Genial! As criaturas de George Romero contra as criaturas de George Martin... Agradecimentos ao Nefausto: www.nefausto.blogspot.com
sábado, março 31, 2007
quinta-feira, março 29, 2007
A Balada de Ira Hayes
Complementando o texto anteriormente aqui publicado sobre A Conquista da Honra ("Flags of our Fathers": EUA, 2006, dir.: Clint Eastwood), aqui vai a magnífica canção sobre o soldado Ira Hayes, escrita e interpretada pelo grande american crooner Johnny Cash:
The ballad of Ira Hayes
Ira Hayes,
Ira Hayes
Call him drunken Ira Hayes
He won't answer anymore
Not the whiskey drinkin' Indian
Nor the Marine that went to war
Gather round me people there's a story I would tell
About a brave young Indian you should remember well
From the land of the Pima Indian
A proud and noble band
Who farmed the Phoenix valley in Arizona land
Down the ditches for a thousand years
The water grew Ira's peoples' crops
'Till the white man stole the water rights
And the sparklin' water stopped
Now Ira's folks were hungry
And their land grew crops of weeds
When war came, Ira volunteered
And forgot the white man's greed
Call him drunken Ira Hayes
He won't answer anymore
Not the whiskey drinkin' Indian
Nor the Marine that went to war
There they battled up Iwo Jima's hill,
Two hundred and fifty men
But only twenty-seven lived to walk back down again
And when the fight was over
And when Old Glory raised
Among the men who held it high
Was the Indian, Ira Hayes
Call him drunken Ira Hayes
He won't answer anymore
Not the whiskey drinkin' Indian
Nor the Marine that went to war
Ira returned a hero
Celebrated through the land
He was wined and speeched and honored; Everybody shook his hand
But he was just a Pima Indian
No water, no crops, no chance
At home nobody cared what Ira'd done
And when did the Indians dance
Call him drunken Ira Hayes
He won't answer anymore
Not the whiskey drinkin' Indian
Nor the Marine that went to war
Then Ira started drinkin' hard;
Jail was often his home
They'd let him raise the flag and lower it
Like you'd throw a dog a bone!
He died drunk one mornin'
Alone in the land he fought to save
Two inches of water in a lonely ditch
Was a grave for Ira Hayes
Call him drunken Ira Hayes
He won't answer anymore
Not the whiskey drinkin' Indian
Nor the Marine that went to war
Yeah, call him drunken Ira Hayes
But his land is just as dry
And his ghost is lyin' thirsty
In the ditch where Ira died
terça-feira, março 27, 2007
Os 12 Trabalhos
Os motoboys em São Paulo são uma força social poderosa. É evidente a grande quantidade de motos de entrega que há; também é evidente a relação delicada que há entre esses motociclistas e os motoristas dos outros tipos de veículos: relação geralmente de indiferença ou ódio de ambas as partes. Mas tais evidências nos incomodam; nós não gostamos de motoboys, preferimos não vê-los ou despachá-los o mais rápido possível da nossa vista (ainda mais se formos os destinatários das entregas). É aí que deve entrar o cinema: para mostrar aquilo que todo mundo vê mas que ninguém quer ver. Para mostrar a óbvia mas desprezada dimensão humana de pessoas de cujo trabalho dependemos, mas ainda sim desprezamos. Para muitos cidadãos de bem dentro dos escritórios, o que importa é a rapidez da entrega, não interessa o que o motoboy faça para entregar a encomenda no lugar e na hora certa; essas pessoas nem sabem ou se preocupam em saber a quantidade de motoboys que se acidentam – às vezes morrem – no trânsito de São Paulo. Digo isso porque trabalhei anos como office-boy em escritórios, ao lado de motoboys. Também é fato que para muitos cidadãos de bem dentro de seus carros no complicado trânsito urbano (quantos deles seriam aqueles mesmos de quem falamos dentro dos escritórios?) os motoboys são uma verdadeira praga urbana, mal-educados, violentos, sempre fazendo “barbeiragens”.
