sábado, outubro 30, 2010

Minha Felicidade


Minha Felicidade (“Schastye Moe”, Alemanha / Ucrânia / Holanda, 2010) é o primeiro longa de ficção do diretor russo Sergei Loznitsa, mais conhecido – e premiado – por seus documentários. Foi exibido este ano em Cannes, provocando surpresa e polêmica, tanto entre seus compatriotas quanto na crítica estrangeira. A causa é aquela já tão batida visão misantrópica do homem e da sociedade, adotada por Loznitsa e manifestada, neste filme, sem maiores cuidados com as sensibilidades do espectador.

O fato é: se você gosta de Lars Von Trier e dos nossos Sérgio Bianchi e Cláudio Assis, terá uma boa tendência a se refestelar deliciosamente na miséria humana concentrada pelo cineasta russo como que numa piscina de excrescências morais. De qualquer maneira, não consigo mais cair naquela conversa – que parece trunfo na manga de muitos críticos – do artista “com uma visão profunda da verdadeira natureza humana”, com um olhar “que disseca impiedosamente a organização social”, etc e etc.

Juízos conteudísticos à parte – pelo menos, neste caso – o que interessa é argumentar a favor ou contra a realização formal da obra; já que se trata de cinema, e supondo que este seja mesmo a “sétima arte”, o essencial é julgar se o artista logrou expressar, esteticamente, sua visão de mundo, seja esta à lá “garoto enxaqueca”, ou à lá “Pollyanna”. Neste ponto, devemos dar a Loznitsa um crédito semelhante ao Von Trier de Anticristo (2009), e muito maior do que os aprendizes brasileiros que citamos acima.

Minha Felicidade parte da estrutura de um “road movie”, que nos conduz e atrai, com a força irrepreensível de um buraco negro, para os recônditos mais ctônicos do coração das trevas russo (esta indicação se encontra na resenha do crítico russo Anton Dolin, na Film Comment). O processo, bem gradativo, concentra-se na figura do caminhoneiro Georgy (Viktor Nemets), que empreende uma viagem pelo interior do país, rumo a um destino nunca revelado, para entregar uma carga de farinha.

Mas, ao prosaico do elemento material (incluindo a figura do pequeno caminhão, um velho Mercedes Benz que não vemos pelas ruas daqui há, pelo menos, uns vinte anos), opor-se-á o quase metafísico (infernal) processo de dissolução mental do protagonista, tornando-se mais “viajado” do que “viajante”, conforme vai adentrando mais e mais na densidade selvagem de um território no qual o Mal sopra e age como o vento, como uma força da natureza avessa a qualquer racionalização.

A última cena do filme é de grande – e simbólica – beleza: tornado definitiva e irremediavelmente mais coisa do que homem, sem memória e sem fala (ou seja, sem identidade), um vegetal ambulante carregado para lá e para cá pela vontade alheia, Georgy voltará a tomar uma atitude (consciente?) de homem – única e última. Uma atitude de violência quase divina, declaração de abandono final da humanidade e do mundo.

Após (tudo se passa à noite, num posto policial perdido no meio do nada), vemo-lo caminhar lentamente, como em transe, rumo à escuridão absoluta e desaparecer nela. Contribui muito, para o grande impacto visual desta narrativa, a fotografia do romeno Oleg Mutu (que também assinou Quatro Meses, Três Semanas e Dois Dias, ganhador da Palma de Ouro de Cannes em 2007). Enfim, a mensagem deste filme (em exibição na Mostra de SP) não tem nada de “inovadora”, mas a realização vale a conferida.

quarta-feira, outubro 27, 2010

Não Me Deixe Jamais


Existem dois tipos de narrativas de vôos dramáticos que decolam do chão da ficção científica. O primeiro diz respeito àquelas histórias que procuram rastrear o alcance dos efeitos humanos (psíquicos, sociais, filosóficos, etc) de uma dada situação científico-tecnológica inexistente em nosso tempo. Nestas, o fato material é de importância essencial e toda a fabulação crescerá tomando-o como raiz. É o gênero do “sci-fi”, propriamente dito (pelo menos, em seus melhores frutos). Um (bom) exemplo recente, e um tanto quanto aparentado do filme que discutiremos aqui, é o de Lunar (“Moon”, 2009, dir.: Duncan Jones).

