Mentes
Escaneadas
Eu queria conhecer as
opiniões de Freud acerca da precognição e da parapsicologia em geral. Quando
fui vê-lo em 1909, em Viena, perguntei-lhe o que pensava sobre isso. Fiel a seu
preconceito materialista, repeliu todo esse complexo de questões, considerando-as
mera tolice. Ele apelava para um positivismo de tal modo artificial que
precisei conter uma resposta cáustica. Alguns anos decorreram antes que Freud
reconhecesse a seriedade da parapsicologia e o caráter de dado real dos
fenômenos “ocultos”.
Enquanto Freud expunha
seus argumentos, eu tinha uma estranha sensação: meu diafragma parecia de ferro
ardente, como se formasse uma abóbada ardente. Ao mesmo tempo, um estalido
ressoou na estante que estava a nosso lado, de tal forma que ambos nos
assustamos. Pensamos que a estante ia desabar sobre nós. Foi exatamente essa a
impressão que nos causou o estalido. Eu disse a Freud: “Eis o que se chama um
fenômeno catalítico de exteriorização.” “Ah”, disse ele, “isso é um puro
disparate!”
“De forma alguma”,
repliquei, “o senhor se engana, professor. E para provar-lhe que tenho razão,
afirmo previamente que o mesmo estalido se reproduzirá”. E, de fato, apenas
pronunciara estas palavras, ouviu-se o mesmo ruído na estante.
Ainda hoje ignoro de
onde me veio esta certeza. Eu sabia, porém, perfeitamente, que o ruído se
reproduziria. Então, como resposta, Freud me olhou, horrorizado. Não sei o que
pensou, nem o que viu. É certo, no entanto, que este acontecimento despertou
sua desconfiança em relação a mim; tive o sentimento de que lhe fizera uma
afronta. Nunca mais falamos sobre isso. (JUNG, Carl Gustav. Memórias, Sonhos, Reflexões. 1ª ed. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 2006. p. 190-191)
A cena acima é
extraída da autobiografia de C. G. Jung e se encontra reproduzida tal qual em Um Método Perigoso (“A Dangerous Method”,
Reino Unido / Alemanha / Canadá / Suíça, 1022), o filme mais recente de David
Cronenberg. Já se podem reconhecer nela os campos minados do cérebro pensante e
as relações com os seus maiores “inimigos” – o corpo e o mundo dos objetos – temática
que esteve sempre presente na obra do diretor, não raro adotando expressões de
extrema violência, no grotesco de mutilações, metamorfoses e fetiches: o
bizarro esticado às raias do surreal.
Neste ponto,
verdade seja dita, Um Método Perigoso
baixa o tom em relação a Os Senhores do
Crime (“Eastern Promises”, 2007) e Marcas
da Violência (“A History of Violence”, 2005), exemplos da produção mais recente
de um autor maduro, mas ainda inspirado. No entanto, os fãs do Cronenberg mais hypado pela crítica não precisam
desgostar (muito) deste filme que é quase um teatro filmado – no bom sentido.
Pois estão lá, ainda que no fundo e com sutileza, as velhas preocupações do
cineasta, desde a primeira cena, em que vemos uma Keira Knightley histérica
sendo transportada para o sanatório onde atende o jovem Dr. Jung (interpretado
pelo grande Michael Fassbender).
A personagem
dela é Sabina Spielrein, que entrará num relacionamento amoroso tenso (além de
adúltero) com o pai da psicologia analítica. Tudo baseado em conhecidos fatos
reais; porém, a história não será contada à moda folhetinesca de Jornada da Alma (“Prendimi l’Anima”,
2002, de Roberto Faenza). Cronenberg fará com que o drama se exerça de maneira
rigorosa, severa, carregando, no fundo e no final das contas, um comentário
irônico e um tanto quanto iconoclasta em relação a duas figuras míticas de um
século cujo empenho-mor foi a derrubada de todos os mitos.
Os heróis da era
da ciência já não são Hércules, Teseu, Perseu ou Aquiles; tampouco Noé, Moisés,
Davi ou Jesus. Nossos profetas, xamãs e guias são cientistas. Em especial Sigmund Freud (vivido aqui por Viggo Mortensen), paladino do materialismo
contemporâneo, como seu ex-discípulo faz questão de esclarecer no texto acima.
Mas o conhecimento material não tem nada de heroico; ele vai se formando e
transformando à base de diferenças entre
pontos de vista, egos, vaidades. As idiossincrasias pessoais, intransigentes,
batem-se de parte a parte: de um lado, o Freud que não aceita um discípulo que
tenha ideias próprias (quanto menos, metafísicas); do outro, um Jung que não pode aceitar a existência do mero
acaso.
No final, os
dois não passarão de objetos típicos dos próprios métodos de análise
psicológica que elaboraram. Freud será estudado e diagnosticado por Jung, e
este o será por Sabine – já “curada” e tornada ela própria psicóloga – no
memorável diálogo que encerra o filme e que abandonará o criador da teoria dos
arquétipos num estado de desamparo, confusão e estupefação quase infantil. Humano,
nada mais do que humano. É claro que nada disso faz por diminuir o valor e a
importância da enorme contribuição que os dois maiores psicólogos do século XX
trouxeram para o patrimônio do conhecimento da espécie.
Mas Um Método Perigoso, que é essencialmente
um filme de diálogos, extrai a sua força de um brainstorm e de mind games que
colocam em perspectiva os fundamentos da concepção intelectualizante que a
civilização moderna (e pós-moderna) faz do ser, da vida e do mundo. Freud e
Jung, cada um à sua própria maneira e segundo as próprias crenças (ou
descrenças), são as primeiras vítimas dessa racionalização prolífica de
neuroses. No final de tudo, quem sai engrandecida dessa história é Sabine
Spielrein – ao contrário da vitimização constrangedora que a personagem sofre
no filme de Faenza.
Lembremos que ela morre nas mãos do nazismo, fato que Cronenberg,
sabiamente, escusa-se de mostrar, apenas referindo a ele nos letreiros finais.
Sabine é o sexo forte, que extrai da sua loucura e da sua intuição a sabedoria
vital que falta às duas das maiores mentes do século. Enfim, Um Método Perigoso é receitado tanto a
freudianos quanto a junguianos, tanto pelas vitórias quanto pelos fracassos dos
seus ídolos – entendidos como figuras biografáveis, pois Cronenberg está pouco
interessado em discutir o mérito de teorias e tratamentos psicológicos, ao
contrário do que o título do filme pode levar erroneamente a acreditar. Mas,
então, eis uma nova ironia...