Os motoboys são, desse modo, um tema social da mais alta atualidade e relevância. Um filme poderia escolher tratá-lo, basicamente, de três maneiras:
1. Através de um documentário. Isso já foi feito recentemente: Motoboys – Vida Loca. Brasil, 2003, dir.: Caíto Ortiz.
2. Através de uma ficção no tom de crônica cotidiana. O filme acompanharia, com um roteiro romanceado mas sem ambições narrativas muito altas, o dia-a-dia de um fictício motoboy em suas atividades mais comuns, servindo assim como retrato social “neo-realista”, possivelmente dotado de algum comentário pertinente (denúncia, crítica, homenagem, etc).
3. Através de uma ficção de vôos épicos e (ou) trágicos. Um filme assim carregaria seu motoboy mítico de simbologias que provocassem uma discussão mais profunda e abrangente do homem e da sociedade. É o que acontece com alguns filmes de Martin Scorsese: o taxista em Táxi Driver (1976) e o paramédico em Vivendo no Limite (1999).
É claro que uma obra cinematográfica poderia também unir em si os dois últimos gêneros (ou quem sabe os três) de modo rico, criativo e coerente. Infelizmente, não se enquadra direito em nenhum desses casos o filme Os 12 Trabalhos (Brasil, 2006, dir.: Ricardo Elias). A segunda película do diretor de De Passagem (2003) não se decide entre a mera crônica e o salto épico-mítico, nem junta as duas coisas de modo satisfatório. Na verdade, a fita é uma crônica do cotidiano com alguns toques mitológicos aos quais é dada a somente mínima significação, mas não se conectam a nada, nem levam a lugar algum.
A narrativa acompanha um dia na vida de Héracles (nome grego para Hércules, o famoso herói da mitologia clássica; quem quiser saber mais sobre ele e sobre os seus 12 trabalhos, eu recomendo o link http://www.daisuki.com.br/caio/mito/mtmito18.html), vivido por Sidney Santiago. O “jovem hércules”, recém-saído da Febem, é indicado por seu primo motoboy, Jonas (Flávio Bauraqui), para uma firma de entregas – a “Olimpo Express” (veja-se aí as duas referências à cultura clássica, juntamente com o título; pena que o filme não vai além delas, tampouco as aprofunda). Então, Héracles tem que provar a sua “competência” ao longo de um dia de trabalho em regime de experiência; depois disso, ele será efetivado – ou não. Bem... quem vê o filme já percebe o, digamos, “desacordo” que há entre este e o marketing que se fez sobre ele: no site oficial da produção, assim como em diversas sinopses, resenhas e até críticas está escrito que Heracles tem que realizar 12 (doze) trabalhos em um único dia para ser efetivado no emprego. Lendo essas coisas antes de ver o filme, eu já fui fazendo mentalmente as ligações com o magnífico mito de Hércules e criando uma grande e positiva expectativa em relação à história de Héracles. No entanto, quão grande foi a minha decepção ao ver o próprio filme e perceber que o enredo não é bem assim... Na verdade, ninguém chega para o jovem Héracles e lhe diz que terá de realizar doze trabalhos; esses trabalhos vão surgindo e se sucedendo naturalmente – alguns deles nem são trabalhos propriamente ditos, mas favores ou decisões próprias que o jovem motoboy toma. Enfim, são 12 tarefas, mas da maneira como o filme as coloca, poderiam ser 8 ou 20, não faria diferença. Mais do que frustrado, eu me senti enganado... acho que levei gato por lebre, pois o marketing, o título, o trailer, enfim, tudo sobre o filme fazia questão de chamar a atenção para e colocar em primeiro plano o mito dos 12 trabalhos de Hércules. Ainda estou estupefato de reconhecer que esta produção cinematográfica tem tão pouco do famoso mito clássico. Nem preciso dizer que cada um dos doze trabalhos de Héracles não lembra nem de longe nenhuma das doze tarefas que Hércules teve de cumprir; a não ser que enxerguemos equivalências entre o transporte do gatinho D’Artagnan e o transporte do cão Cérberus... Mas aí já seria demais! Convenhamos.