O segundo tipo mal poderia ser rotulado de “ficção científica”. Corresponde às obras que tomam da “ciência” como nada mais do que pretexto: um chamariz muito oportuno para que prestemos atenção a coisas mais transcendentais. Tais narrativas possuem, via de regra, um caráter mais alegórico do que as primeiras. São fábulas no mais exato sentido do termo: seus elementos denotativos e particulares absolutamente não interessam – tanto é que histórias assim perdem pouco tempo com descrições épicas do espaço narrativo ou com efeitos especiais (no caso do cinema). Toda a significação se concentra nos âmbitos do conotativo e do universal.

Ótimos exemplos são as “ficções” de Andrei Tarkovski: Solaris (1972), Stalker (1979) e O Sacrifício (1986). Pois bem. Eis a família sobrenatural (para usar a expressão do poeta Murilo Mendes) à qual o diretor norte-americano Mark Romanek (de videoclipes e de Retratos de Uma Obsessão / “One Hour Photo” – 2002) se arvorou para dar à luz o seu Não Me Deixe Jamais (“Never Let Me Go”, Reino Unido / EUA, 2010), em exibição na Mostra de SP. Esteticamente, não há qualquer parentesco entre os dois cineastas: a “imagem-tempo” ainda é exclusividade do mestre russo, o qual foi beber em Bergman, Antonioni...

Já o filme de Romanek é o que podemos esperar de um biscoito fino assado sob os cuidados dos departamentos “cult” dos grandes estúdios (no caso, a Fox Searchlight): exige um requinte maior de paladar, mas não faz cuspir quem esteja acostumado a bolachas “passatempo”. Feito sob medida para óscares e globos de outro. Não obstante, vemos na tela uma natureza bucólica como único e acolhedor refúgio de párias em profunda crise existencial; no fora-de-campo, orbita a desumanidade da ciência e o mundo artificial que ela criou. O resumo é tosco, mas eis os ecos tarkovskianos que imaginei para este filme.

O roteiro de Não Me Deixe Jamais é adaptado do romance homônimo do escritor japonês Kazuo Ishiguro, publicado em 2005. Acompanha a curta trajetória de três jovens amigos: a inteligente Kathy (Carey Mulligan), o emotivo Tommy (Andrew Garfield) e a manipuladora Ruth (Keira Knightley), cujas vidas e função social são irremediavelmente determinadas desde o nascimento – ou melhor, desde a sua concepção; infelizmente a morte, para eles, não é aquela esperança que Roger Daltrey canta, na clássica My Generation, do The Who (“Hope I die before get old”).

O filme se divide em três atos: a infância, num bucólico colégio interno para alunos “especiais”; a adolescência, numa colônia rural igualmente remota, chamada apenas de “Cottages” (chalés); o início da fase adulta, quando finalmente terão maiores contatos com o mundo, antes de logo exercerem a razão de seu nascimento e criação. Sabemos que o sistema educacional no mundo ocidental foi, historicamente, se distanciando cada vez mais da vida e do mundo, ao mesmo tempo em que investia mais e mais na sua função de “preparar”, industrialmente, a mão-de-obra para este. Mas é a primeira vez – e muito bem vinda – que vemos a instituição escola sendo comparada simbolicamente a uma fazenda de gado.

Sabendo o quanto suas vidas são controladas e o seu destino, curto, a maior tragédia desses jovens não é procurar (e não conseguir) viver com a maior intensidade possível antes do fim inadiável. Seu desespero é que sequer sabem o que é “viver”, tampouco como viver; e não terão tempo de aprender. As poucas cenas do filme, em que eles exercem de fato, na vida e no mundo, a sua inquestionável, porém engatinhante humanidade (na sexualidade, no amor, na natureza, no contato com a civilização), são de uma força poética simples e potente. Vale a lição da professora que, “subversivamente”, lhes esclareceu a sua condição, para que procurassem viver uma vida “decente”.

Por isso, podemos dizer que Não Me Deixe Jamais é um filme muitíssimo triste, porém, digno. Não é uma ficção científica, porque em momento algum passa pelas cabeças dos protagonistas a ideia de questionar a ordem estabelecida (como em Blade Runner); eles a veem com a mais absoluta e triste naturalidade, assim como nós mesmos nos vemos ao pensar nas vicissitudes que a vida e a natureza nos colocam em frente (principalmente, é claro, nas relações entre o tempo e a morte). Dessa maneira, o drama daqueles personagens é o nosso próprio drama, como a narradora Kathy muito conscientemente afirma. Todos somos mortais e só nos resta fazer o possível com o tempo que nos é dado.

