No coração das
trevas
Na Neblina (“V tumane”, Alemanha / Países Baixos /
Letônia / Bielorrússia / Rússia, 2012) é o segundo longa-metragem de ficção do cineasta
bielorrusso Sergei Loznitsa, que anteriormente fazia documentários. Estreou
nesta sexta-feira em São Paulo, em uma única sala. O primeiro, intitulado Minha
Felicidade, foi exibido na Mostra Internacional de SP em 2010 e teve um
também tímido lançamento comercial em 2012. Na
Neblina segue com o perturbador mergulho no “coração das trevas” das
florestas eslavas, de um modo muito claramente caro ao cineasta, beirando a
misantropia. E estamos muito longe, aqui, do misticismo de ares panteístas de
um Andrei Tarkovski. Os planos longos de Loznitsa sugerem antes um estado de
choque que uma contemplação. A natureza e o ser humano parasitam um ao outro em
uma relação de reflexos simbólicos de sua própria inospitez e ignomínia.
O filme nos faz
acompanhar os pesados passos de um homem que, durante a ocupação nazista da
Bielorrússia, é preso com um grupo de sabotadores. Os outros são enforcados,
ele é libertado. Mas, longe de ser uma clemência, esta poderá se tornar a sua
pior condenação. Olhado com desconfiança e constrangimento pela família, pela
comunidade e pelo Estado, ficará a pergunta, como que marcada a ferro e a fogo
em sua pele: será um traidor? Um colaboracionista? Impossível resolver a
dúvida, impossível conviver com ela. O suicídio também não será uma solução,
pois o próprio protagonista diz que comprovaria a tese de que ele é um traidor
e teria “se arrependido”. A escuridão vai dominando progressivamente a sua
alma, enquanto seu corpo se deixa levar por um território semi-selvagem no qual
a barbárie parece agir e influenciar através da neblina, já presente no título.
Nos dois filmes
de Loznitsa, faz-se presente o aspecto mais aterrador de uma força ctônica: a
sensação é de sermos enterrados vivos, pás de terra sendo jogadas sobre nosso
corpo (em essência, nada diferente da cena que abre Minha Felicidade: uma vítima da máfia sendo soterrada por cimento
fresco). Em Na Neblina, a densidade –
tanto psicológica quanto literal – da atmosfera faz refletir (espelhos, mais
uma vez) a densidade alegórica da terra:
o filme abre com um soldado vermelho se desequilibrando no tronco que atravessa
um riacho e caindo com os dois pés na água lamacenta, que lhe cobre até os
joelhos. Em outro momento, o protagonista (prestes a ser executado por esse
mesmo soldado, por sua “traição”) pede para que se cumpra a ordem em um terreno
mais elevado, pois não quer cair morto, e insepulto, no pântano. Ao longo do
filme, desde o começo até o final, vemos uma quantidade inquietante de
cadáveres deixados ao ar livre.
Em Sergei
Loznitsa, a densidade claustrofóbica dos elementos: em primeiro lugar, a terra;
em segundo, o ar; acaba (ou deveria acabar), invariavelmente, engolindo o
homem, que nada mais seria do que um fruto mal medrado de suas obscuras
entranhas. A neblina que apaga completamente o protagonista (e a própria tela)
no último plano deste filme reverbera a escuridão total para a qual caminha o
personagem principal no fim de Minha
Felicidade: ambos se entregam, em absoluto, a uma natureza terrível da qual
não se pode escapar, porque é nela (dela) que nascemos, a ela estamos amarrados
e nela seremos (ou precisamos ser) enterrados. A progressão narrativa vai
conduzindo a lenta e gradual transformação do indivíduo em bicho (da terra), em
coisa. Depois, em pó, em nada. As parábolas de selvageria e barbárie em que
parecem se constituir os dois longas ficcionais de Loznitsa ganham mais força
ainda através dos cenários geográfico-sociais de suas histórias: longe de
qualquer centro urbano, civilizado, conhecido. Não há sequer quaisquer
referências a tais. O mergulho no coração das trevas é total.