E o site oficial do filme ainda tem a pachorra de dizer que se trata de “uma releitura contemporânea do mito de Hércules” (!) Se é para fazer “releitura” assim, é melhor deixar os mitos antigos na paz de seu descanso eterno.
Continua no post abaixo.
Os motoboys são, desse modo, um tema social da mais alta atualidade e relevância. Um filme poderia escolher tratá-lo, basicamente, de três maneiras:
1. Através de um documentário. Isso já foi feito recentemente: Motoboys – Vida Loca. Brasil, 2003, dir.: Caíto Ortiz.
2. Através de uma ficção no tom de crônica cotidiana. O filme acompanharia, com um roteiro romanceado mas sem ambições narrativas muito altas, o dia-a-dia de um fictício motoboy em suas atividades mais comuns, servindo assim como retrato social “neo-realista”, possivelmente dotado de algum comentário pertinente (denúncia, crítica, homenagem, etc).
3. Através de uma ficção de vôos épicos e (ou) trágicos. Um filme assim carregaria seu motoboy mítico de simbologias que provocassem uma discussão mais profunda e abrangente do homem e da sociedade. É o que acontece com alguns filmes de Martin Scorsese: o taxista em Táxi Driver (1976) e o paramédico em Vivendo no Limite (1999).
É claro que uma obra cinematográfica poderia também unir em si os dois últimos gêneros (ou quem sabe os três) de modo rico, criativo e coerente. Infelizmente, não se enquadra direito em nenhum desses casos o filme Os 12 Trabalhos (Brasil, 2006, dir.: Ricardo Elias). A segunda película do diretor de De Passagem (2003) não se decide entre a mera crônica e o salto épico-mítico, nem junta as duas coisas de modo satisfatório. Na verdade, a fita é uma crônica do cotidiano com alguns toques mitológicos aos quais é dada a somente mínima significação, mas não se conectam a nada, nem levam a lugar algum.
A narrativa acompanha um dia na vida de Héracles (nome grego para Hércules, o famoso herói da mitologia clássica; quem quiser saber mais sobre ele e sobre os seus 12 trabalhos, eu recomendo o link http://www.daisuki.com.br/caio/mito/mtmito18.html), vivido por Sidney Santiago. O “jovem hércules”, recém-saído da Febem, é indicado por seu primo motoboy, Jonas (Flávio Bauraqui), para uma firma de entregas – a “Olimpo Express” (veja-se aí as duas referências à cultura clássica, juntamente com o título; pena que o filme não vai além delas, tampouco as aprofunda). Então, Héracles tem que provar a sua “competência” ao longo de um dia de trabalho em regime de experiência; depois disso, ele será efetivado – ou não. Bem... quem vê o filme já percebe o, digamos, “desacordo” que há entre este e o marketing que se fez sobre ele: no site oficial da produção, assim como em diversas sinopses, resenhas e até críticas está escrito que Heracles tem que realizar 12 (doze) trabalhos em um único dia para ser efetivado no emprego. Lendo essas coisas antes de ver o filme, eu já fui fazendo mentalmente as ligações com o magnífico mito de Hércules e criando uma grande e positiva expectativa em relação à história de Héracles. No entanto, quão grande foi a minha decepção ao ver o próprio filme e perceber que o enredo não é bem assim... Na verdade, ninguém chega para o jovem Héracles e lhe diz que terá de realizar doze trabalhos; esses trabalhos vão surgindo e se sucedendo naturalmente – alguns deles nem são trabalhos propriamente ditos, mas favores ou decisões próprias que o jovem motoboy toma. Enfim, são 12 tarefas, mas da maneira como o filme as coloca, poderiam ser 8 ou 20, não faria diferença. Mais do que frustrado, eu me senti enganado... acho que levei gato por lebre, pois o marketing, o título, o trailer, enfim, tudo sobre o filme fazia questão de chamar a atenção para e colocar em primeiro plano o mito dos 12 trabalhos de Hércules. Ainda estou estupefato de reconhecer que esta produção cinematográfica tem tão pouco do famoso mito clássico. Nem preciso dizer que cada um dos doze trabalhos de Héracles não lembra nem de longe nenhuma das doze tarefas que Hércules teve de cumprir; a não ser que enxerguemos equivalências entre o transporte do gatinho D’Artagnan e o transporte do cão Cérberus... Mas aí já seria demais! Convenhamos.