Em vista disso, Kathy não deixa de sentir e admitir até mesmo orgulho pelo “trabalho” que eles fazem. Um crítico malicioso poderia fazer disso uma leitura sócio-política e taxar o filme de reacionário. Mas repito: não se trata de uma ficção científica nos moldes de um Aldous Huxley. O modelo aqui é Stanislaw Lem (o autor do romance Solaris, que inspirou Tarkovski) e suas proucupações metafísicas. Não Me Deixe Jamais não é o drama de uma classe social, no caminho do matadouro, exercendo a função de “gado”. É o drama de todos nós, devorados pelo Cronos soberbo e, ao mesmo tempo, temeroso de que o destronemos.

terça-feira, outubro 26, 2010

Minhas Mães e Meu Pai


Irremediavelmente abalado por 500 Dias Com Ela (“500 Days of Summer”, EUA, 2009, de Marc Webb), eu me lembro de ter falado enfaticamente das “realidades humanas” que o filme soube representar de um jeito simples, honesto e profundo. Pois bem. Minhas Mães e Meu Pai (“The Kids Are All Right”, EUA, 2010, de Lisa Cholodenko) chega até nós como mais um exemplo desta forma poética e singela de “educação sentimental” exercida pelo cinema. A fita está em exibição na Mostra de SP e programada para já estrear em circuito no dia 12 de novembro.

O que vemos ali, antes de mais nada, é a vida sossegada, feliz e em perfeita harmonia de uma família não-convencional: um casal de duas mulheres (Nic, vivida por Annette Bening – que merece indicação para um Oscar, ou, pelo menos, para um Globo de Ouro –; e Jules, interpretada por Julianne Moore) e seus dois filhos adolescentes (Laser / Josh Hutcherson e Joni / Mia Wasikowska – a Alice de Tim Burton), concebidos no ventre de cada uma delas com o esperma de um doador anônimo.

Já de início, a maneira como Cholodenko retrata o cotidiano da casa revela o grau de atenção e cuidado profundamente humanos com que a cineasta aborda o seu tema. Ela está pouco interessada em romantizar e glamourizar o universo “alternativo” das pessoas “alternativas” – seu cinema é “indie” apenas no que toca aos custos da produção. Tampouco sua preocupação é fazer aquele cinema “naturalista”, com o bicho-homem refestelando-se na própria ignomínia. A diretora não trabalha com “tipos”; pelo menos, não da maneira como se poderia esperar de um filme “off-Hollywood”.

Em todos os aspectos, Lisa Cholodenko está anos-luz à frente de um Todd Solondz, por exemplo. Suas personagens não são “esquisitas”, “bizarras”, “párias”, “problemáticas”, “disfuncionais”, etc, etc, etc. A naturalidade, a normalidade e até a “caretice” pelas quais a família em questão lembra qualquer outra família que habita o universo urbano contemporâneo podem ser creditadas ao rico discernimento que o filme nos apresenta em relação aos fenômenos e relações humanas no que é a sua essência mais importante.

Para usar um conceito em voga, atualmente, na internet, Lisa Cholodenko procura sabotar, o tempo todo, a single history que o espectador poderia esperar vinda de uma família com duas mães (e nenhum pai). Ou seja, quaisquer preconceitos (e pré-conceitos), qualquer visão previsível, superficial, rígida, e sobretudo única, que se possa ter do assunto “lesbianismo”, é deixada absolutamente de lado pela diretora. Mesmo se tal visão for condescendente e dotada daquela fascinação que produz modas e “hypes”, os quais servirão, no fundo, apenas para erodir a complexidade e diversidade humanas.

Quem quer saber mais sobre os perigos da “história única”, confira este vídeo, no youtube, aqui e aqui. Há uma outra cena, em The Kids Are All Right, que ironiza tais armadilhas de julgamento: quando uma das amigas de Joni (que não parece ser rascista, propriamente dita, nem se julgaria a si mesma como tal, provavelmente) acha que a jovem e bela mulher (negra), com a qual está conversando numa mesa de restaurante, veio da África, só pelo fato de usar um colar “tribal”.

O fato é que Lisa Cholodenko não trabalha em cima de quaisquer rótulos, sejam eles positivos ou negativos. Seu filme não é – e passa longe de ser – uma mera “ação afirmativa” do homossexualismo feminino, da construção de famílias não-convencionais, da produção e consumo de alimentos orgânicos, e de todo o universo “moderno” que poderíamos conectar a esses temas; ainda que os personagens se encaixem, sociologicamente falando, dentro de tais categorias. Contudo, psicologicamente, o buraco é muito mais embaixo (com o perdão do trocadilho).

