Definitivamente a Pixar representa, hoje, o que há de melhor no cinema industrial norte-americano. A qualidade dos roteiros e da mise en scène das suas produções nos leva a refletir muito entusiasticamente sobre elas para além da categoria de “animação”. Mesmo dentro desta, a qualidade tecnológica cada vez mais impressionante da computação gráfica é o que menos deverá chamar a atenção do cinéfilo sensível ao que a arte das imagens em movimento tem de mais elementar. Tomemos como exemplo o curta que abre este Toy Story 3 (2010, dir.: Lee Unkrich), chamado Dia e Noite (2010, dir.: Teddy Newton), que não tem mais do que 6 minutos.
Apesar da intensa evolução nos longas, principalmente com Wall-E (2008), a pièce de résistance dos estúdios Pixar continua sendo os “short films”. Neste diálogo bastante imaginativo entre o “Dia” e a “Noite”, toda a fabulação é construída tomando como fundações os dois recursos de linguagem mais essenciais não só da poética do cinema de animação como também das narrativas tradicionais que este veículo atualiza: a prosopopeia e a onomatopeia. A primeira funciona dentro de um processo de alegorização que remete ao teatro popular medieval, que inspirou o grande dramaturgo humanista português Gil Vicente a escrever, dentre outras obras, o Auto da Lusitânia – com o seu famoso diálogo entre “Todo Mundo” e “Ninguém”.
A segunda presenteia o filme com uma poética às avessas: ao invés de a língua tentar representar sons “naturais”, são estes que mimetizam a linguagem verbal articulada. Quanto à história, a relação de competição e companheirismo entre os personagens faz ecoar as polêmicas relações entre as técnicas mais antigas de animação e as mais modernas, uma vez que o contorno antropomórfico do “Dia” e da “Noite” é feito através de animação tradicional: eles se destacam sobre o fundo preto da tela, lembrando os antigos desenhos feitos na própria película; enquanto o preenchimento dos seus corpos se faz com as respectivas paisagens diurna e noturna, animadas em computação gráfica.
Assistir a isso em uma sala I-MAX 3D produz um efeito bem peculiar do ponto de vista estético: as partes escuras da tela ocupam todo o nosso campo de visão, como se não existisse universo além dos bonecos que representam o dia e a noite. E os seus corpos permitem que o 3D exerça aquela que acreditamos ser a sua maior vocação – que é a do próprio cinema (já discutida aqui a respeito de Avatar): abrir-se em janela para o mundo, funcionando mais como um baixo-relevo do que como um alto-relevo (o lugar-comum da técnica). Mais uma vez, os trabalhos da Pixar parecem frutos de intensa pesquisa e experimentação, com vistas a produzir obras inquietantes e pioneiras.
Enfim, só a abertura já vale o programa. Mas eis que vem a terceira – e pelo jeito, a última – parte da saga de Woody, Buzz e seus companheiros de plástico. Mantém-se a tradição do estúdio, nesta trilogia principalmente, de incluir temas graves em histórias “para crianças”. Mas nunca a morte apareceu de forma tão dramática quanto neste Toy Story 3. A cena que se passa no incinerador é impressionante e inesperada – ainda que não o seja o seu desfecho, afinal, este continua sendo um filme da indústria. A maturidade da equipe criativa se revela na mistura equilibrada entre gêneros e no diálogo com a tradição cinematográfica.
Boa parte de Toy Story 3 lembra ora filmes de prisão, ora filmes de manicômio. Uma cena engraçada é a que faz alusão à Fuga de Alcatraz (“Escape from Alcatraz”, 1979, dir.: Don Siegel), com o Sr. Batata utilizando-se do mesmo expediente de Clint Eastwood para fazer com que sua ausência da cela passe desapercebida. O importante é que os roteiristas não procuram reinventar a roda, ou seja, criar a sua história e trabalhar os temas como se ninguém no cinema jamais houvesse feito algo parecido antes. Por outro lado, o desenho não é uma colagem inconsequente de todas as intertextualidades, submissa aos “grandes mestres”.
É difícil produzir uma obra consciente de seu lugar na história e que saiba incorporar e processar as fontes tanto quanto manter alguma dose de originalidade. Ainda mais dentro de um sistema industrial cujos códigos e coerções já estão para lá de cristalizados. Mas os profissionais da Pixar aparentemente conseguem. É por isso que Toy Story 3 é capaz de ostentar o selo Disney e ainda ser (quase) tão convincente quanto qualquer produção independente e (ou) experimental, enquanto que a Alice de Tim Burton... bem, deixa para lá, nem vale a pena.
Enfim, a maior qualidade aqui parece ser: dentro de todas as convenções dos gêneros habitualmente trabalhados pela animação (sejam estes propriamente infantis ou adultos), a equipe do filme incutiu doses sólidas, equilibradas e muito bem seguras de drama. Pode-se dizer que a força dramática de Toy Story 3 supera até mesmo a de Wall-E (o qual, não obstante, continua sendo a obra-prima do estúdio). Entenda-se bem: não se trata de carga dramática, mas de força dramática. Não basta saturar um filme de conteúdo dramático, ou dramatizar o conteúdo. A qualidade artística não se prende à mera presença de um recurso técnico.
