano específico. A idéia é: podemos ser vizinhos de uma dessas casas de barbárie e sequer nos darmos conta. Tal estrutura se repetirá ao serem mostrados outros matadouros franceses, nos quais veremos gado, ovelhas e até mesmo novilhos – em relação a esses últimos, é grotescamente belo o plano que mostra os troncos sem couro de uns quatro ou cinco animais, dispostos por sobre mesas numa composição em perspectiva. Outras imagens, de estripação, evocam pela crueza as agressões barrocas de um Rembrandt (“Boi Abatido” c.1643 – óleo sobre madeira). Faltam, em Franju, as cores. Mas o monocromatismo do filme garante justamente a dose necessária de estetização / abstração que balanceará o choque das imagens por elas próprias e fará com que a fita como um todo seja melhor apreciada e compreendida. Contribui muito também para o balanço da obra o tom objetivo e descritivo da narração em off.

As estruturas podem ser agressivas, mas o discurso do filme (em imagem, som ou verbo) não ataca a inteligência ou a sensibilidade do espectador – o que é mais do que se pode dizer de outros documentários, como o já citado mais acima. Enfim, o que constitui o maior dos contrapontos e a maior das ironias em O Sangue das Bestas é a cena em que os operários do matadouro cantam a famosa e bucólica canção “La Mer” (de Charles Trenet), enquanto exercem seu cruel ofício. A música tem o peso de uma afronta, quase de uma blasfêmia. Toda a cena, em seu espírito, lembra o que será o famoso “número” executado pelo delinquente Alex e seus comparsas ao som de “Singin’ in The Rain”, em Laranja Mecânica (EUA, 1971, dir.: Stanley Kubrick). Tamanha irreverência (no sentido mais literal da palavra) é mesmo própria de um mundo e de um tempo pós-industrial, pós-moderno, desmitologizado, desencantado, no qual os seres todos foram reificados (homens e animais igualmente), seja pelo capital, seja por ideologias quaisquer. As bestas somos todos nós.

sábado, abril 10, 2010

Hiroshima Meu Amor


Primeira sequência do filme (após os créditos iniciais e a enigmática figura que lhes serve de fundo): braços entrelaçados num amálgama lascivo, escorregando por sobre ombros e costas; formas curvilíneas dos corpos em comunhão, em síntese, mostrados em primeiro plano na fotografia em preto-e-branco belíssima de Sacha Vierny (parceiro habitual de Resnais). As imagens desse abraço vão se sucedendo em ritmo cadenciado, sob ângulos diferentes. O efeito que elas criam no espectador é o de um surrealismo onírico, carregado de abstração poética. Ângulos, linhas, curvas e formas geométricas: a vanguarda de Alain Resnais opera suas sugestões ao longo de todo o filme, sistematicamente. A rigidez da composição plástica dos planos de Hiroshima Meu Amor (1959) lembra a estilística dos melhores fotógrafos clássicos da França – particularmente a turma da famosa agência Magnum: Henri Cartier-Bresson, Robert Doisneau... O balé das formas.

Voltando ao abraço: não só no começo, mas muitos outros enquadramentos deste filme, em diferentes cenas, parecem querer promover e emoldurar o encontro macio dos corpos dos amantes. Rosto contra rosto, abraços, beijos, mesmo o encontro dos olhares procura sugerir que Hiroshima Meu Amor estrutura-se e desenvolve-se em torno da troca de carícias – a própria câmera parece dotada de grande carinho pelo casal. Lirismo? Alain Resnais atingiu aqui o verdadeiro estado de poesia, enquanto expressão, sugestão, enquanto função poética da linguagem. Cinema de poesia e não de prosa, pois o elemento narrativo é o de menos aqui (e será menos ainda em Ano Passado em Marienbad – 1961 –, o filme seguinte do diretor). A maneira como os dois personagens caminham pelos espaços, acompanhando um ao outro, ou perseguindo um ao outro, encontrando-se e despedindo-se, parados defronte, detrás ou ao lado um do outro, também segue uma geometria de posicionamento bastante expressiva, quase teatral. O balé dos corpos.