A cineasta dedica-se a um microrrealismo, que busca – de maneira que, em nenhum momento, deixa de ser problematizadora – as fundações da alma dos indivíduos: seus processos interiores, os comportamentos que resultam destes e as cadeias de resultados e efeitos nas subjetividades alheias. Neste ponto, em que o ser inconsciente de todos os seres humanos pode ser definido como “só sabendo desejar” (no ótimo resumo que Jung faz da psicanálise freudiana), o fato de a personagem em questão ser homem ou mulher, hétero ou homossexual, não passa de mero detalhe, com pouco a acrescentar.

Em uma matéria publicada na edição de julho / agosto da Film Comment, Cholodenko (que, só para constar, é lésbica e vive, atualmente, numa relação estável) diz que é totalmente “quadrada” (“I’m totally square”), ao explicar a sua proposta cinematográfica. Ela afirma que: “My films have been about temptation and the open spirit that takes you away from anything that’s binding. The Kids Are All Right is a meditation on what’s potentially exhilarating in the bind. It’s like a hope film. At least, I’d like that to be true. (...)

I also thought, I’m dealing with this gay two-mom family and I really want to explore those ideas in a way that completely offsets the spectacle of it being a two-mom family.” Traduzindo: “Meus filmes são sobre tentação e sobre o espírito livre que leva você para longe de tudo que seja um compromisso. The Kids Are All Right é uma meditação sobre o que pode ser divertido no compromisso. É um filme de esperança. Pelo menos, eu gostaria que isso fosse verdade. (...)

Eu também pensei: estou lidando com esta família gay de duas mamães e realmente gostaria de explorar tais ideias de um jeito que seja totalmente o contrário do espetáculo que poderia ser uma família com duas mães.” É através dessa esperança, de que fala a diretora, que o filme exerce o seu maior poder no espectador. A educação sentimental de que falei no começo se dá em uma forma seguramente adulta, ou seja, com todas as doses de vicissitudes, complexidades e problemas deste ser que só sabe desejar.

Não obstante todo o realismo (neurótico, que poderia desembocar num pessimismo, ou niilismo, ou coisa pior), a escolha que a diretora e as personagens fazem, e o resultado a que se chega, são ainda acreditar no amor e perseverar na busca da felicidade. O crítico mais impaciente talvez não enxergará essas nuanças e rotulará Cholodenko de “conservadora”, e ponto. Para tais espíritos, eu peço apenas que vejam Tudo Pode Dar Certo (“Whatever Works”, 2009, de Woody Allen), além do já citado 500 Dias Com Ela.

Acredito que estes filmes formam uma linha de direcionamento bem interessante que se está dando, atualmente, à velha comédia romântica norte-americana. De qualquer maneira, o poder da “tentação”, de que falou a cineasta no trecho reproduzido mais acima, usará como principal instrumento, em The Kids Are All Right, a figura do pai anônimo (Paul / Mark Ruffalo), o qual chegará como elemento desestruturador da paz e do equilíbrio da família de “duas mamães”.

Entendamos bem: Paul é uma força benigna em todos os aspectos intrínsecos, a relação de amizade e familiaridade que se cria entre ele, os filhos e as duas mães é absolutamente saudável, legítima, enriquecedora, e mesmo necessária. Não obstante, exercerá um poder destrutivo com o qual será muito difícil lidar, justamente quando o fator “tentação” entrar no jogo (o resto eu não conto). No trato do elemento “desejo” e das tempestades que ele, naturalmente, provoca, Lisa Cholodenko mistura muito bem a comédia de costumes e o drama de personagem.

E, nunca é demais reiterar, o mais importante de tudo é que a cineasta não se esquece de construir e desenvolver as personagens e situações sempre com uma dose revigorante de humanidade, de empatia e simpatia por tudo o que, afinal de contas, não é alheio a pessoa alguma. No que qualquer diretor menos sensível poderia descambar para o psicologismo ou sociologismo, Cholodenko mantém a abertura e a ambiguidade de quem sabe que não faz mais do que representar e compartilhar a vida. Pura e simplesmente.

segunda-feira, outubro 25, 2010

Os Amores de Um Zumbi


O intelectual (professor universitário) e cineasta haitiano Arnold Antonin já é veterano. Estreou em 1974 e conta, atualmente, com 34 filmes: a maioria, documentários de curta-metragem feitos em vídeo. Em 2002, foi premiado em Cannes com a fita Women of Courage (“Mulheres de Coragem”). Na Mostra de SP deste ano, temos a chance de conferir sua mais nova empreitada, um longa de ficção curiosamente intitulado Os Amores de Um Zumbi (“The Loves of a Zombi”, Haiti, 2009).