E o site oficial do filme ainda tem a pachorra de dizer que se trata de “uma releitura contemporânea do mito de Hércules” (!) Se é para fazer “releitura” assim, é melhor deixar os mitos antigos na paz de seu descanso eterno.
Continua no post abaixo.
continuação de Os 12 Trabalhos
Os 12 Trabalhos não consegue unir equilibradamente a crônica social leve e cotidiana, apegadas a personagens típicos e situações exemplares, com os elementos pesados que o filme procura trazer de mito, que pedem tintas mais épicas, trágicas e sobretudo alegóricas. A narrativa é legal, estimulante e envolvente, mas não tem a densidade que se poderia esperar tendo em vista as suas referências mitológicas, tendo em vista que se trata da “releitura” de um mito. Releitura bem frouxa esta. No aspecto de crônica, o filme é bem interessante, estão lá todos os elementos do universo dos motoboys, colocados de modo quase documental – aliás, são interessantes os comentários que Héracles faz sobre a vida e o destino de pessoas que ele encontra, mas esses comentários, feitos com voz em “off”, são extra-diegéticos (não fazem parte do universo representado pela narrativa), pois o personagem do jovem motoboy não tem como saber tanto sobre aquelas pessoas naquele momento; eis a veia de documentário do filme. Não obstante, os elementos míticos dados pelo título, pelo nome do protagonista e pelo marketing, exigem uma narrativa que vá além das ambições documentais.
O filme de Ricardo Elias tem vários momentos ricos em cinema e em significado: o diálogo em que um motoboy compara o mapa da cidade de São Paulo ao rosto de um cão – aliás, os outros motoboys são muito bem caracterizados; o jovem Héracles que não é só um “boy”, mas um artista (o filme poderia se desenvolver inteiramente em torno dessa premissa); a fotografia criativa de certos planos, particularmente no uso da profundidade de campo e na cena em que Héracles discute com um guarda de trânsito e a câmera permanece fixa no rosto do jovem motoboy (jamais chega-se a ver o policial). Infelizmente, os momentos bons não formam um todo denso e coerente, uma composição harmônica.
Os 12 Trabalhos faz bem o que faz, mas poderia fazer bem mais de acordo com suas próprias pretensões “míticas”. O filme literalmente deixa muito a desejar, principalmente no final. A narrativa poderia ser mais elaborada e amarrada, de preferência puxando para o épico ou para o trágico. Da maneira como está, o roteiro tem várias pontas soltas, como o diálogo no começo entre Héracles e um antigo companheiro de crime, em que este procura ao mesmo tempo seduzir e chantagear o jovem recém egresso da Febem a continuar na vida criminosa: o espectador fica ansioso para saber se o protagonista resistirá ou não a essa tentação, se conseguirá vencer a provação de um dia de trabalho e ser contratado, mas nada disso é mostrado ou sugerido com força suficiente à expectativa criada pelo começo do filme. Entendemos (será mesmo?) que Héracles conseguiu o emprego apenas porque o seu primo Jonas morreu (num acidente de trânsito), abrindo uma vaga para motoboy na Olimpo Express. Isso é muito pouco. Também é pouco o efeito causado pela morte de Jonas: Héracles pilota sua moto loucamente até a praia (supomos que isso se deve ao fato de o primo Jonas ter cultivado o sonho de se mudar para o litoral), olha para o mar e o filme termina (!?) É sofrível ver o protagonista explicando, nesta última cena, a raiz mitológica do seu nome (mas sem fazer qualquer referência aos “doze trabalhos de Hércules”). Isto é, o filme não explica adequadamente suas referências míticas ao longo da própria narrativa, de modo cinematográfico e coerente como seria de se esperar, e aí joga-se uma fala em “off” no final para “eliminar” quaisquer possíveis dúvidas que tenham permanecido no espectador... A única coisa que presta no desfecho é a forte e bela cena da troca de olhares tensos entre Héracles – já montado na moto e de capacete – e os seus colegas de firma. Cinematograficamente bela. Então, ele parte para o litoral. Seria muito forçado tentar justificar este final como dotado daquela concisão sugestiva que busca evitar o melodrama e o didatismo; não devemos confundir os elementos mal amarrados e mal resolvidos com os necessários implícitos de que toda (boa) narrativa não deve abrir mão. Mas este é Os 12 Trabalhos: dirigido com firmeza, mas com roteiro frouxo.