O “experimentalismo” da decupagem de Alain Resnais está nos antípodas das realizações do cinema clássico de Hollywood. Resnais, sozinho, vai além de onde jamais sonharam Orson Welles, os neo-realistas italianos e a nouvelle-vague francesa. Pois nada do que o cineasta coloca na tela está em função (exclusiva) de uma narrativa, de um esquema de ação-reação, causa-consequência, começo-meio-fim, etc. A lógica aqui não é a racional, mas sim a poética: as livres-associações produzidas pelas sensações, pelas lembranças, pelo inconsciente. O casal de amantes em Hiroshima Meu Amor perambula pela cidade e pela vida completamente entregue a essas forças primevas do ser. Cada plano deste filme é dotado de múltiplos significados, uma vez que cada imagem singular (desde a primeira, que já citamos) parece construir uma mistura dialética do tipo Yin e Yang. Um exemplo: a mulher (nunca é revelado o seu nome) olha para o seu amante (também inominado) que dorme de bruços: ela fixa a atenção na palma de sua mão, virada para cima.

Corte seco e vemo-la abraçada a seu antigo amante, recém-assassinado; a mão dele encontra-se na mesma posição. Passado e presente associados; a imagem atual (a da visão) e a imagem virtual (a da lembrança). O balé dos tempos. Hiroshima Meu Amor é o breve idílio de uma atriz francesa (interpretada por Emmanuelle Riva) e um arquiteto japonês (vivido por Eiji Okada), que toma lugar na famosa Hiroshima do final dos anos 50. Ambos são casados – com outras pessoas. O filme todo acompanha as lembranças dela (algumas traumáticas); pouco sabemos sobre o seu parceiro – que posa mais como interlocutor. Mas este homem é um interlocutor crítico: o filme começa com um diálogo entre os dois, no qual ele questiona a validade do conhecimento e das lembranças que ela possui da Hiroshima assolada pela bomba atômica – uma vez que tal conhecimento advém mais de museus e memoriais do que da experiência direta dos acontecimentos.

Ela está de partida, mas ele quer que ela fique, que ela passe mais alguns momentos com ele. Nesse processo, ela vai rememorando a história do seu primeiro amor, com um oficial alemão, na França ocupada (a cidadezinha de Nevers). Com a chegada dos aliados, ele é assassinado e ela sofre a punição típica das colaboracionistas francesas na II Guerra: tem os seus cabelos raspados e é trancada num porão. Assim, constrói-se um interessante paralelo testemunhal entre o pós-guerra na França e no Japão (sabemos que o amante japonês perdeu parentes em Hiroshima), ao mesmo tempo que se desenvolve a história de amor – entre pessoas pouco prováveis. O balé da(s) história(s). O elemento histórico neste filme não é apenas um pano de fundo: é estético o jogo de contrastes entre o trauma da experiência coletiva passada (a história) e o gozo da experiência individual presente (o amor). Essa oposição está ainda mais marcada na figura da mulher.

As identidades particulares de ambos se localizam e se perdem em algum ponto da passagem do individual ao coletivo, ou do coletivo ao individual. Não é à toa que, no final, ele a nomeia de Nevers, e ela o chama de Hiroshima. É mais um elemento dialético no filme. Neste particular, é interessante destacar: Hiroshima Meu Amor talvez seja, ocasionalmente, a maior demonstração dos princípios contidos no símbolo taoísta do “Yin” (o feminino, escuro, passivo, frio) e do “Yang” (o masculino, luminoso, ativo, quente). O roteiro é escrito por Marguerite Duras – um dos nomes proeminentes do noveau roman francês (o “novo romance”, que, nos anos 50 e 60, testará as estruturas romanescas assim como a nouvelle vague o fará com o cinema). E no aspecto literário, não podemos jamais nos esquecer de chamar a atenção para os diálogos e discursos dos dois amantes. As falas se encadeiam como versos de um poema, no ritmo de um poema. Os diálogos são visivelmente pouco realistas, pouco espontâneos.