Trata-se da história picaresca de um malandro apaixonado que, mesmo depois de morto, não desiste de procurar e viver junto da mulher amada. Por suas peripécias, ele será conhecido e admirado em todo o país. E, uma vez celebridade, as portas da política se lhe abrirão de par em par – alguns homens poderosos tentarão fazê-lo, muito oportunamente, presidente da nação.

A sinopse é realmente estimulante, fazendo logo ecoar, em nossa memória, fatos bem recentes do nosso velho Brasil: quem é que precisa de um zumbi quando se tem Tiririca? No cinema, a tentação é estabelecer uma ponte com o clássico A Mulher Faz O Homem (“Mr. Smith Goes To Washington”, EUA, 1939, de Frank Capra), com o caipira Sr. Smith nadando entre tubarões no senado.

Infelizmente, o filme de Antonin absolutamente não investe na veia político-alegórica entreaberta em seu roteiro. No todo, passa como uma narrativa picaresca das mais elementares, com as típicas doses de humor burlesco na vertente mais escatológica. Nisto, um crítico com bastante paciência e condescendência poderia ver um fresco e revigorante sopro de naïf.

Mas as falhas técnicas, também das mais elementares (daquelas que mal seriam cometidas por adolescentes que fazem vídeos para o youtube), deixam qualquer um com um pé e meio atrás. Mesmo que a ideia fosse fazer um filme propositalmente “tosco” para abocanhar festivais (como Woody Allen brinca em Dirigindo no Escuro – “Hollywood Ending”, 2002), certas inconsistências deveriam ser “apenas” aparentes.

Não me refiro simplesmente ao fato de a captação ser em vídeo da pior qualidade, de a montagem quase revelar o momento em que o diretor grita “ação!”, dentre outros problemas constrangedores. Não sou daqueles que acreditam que qualquer “Full HD” garantirá uma produção “de qualidade”. O pior mesmo, em Os Amores de Um Zumbi, é o amadorismo do roteiro.

O final é inacreditavelmente confuso e desproposital, parece que tentaram criar uma ambiguidade do tipo como vemos no fechamento de A Origem (“The Inception”), mas o resultado é muito, muito mais bobo do que na fita de Christopher Nolan. À guisa de atenuante, coloca-se no créditos iniciais do filme como que um pedido de desculpas aos espectadores, preparando-os para a bomba que vem a seguir:

a produção argumenta, ironicamente, que o filme é produto exclusivo da fantasia dos seus produtores, alimentada e embriagada com altas doses de sal (como se o próprio diretor fosse um zumbi – logo mais explicaremos) e de rum. Enfim, está colocada a brincadeira. De qualquer forma, a hora e meia que se gasta vendo Os Amores de Um Zumbi não provoca qualquer arrependimento, acredito que a experiência (tanto a dos produtores, quanto a do espectador) seja válida.

Ademais, sinto-me muito mais idiota ao ver uma super-produção “ruim” (por não ter logrado atingir sua própria proposta estético-temática, ou que esta provoque nada mais do que abjeção – coloco neste mesmo balaio Lars Von Trier e Michael Bay), do que um filme praticamente caseiro, cujos defeitos estejam na técnica mais básica, de modo que mal se pode dizer que seja “profissional”.

Mas valeu a tentativa, companheiros haitianos. Talvez seja eu que não tenha captado o experimentalismo da proposta, mas não desistam. Sério. Consideração final: os fãs de George Romero não precisam perder tempo vendo esta fita. O conceito de zumbi trabalhado aqui está mais ligado à religião vodu do Haiti, o qual inspirou A Maldição dos Mortos-Vivos (1988), de Wes Craven. Vejam!

P.S. (um tanto quanto jocoso): Tirando as informações divulgadas pela Mostra de SP, não se encontra ABSOLUTAMENTE nada na Internet sobre este filme. Será que existe mesmo, ou somos todos zumbis?

domingo, outubro 24, 2010

Símbolo


Vou na Mostra para ver o novo do Woody Allen? Sofia Coppola? Amos Gitai? De jeito nenhum. Não tenho paciência alguma para filas, e essa história de “ver primeiro que todo mundo” absolutamente não me atrai. Agora, o que é verdadeiramente entusiasmante é o fato de poder conferir filmes estranhíssimos, de nomes estranhíssimos e que (provavelmente) jamais entrarão no mercado, mesmo em DVD. Não que eu cultive qualquer juízo de valor mais prestigioso ao cinema dito “alternativo”. É só curiosidade mesmo. E os festivais oferecem um cardápio bastante suculento da diversidade da produção cinematográfica mundial.