O ponto mais nevrálgico de toda esta questão é que não adianta colocar uns “toques” mitológicos para dar “ares” mais “cults” ao filme (é isso o que parece). É preciso trabalhar mais, com mais densidade e profundidade, e sobretudo com mais coerência (seja interna, seja externa, ou seja, mais de acordo com o mito original) as bases míticas da história, assim como quaisquer outras referências, citações e intertextualidades de que se carregue uma obra. Em tudo isso, Os 12 Trabalhos é bem pouco orgânico. Parece artificial e banal. Parece Matrix Reloaded e Matrix Revolutions. Para que apelar ao mito? Só para mostrar o heroísmo do jovem pobre em sua luta vital e diária? Essa idéia poderia ser transmitida melhor sem precisar recorrer de modo superficial e banalizante a referências “cultas”. Se se quer colocar elementos “cultos” em um filme, que se faça isso de modo denso (mas não desnecessariamente complicado, pois isso já seria esnobismo), alta e multiplamente significativo, e (de novo o mais importante) com coerência.
Para encerrar: Orfeu Negro (Fra, Bra, Ita, 1959, dir.: Marcel Camus) e O Pagador de Promessas (Brasil, 1962, dir.: Anselmo Duarte) são os dois grandes exemplos do que este Os 12 Trabalhos poderia ter sido, o primeiro se aproximando da mitologia clássica, o segundo tendo por base a mitologia cristã. Nesses dois clássicos do cinema, a densidade e a universalidade do mito trabalha por alçar o particular a esferas maravilhosas, ao mesmo tempo em que o particular concede dimensão humana, real e sensível ao mito. Se as aventuras de “Héracles” tivessem apenas 10% desse caráter...
O filme de Ricardo Elias tem vários momentos ricos em cinema e em significado: o diálogo em que um motoboy compara o mapa da cidade de São Paulo ao rosto de um cão – aliás, os outros motoboys são muito bem caracterizados; o jovem Héracles que não é só um “boy”, mas um artista (o filme poderia se desenvolver inteiramente em torno dessa premissa); a fotografia criativa de certos planos, particularmente no uso da profundidade de campo e na cena em que Héracles discute com um guarda de trânsito e a câmera permanece fixa no rosto do jovem motoboy (jamais chega-se a ver o policial). Infelizmente, os momentos bons não formam um todo denso e coerente, uma composição harmônica.