Vemos claramente que são textos que estão sendo lidos. Mas isso não traz qualquer enrijecimento para as cenas, tendo em vista a proposta – repetimos – poética do filme, e não narrativa. O balé das palavras. Muito interessante também é a relação entre as falas e as imagens, principalmente quando aquelas são pronunciadas em off. As palavras não são comentários redundantes ao que se mostra na tela. Muito pelo contrário. A sucessão das frases e a sucessão dos planos obedecem a encaminhamentos próprios, diferentes, mas sempre complementares num sentido muito especial, que não é o da intelecção da mensagem, mas a sua expressão. O balé do audiovisual. Isso aparece de modo muito especial na segunda seqüência do filme (logo após a do balé dos corpos), em que o homem vai questionando o que a mulher “viu” em Hiroshima enquanto ela vai explicando, e as imagens vão mostrando cenas (reais) da barbárie atômica, impressionantes como as do famoso documentário – também de Resnais –: Noite e Neblina (1955).

Enfim, Hiroshima Meu Amor é uma das obras-primas do cinema de todos os tempos. Mas é preciso entender que se trata de um gênero de filme bastante peculiar (como todos os gêneros, afinal). Isso não quer dizer, logicamente, que a obra de Alain Resnais seja um filme “de gênero”. Apenas, não podemos assistir a ele com os mesmos olhos com que vemos Hitchcock, James Cameron ou Glauber Rocha. A riqueza do cinema vem da sua diversidade – isso pode parecer óbvio, mas não estar preparado para essa diversidade é não aproveitar bem o que toda e qualquer película tem a oferecer. Na literatura, uns leitores gostam mais de prosa, outros de poesia. Uns estão mais acostumados àquela, outros recebem esta com choque e desorientação. Ainda que gosto não se discuta, o aprendizado é importante. Muitos espectadores inevitavelmente dormirão em um filme de Resnais, ou se inquietarão a ponto de abandonarem compulsivamente a sala de projeção – ou ainda as duas coisas, respectivamente. Mas com o devido esforço, descobrir-se-á um tesouro para o paladar dos olhos e ouvidos, cujo gosto se tornará apenas mais refinado com o tempo.

quarta-feira, abril 07, 2010

Capacete de Aço


O capacete com furo de bala é apenas uma peça de figurino. O capacete com furo de bala não passa de um objeto de cena. Mas este objeto singular absorve em sua pele de aço todas as tensões. Não resiste por igual a todos os golpes: é vazado por um projétil. Mas continua lá, carregando da guerra a marca; ele mesmo apresentando-se como estigma. O capacete metálico é uma coisa que se coloca com a clareza e a força fotogênicas de sua materialidade. E ainda assim, encontra espaço dentro de si para forrar-se de símbolo.

O capacete de aço está lá para mostrar que algo vai errado, que algo fugiu da ordem; ou que algo jamais se enquadrou na ordem; ou ainda que algo deveria sair da ordem, urgentemente. O capacete furado sinaliza que o seu usuário é um fantasma, um zumbi. O soldado deveria ter morrido; é muito estranho alguém sobreviver a essa circunstância, não? Mas é de estranhezas que se alimenta o cinema de Samuel Fuller. É estranho o sargento Zack, profissional da guerra.

É estranho o menino sul-coreano que anda com orações a Buda pregadas nas costas. São estranhos o paramédico negro, o tenente “virgem” de guerras, o cabo aspirante a padre, o sargento nipo-americano (lembremos que este filme é de 1951 e trata da Guerra da Coréia), o jovem soldado irremediavelmente careca e o soldado incondicionalmente calado. É estranho essas pessoas acabarem se juntando em um grupo. E é estranho esse grupo abrigar-se num templo budista em pleno campo de batalha.

É mais estranho ainda o sorriso – quase irônico – da estátua gigante do Buda que testemunha a agonia e glória que só a guerra pode proporcionar. É estranhíssimo – quase burlesco – o inimigo capturado: homenzinho de ínfima estatura que ostenta a patente de major e um discurso provocativo de intensidade inversamente proporcional à sua compleição física: a segregação dos negros e o confinamento de nipo-americanos em campos de concentração durante a II Guerra são lâminas agudas que o militar comunista

– e o próprio Fuller, logicamente – usa para espetar seus oponentes. Os Estados Unidos da América são uma grande e óbvia contradição. O patriotismo de Fuller é como o de um Camões (pensando nos “Lusíadas”): a nação que se ama possui uma responsabilidade para com os seus membros. O errado, o estranho, o contraditório: o incansável sargento Zack do capacete furado a tiro é a encarnação de todas as incoerências. E o cinema virtuoso de Sam Fuller é o seu perpétuo veículo.