É neste espírito que gostaria de colocar algumas palavrinhas aqui a respeito de Símbolo (“Shinboru”, Japão, 2009), exibido ontem na 34ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo (quem quiser passar pela experiência dele, ainda terá chances nos dias 01 e 02 de novembro, em salas e horários variados – consulte a programação em http://www.mostra.org/). O filme é dirigido e protagonizado por Hitoshi Matsumoto, comediante bastante popular na terra do sol nascente. Esta é a sua segunda incursão no cinema – o debute se deu com Big Man Japan (“Dai Nipponjin”, 2007), que também misturava de maneira bizarra o humor e o fantástico.

A história (tanto quanto se possa dizer que exista uma) é a de um homem (o próprio Matsumoto) que acorda numa sala absolutamente branca e asséptica, sem portas, nem janelas. Vestido de um colorido pijama de bolinhas, divertimo-nos com os exagerados gritos e gestos de surpresa, indignação, entusiasmo, frustração e, enfim, desespero, enquanto o pobre inominado tenta diferentes estratégias para escapar do seu estranho cativeiro. Nas paredes, só se vê pequenas protuberâncias em formato sugestivamente fálico as quais, se pressionadas com o dedo, fazem com que sejam arremessados dentro da sala a maior e mais nonsense variedade de objetos possíveis:

uma escova de dentes cor de rosa, um megafone, um bonsai, um guerreiro tribal africano que corre – e desaparece – de ponta a outra, uma quantidade insaciável de sushi (mas sem molho shoyu, para desespero do pobre homem), etc, etc, etc. É preciso não nos esquecermos de dizer que tais fatos são mostrados em paralelo com a vida de um lutador de luta-livre no México, o famoso “Escargot Man”, herói das crianças, que nunca mostra o rosto (até nas fotos de família ele aparece irremediavelmente mascarado). Ele é uma versão burlesca do “wrestler” interpretado por Mickey Rourke em O Lutador: pretende manter-se nos ringues, enfrentando oponentes cada vez mais jovens e violentos, contrariando as preocupações da família.

O choque linguístico dessas duas narrativas que correm lado a lado já traz uma cômica dose de estranhamento: o japonês e o castelhano em suas formas mais típicas, com as entonações exageradas das quais só um estrangeiro (não tão politicamente correto) saberá rir; na história do homem japonês sem nome, ainda há algumas incursões daquele não menos risível e empostado inglês americano típico dos “advertising”. Enfim, as duas histórias vão convergir – logicamente – em certo ponto do filme. Porém, mesmo creditando o suficiente à carga nonsense do roteiro, a convergência poderia se um pouco mais orgânica e significativa.

A impressão que se fica, em relação exclusivamente ao ponto de contato entre as duas narrativas paralelas, é de que se construiu e pavimentou uma larga e sofisticada rodovia para um vilarejo perdido no mapa. Felizmente (mas não tanto), este ponto de contato não se dá no final do filme; após, serão acrescentados outros elementos que desembocarão na mensagem e no sentido finais – os quais se fazem por demais claros, ainda que certos detalhes específicos da efabulação permaneçam no obscuro do nonsense e do surreal (por exemplo, que lugar é, de fato, o não-lugar em que o homem sem nome fica preso: o máximo que poderíamos tentar dizer é que se trata de uma “casa de máquinas” do universo).

Em relação à tal mensagem, podemos entender Símbolo como uma obra “esclarecedora” e “edificante”, num sentido muito pós-moderno, mais ou menos como se vê em certos filmes de Alejandro González Iñárritu ou Michel Gondry. Agora, ligar Matsumoto a Kubrick, a Jodorowsky, ou mesmo a David Lynch, acredito que seja exagero – não obstante, tal entusiasmo é bem compreensível. O importante é entendermos que não se trata de uma simples alegoria (com suas indigestas doses de didatismo); por outro lado, a simbologia poderia ser um pouco mais complexa e, sobretudo, aberta – que é o que define o melhor da produção mítica já empreendida por esta espécie que vos fala.