O caráter universal e a função mítica do western já foram bem assinalados por André Bazin no ensaio “O western ou o cinema americano por excelência”. Os filmes de “bangue-bangue” não dizem respeito apenas a particularidades da formação dos Estados Unidos da América como nação, no século XIX – destacando-se delas a “conquista” do oeste e a Guerra de Sessessão. Para atraírem platéias em todos os continentes e para influenciarem e se assemelharem tanto ao cinema e a literatura de culturas tão diferentes (pensamos nos filmes de samurais de Akira Kurosawa e nas histórias de jagunços de João Guimarães Rosa), as fitas de western devem possuir algo de eterno, de transcendente. Assim sendo, os maiores clássicos do cinema norte-americano são constituídos por símbolos que velam e revelam realidades mais profundas por debaixo das diferenças nacionais: símbolos que chamamos de mitos e que levam à intuição de arquétipos fundamentais do inconsciente coletivo da humanidade.
Em que medida a saga do rumo ao oeste norte-americano se assemelha à saga dos cavaleiros andantes medievais, dos marujos e piratas desbravadores de oceanos, dos samurais andarilhos do Japão feudal, dos jagunços e cangaceiros do sertão brasileiro, dos fora-da-lei românticos que vagam por entre as estrelas na ficção científica? Todo esse folclore trata, no fundo, de novas formas de cosmogênese: a constituição ou descoberta de novos universos graças ao valor de indivíduos que se adaptam e vencem as adversidades de um meio natural hostil. Não é esta a grande epopéia humana, desde que nossa espécie deixou o continente africano? Não é em função de adaptar-se ao meio, descobrindo o valor específico do indivíduo em relação a esse meio, que se enfronharam os arquétipos e, a partir deles, se formaram os mitos, segundo a Psicologia Analítica de C. G. Jung? O western é apenas uma dentre várias facetas que se localizam na intersecção dos traços que compõem e orquestram algo que se pode chamar de humano.
A força primeva e ilógica da noite do inconsciente, que está em toda parte:
“A razão normal de coisa nenhuma não é verdadeira, não maneja. Arreneguei do que é a força – e que a gente não sabe – assombros da noite. A minha terra era longe dali, no restante do mundo. O sertão é sem lugar.” João Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas
O “sertão está em toda parte”, o “sertão é dentro da gente”: O espaço, para Guimarães Rosa, é a paisagem da alma, tanto quanto o é o cenário do Monumental Valley para John Ford, tão real e mágico ao mesmo tempo. Travessia. A travessia do sertão, para o jagunço Riobaldo de “Grande Sertão: Veredas”, é a travessia da vida, é o próprio viver: a jornada da alma. O mesmo pode ser dito da travessia empreendida pelo jovem caubói Ringo Kid (John Wayne), em No Tempo das Diligências (1939), de Ford. Nessa viagem, em busca da auto-afirmação de sua própria identidade (o processo de individuação), o jovem Wayne terá que lidar com as forças do meio, numa dialética de adaptação e superação delas. Essas forças são representadas pela selvageria (a natureza, o índio) e pela barbárie (o preconceito, a corrupção e hipocrisia da sociedade civilizada, representada por alguns dos seus companheiros de diligência. A mesma situação se põe, cotidianamente, a cada um de nós.
No destino de Ringo Kid está a vingança pelo assassinato de sua família: imperativo que constela os valores de honra, amor e lealdade – fundantes do indivíduo moderno e estruturantes de todos os westerns. No processo, ele encontrará o amor – cuja conquista será a sanção definitiva para a sua maturidade. Mas a travessia do sujeito também será a travessia de uma sociedade. A pequena diligência a atravessar o deserto assume a proporção mítica de uma arca de noé que não carrega o melhor de cada espécie. As contradições que reparamos no microcosmo social da stagecoach devem-se antes à decadência de um velho mundo (o mundo puritano; europeu?) do que às vicissitudes naturais do processo de constituição de uma personalidade (caso do solícito fora-da-lei Ringo Kid). A riqueza e complexidade humana expressas pelas figuras dos oito personagens que viajam na diligência, dividindo bem ou mal um espaço interno tão pequeno (e seguro?) em meio à vastidão desconhecida do deserto, é uma das coisas mais admiráveis nesta obra-prima de John Ford – e metáfora sensível da nossa civilização urbana, minúscula diligência atravessando a escuridão.