Transformar uma “carga” em “força” é quase um processo mágico, uma alquimia que somente a mistura de sensibilidade, talento, experiência e trabalho dentro do artista verdadeiro saberá produzir.
Apesar da intensa evolução nos longas, principalmente com Wall-E (2008), a pièce de résistance dos estúdios Pixar continua sendo os “short films”. Neste diálogo bastante imaginativo entre o “Dia” e a “Noite”, toda a fabulação é construída tomando como fundações os dois recursos de linguagem mais essenciais não só da poética do cinema de animação como também das narrativas tradicionais que este veículo atualiza: a prosopopeia e a onomatopeia. A primeira funciona dentro de um processo de alegorização que remete ao teatro popular medieval, que inspirou o grande dramaturgo humanista português Gil Vicente a escrever, dentre outras obras, o Auto da Lusitânia – com o seu famoso diálogo entre “Todo Mundo” e “Ninguém”.
A segunda presenteia o filme com uma poética às avessas: ao invés de a língua tentar representar sons “naturais”, são estes que mimetizam a linguagem verbal articulada. Quanto à história, a relação de competição e companheirismo entre os personagens faz ecoar as polêmicas relações entre as técnicas mais antigas de animação e as mais modernas, uma vez que o contorno antropomórfico do “Dia” e da “Noite” é feito através de animação tradicional: eles se destacam sobre o fundo preto da tela, lembrando os antigos desenhos feitos na própria película; enquanto o preenchimento dos seus corpos se faz com as respectivas paisagens diurna e noturna, animadas em computação gráfica.
Assistir a isso em uma sala I-MAX 3D produz um efeito bem peculiar do ponto de vista estético: as partes escuras da tela ocupam todo o nosso campo de visão, como se não existisse universo além dos bonecos que representam o dia e a noite. E os seus corpos permitem que o 3D exerça aquela que acreditamos ser a sua maior vocação – que é a do próprio cinema (já discutida aqui a respeito de Avatar): abrir-se em janela para o mundo, funcionando mais como um baixo-relevo do que como um alto-relevo (o lugar-comum da técnica). Mais uma vez, os trabalhos da Pixar parecem frutos de intensa pesquisa e experimentação, com vistas a produzir obras inquietantes e pioneiras.
Enfim, só a abertura já vale o programa. Mas eis que vem a terceira – e pelo jeito, a última – parte da saga de Woody, Buzz e seus companheiros de plástico. Mantém-se a tradição do estúdio, nesta trilogia principalmente, de incluir temas graves em histórias “para crianças”. Mas nunca a morte apareceu de forma tão dramática quanto neste Toy Story 3. A cena que se passa no incinerador é impressionante e inesperada – ainda que não o seja o seu desfecho, afinal, este continua sendo um filme da indústria. A maturidade da equipe criativa se revela na mistura equilibrada entre gêneros e no diálogo com a tradição cinematográfica.
Boa parte de Toy Story 3 lembra ora filmes de prisão, ora filmes de manicômio. Uma cena engraçada é a que faz alusão à Fuga de Alcatraz (“Escape from Alcatraz”, 1979, dir.: Don Siegel), com o Sr. Batata utilizando-se do mesmo expediente de Clint Eastwood para fazer com que sua ausência da cela passe desapercebida. O importante é que os roteiristas não procuram reinventar a roda, ou seja, criar a sua história e trabalhar os temas como se ninguém no cinema jamais houvesse feito algo parecido antes. Por outro lado, o desenho não é uma colagem inconsequente de todas as intertextualidades, submissa aos “grandes mestres”.
É difícil produzir uma obra consciente de seu lugar na história e que saiba incorporar e processar as fontes tanto quanto manter alguma dose de originalidade. Ainda mais dentro de um sistema industrial cujos códigos e coerções já estão para lá de cristalizados. Mas os profissionais da Pixar aparentemente conseguem. É por isso que Toy Story 3 é capaz de ostentar o selo Disney e ainda ser (quase) tão convincente quanto qualquer produção independente e (ou) experimental, enquanto que a Alice de Tim Burton... bem, deixa para lá, nem vale a pena.
Enfim, a maior qualidade aqui parece ser: dentro de todas as convenções dos gêneros habitualmente trabalhados pela animação (sejam estes propriamente infantis ou adultos), a equipe do filme incutiu doses sólidas, equilibradas e muito bem seguras de drama. Pode-se dizer que a força dramática de Toy Story 3 supera até mesmo a de Wall-E (o qual, não obstante, continua sendo a obra-prima do estúdio). Entenda-se bem: não se trata de carga dramática, mas de força dramática. Não basta saturar um filme de conteúdo dramático, ou dramatizar o conteúdo. A qualidade artística não se prende à mera presença de um recurso técnico.
Transformar uma “carga” em “força” é quase um processo mágico, uma alquimia que somente a mistura de sensibilidade, talento, experiência e trabalho dentro do artista verdadeiro saberá produzir.