Temos a jovem Dallas (Claire Trevor), garota de bordel expulsa da cidade pela liga das senhoras zelosas da moral e dos bons costumes (retratadas com impiedoso sarcasmo por Ford); Ringo Kid, fugitivo do qual já falamos; Buck (Andy Devine), o condutor da carruagem, figura folclórica do parvo; Hatfield (John Carradine), o dândi, o jogador galante; Doc Boone (Thomas Mitchell), o médico alcóolatra e sarcástico, grande responsável pelo rico elemento de humor do filme; Lucy Mallory (Louise Platt), jovem grávida e membro da liga das senhoras, que viaja para se encontrar com o marido e será cortejada por Hatfield; Curly (George Bancroft), o xerife representante da lei, que viaja como segurança da diligência; Sr. Peacock (Donald Meek), homem franzino, tímido e medroso, extremamente polido, dono de um discurso de conotações religiosas, o que lhe dá a alcunha de Reverendo; no entanto, ele é vendedor de whisky (caixeiro viajante). Por fim, temos o Sr. Gatewood (Berton Churchill), banqueiro irritadiço, senhor de um discurso muito à lá George W. Bush, mas que viaja de fuga, hunto com o dinheiro dos clientes que acabou de roubar.
Todos eles, de uma forma ou outra, receberão alguma parcela da sátira de John Ford, exceto Ringo e Dallas (as maiores vítimas e ao mesmo tempo os mais corajosos), que, no final, receberão a recompensa de serem os formadores de uma nova civilização no oeste conquistado, terra prometida para John Ford – colocando-se aqui de acordo com os valores fundantes de seu país (a liberdade, a natureza verdadeira dos valores vivenciados) em oposição às convenções cansadas da velha letra da lei européia). A última frase do filme, pronunciada pelo médico ébrio Boone, ao ver a carroça que leva o novo casal Ringo e Dallas se afastar no horizonte, resume muito da mensagem proposta por Ford: “They’re safe from the blessings of civilization” (Eles estão seguros das bênçãos da civilização). No baixar das cortinas, a maior das alfinetadas irônicas distribuídas por John Ford ao longo da fita.
Não se trata da defesa dicotômica da natureza contra a civilização, da forma como diversas manifestações culturais nos propõem. Para Ford, a natureza puramente selvagem representa as zonas mais escuras, desconhecidas e perigosas do inconsciente, que o homem deverá saber integrar (não se trata de reprimir, mas integrar) à consciência, se quiser alguma evolução psicológica e social. A luta entre o homem e a natureza, entre a cavalaria e os índios apache em No Tempo das Diligências adquire o status das mitologias mais primitivas, mais essenciais de qualquer civilização humana – incluindo a dos próprios índios apache. É claro que isso tudo bate de frente contra a perspectiva histórica dos fatos. Mas André Bazin explica e justifica perfeitamente a impertinência histórica dos westerns em função dos seus propósitos míticos – coisa, aliás, que qualquer mitologia sempre fez. O pensamento racional moderno pode criticar tais procedimentos, mas a Psicologia Analítica já demonstrou a sua importância para a saúde e evolução psicológica do ser humano.
O humanismo de John Ford busca integrar o aspecto verdadeiro do civilizado e o aspecto verdadeiro do natural, do selvagem. É a única maneira de escapar à barbárie: tanto a do mundo civilizado (o preconceito), quanto a do mundo natural (as chacinas promovidas pelos apaches). Ringo Kid e Dallas tornam-se assim, para o católico Ford, novíssimos Adão e Eva (o único casal realmente válido da diligência-arca), que partem para morar no rancho dele, justamente na fronteira (física e moral) entre o civilizado e o natural, na intersecção ainda mal definida entre o território do branco americano, o do índio e o do mexicano. Longe das “bênçãos” da civilização, mais próximos dos perigos do deserto; não obstante, buscando por conta própria sua própria adaptação, sua própria superação, criando e vivendo suas próprias vidas, numa nova e mais verdadeira civilização, integrada ao meio natural. Eis o novo Gênesis de John Ford.
Não é suficiente analisar a moral de No Tempo das Diligências pela ótica do individualismo. Não se trata de sujeitos que lutam contra o coletivo para melhor realizarem suas idiossincrasias pessoais. Para o cineasta, quando os valores da coletividade deixarem de corresponder aos valores do indivíduo, será a hora de se defender e estabelecer uma nova coletividade, purificando os seus valores. Quando passa a haver uma contradição entre os imerativos da Lei e aqueles da consciência individual, os indivíduos que preferirem manter e seguir suas próprias consciências serão logicamente expulsos, excluídos da “civilização”. E, uma vez que eles se tornam párias, cabe a eles estabelecer uma nova civilização, em algum lugar distante das zonas de decadência. Não é exatamente esse o mito de fundação dos Estados Unidos da América?
Para Ford, a América jovem (o oeste conquistado) não é imune ao germe de sua própria corrupção – cujos efeitos mais devastadores nós viemos acompanhando nos últimos oito anos. Assim, concomitante à explosão mundial da barbárie (1939, ano de início da Segunda Guerra Mundial), ele lança um filme que propõe a refundação da América já no momento mesmo de sua fundação. Mitologicamente, a refundação da civilização humana ou a refundação de cada indivíduo por si mesmo, antes que seja corrompido ou destruído pelas forças da barbárie. Em 1939, já era tarde demais para essas reflexões, mas e quanto a hoje? Chamo Bazin:
“Admirável ilustração dramática da parábola do fariseu e do publicano, No Tempo das Diligências, de John Ford, nos mostra que uma prostituta pode ser mais respeitável do que os beatos que a expulsaram da cidade e do que a mulher de um oficial; que um jogador debochado pode saber morrer com dignidade de aristocrata, que um médico bêbado pode praticar sua profissão com competência e abnegação; um fora-da-lei perseguido, por algum ajuste de contas passado e provavelmente futuro, dar provas de lealdade, de generosidade, de coragem e de delicadeza, enquanto um banqueiro considerável e considerado foge com o cofre.” O western ou o cinema americano por excelência
Todo tempo é tempo de conscientização, esclarecimento e discernimento. Inclusive – talvez principalmente – no tempo de desespero: seja durante uma perseguição por índios sanguinários, durante uma guerra mundial ou durante uma crise econômica global. Se um novo entendimento é possível, uma nova atitude é possível. Exceto para o banqueiro (caso perdido), mas incluindo na redenção e salvação a atitude final da mulher do oficial (Sra. Mallory), ao contrário do que Bazin pode dar a entender.
Mas não nos esqueçamos de que No Tempo das Diligências é, acima de tudo e antes de mais nada, cinema. Trata-se do filme que, reza a lenda, Orson Welles teria assistido 40 vezes antes de realizar Cidadão Kane (1941). A obra de John Ford é uma aula de cinema do primeiro ao último minuto de exibição. O espírito de pioneirismo do cineasta está presente, por exemplo, nas ousadias de colocar a câmera no chão, para que os cavalos passassem “por cima” dela em contra-plongée (ponto de vista que olha de baixo para cima); ou em colocar a câmera em cima da diligência, enquanto esta adentra um rio para atravessá-lo (a balsa havia sido destruída pelos índios). Outro belo exemplo da linguagem do cinema clássico está na cena em que a diligência é perseguida por muitos índios a cavalo. Os homens defendem-na com carabinas e revólveres, enquanto as duas mulheres se protegem como podem. Então, as munições começam a acabar. O jogador dândi, Hatfield, vê que lhe sobrou uma única bala no revólver.
Ele olha para o lado e vê a Sra. Mallory, desesperada, a rezar de olhos fechados. A câmera mantém um primeiro plano frontal no rosto dela. Vemos, então, o revólver do Sr. Hatfield se aproximar lentamente pela lateral, apontando para a cabeça da pobre mulher (metonímia magnífica, percebemos aí a extensão do caráter do “gambler”, o qual prefere ele mesmo matar a companheira do que permitir que ela seja torturada e assassinada brutalmente pelos índios). O revólver está prestes a disparar, quando ouvimos, ao mesmo tempo, o estampido de um tiro, o grito surdo do Sr. Hatfield e o som distante de cornetas militares. Vemos a mão soltar lentamente o revólver, os olhos da Sra. Mallory se abrirem e seu rosto expressar um sorriso, que logo se transforma numa alegria eufórica. A cavalaria acaba de chegar. Maneira sublime de a fé e a intervenção divina serem apresentadas no cinema. Não há, absolutamente, cenas como essa, com esse espírito estético e temático, no cinema contemporâneo.
Entretanto, a maior mostra da poesia cinematográfica de John Ford neste filme está em um outro momento. Num plano de conjunto, vemos a diligência (o ataque dos apaches ainda não tinha acontecido) pequenina e à grande distância, percorrendo o Monumental Valley. A câmera está aparentemente instalada no alto de um penhasco. Então, num rápido travelling lateral para a esquerda (e com grande susto para o espectador), a câmera revela a cavalaria indígena à beira de um penhasco, a observarem a diminuta diligência lá embaixo. A cena se repete (ênfase redundante que pode parecer ingênua hoje em dia). Neste único movimento de câmera, estão resumidas as questões filosóficas do filme, de que tratamos. O choque que se dá entre a civilização e a selvageria, entre o homem e a natureza, entre o conhecido e o desconhecido, entre o consciente e o ainda inconsciente; choque que se dá, entretanto, pela travessia, pela passagem de um a outro, o que pressupõe a união entre ambos. Duas posições tão distantes, em um mesmo espaço tão vasto, unidas por um único movimento da câmera-olho. A totalização do espaço. A totalização do mundo, do homem. E a transcendência.