Os 12 Trabalhos faz bem o que faz, mas poderia fazer bem mais de acordo com suas próprias pretensões “míticas”. O filme literalmente deixa muito a desejar, principalmente no final. A narrativa poderia ser mais elaborada e amarrada, de preferência puxando para o épico ou para o trágico. Da maneira como está, o roteiro tem várias pontas soltas, como o diálogo no começo entre Héracles e um antigo companheiro de crime, em que este procura ao mesmo tempo seduzir e chantagear o jovem recém egresso da Febem a continuar na vida criminosa: o espectador fica ansioso para saber se o protagonista resistirá ou não a essa tentação, se conseguirá vencer a provação de um dia de trabalho e ser contratado, mas nada disso é mostrado ou sugerido com força suficiente à expectativa criada pelo começo do filme. Entendemos (será mesmo?) que Héracles conseguiu o emprego apenas porque o seu primo Jonas morreu (num acidente de trânsito), abrindo uma vaga para motoboy na Olimpo Express. Isso é muito pouco. Também é pouco o efeito causado pela morte de Jonas: Héracles pilota sua moto loucamente até a praia (supomos que isso se deve ao fato de o primo Jonas ter cultivado o sonho de se mudar para o litoral), olha para o mar e o filme termina (!?) É sofrível ver o protagonista explicando, nesta última cena, a raiz mitológica do seu nome (mas sem fazer qualquer referência aos “doze trabalhos de Hércules”). Isto é, o filme não explica adequadamente suas referências míticas ao longo da própria narrativa, de modo cinematográfico e coerente como seria de se esperar, e aí joga-se uma fala em “off” no final para “eliminar” quaisquer possíveis dúvidas que tenham permanecido no espectador... A única coisa que presta no desfecho é a forte e bela cena da troca de olhares tensos entre Héracles – já montado na moto e de capacete – e os seus colegas de firma. Cinematograficamente bela. Então, ele parte para o litoral. Seria muito forçado tentar justificar este final como dotado daquela concisão sugestiva que busca evitar o melodrama e o didatismo; não devemos confundir os elementos mal amarrados e mal resolvidos com os necessários implícitos de que toda (boa) narrativa não deve abrir mão. Mas este é Os 12 Trabalhos: dirigido com firmeza, mas com roteiro frouxo.
O ponto mais nevrálgico de toda esta questão é que não adianta colocar uns “toques” mitológicos para dar “ares” mais “cults” ao filme (é isso o que parece). É preciso trabalhar mais, com mais densidade e profundidade, e sobretudo com mais coerência (seja interna, seja externa, ou seja, mais de acordo com o mito original) as bases míticas da história, assim como quaisquer outras referências, citações e intertextualidades de que se carregue uma obra. Em tudo isso, Os 12 Trabalhos é bem pouco orgânico. Parece artificial e banal. Parece Matrix Reloaded e Matrix Revolutions. Para que apelar ao mito? Só para mostrar o heroísmo do jovem pobre em sua luta vital e diária? Essa idéia poderia ser transmitida melhor sem precisar recorrer de modo superficial e banalizante a referências “cultas”. Se se quer colocar elementos “cultos” em um filme, que se faça isso de modo denso (mas não desnecessariamente complicado, pois isso já seria esnobismo), alta e multiplamente significativo, e (de novo o mais importante) com coerência.
Para encerrar: Orfeu Negro (Fra, Bra, Ita, 1959, dir.: Marcel Camus) e O Pagador de Promessas (Brasil, 1962, dir.: Anselmo Duarte) são os dois grandes exemplos do que este Os 12 Trabalhos poderia ter sido, o primeiro se aproximando da mitologia clássica, o segundo tendo por base a mitologia cristã. Nesses dois clássicos do cinema, a densidade e a universalidade do mito trabalha por alçar o particular a esferas maravilhosas, ao mesmo tempo em que o particular concede dimensão humana, real e sensível ao mito. Se as aventuras de “Héracles” tivessem apenas 10% desse caráter...
segunda-feira, março 26, 2007
Mona Lisa e Madeleine
A Mona Lisa sempre me deu medo. Desde criança, quando eu olhava para aquele quadro e sentia um arrepio sutil, no fundo da alma, com aquele olhar em cima de mim como quem diz: “eu sei quem você é...” Quando cresci, e ganhei coragem para enfrentar aquele rosto, aquele busto e mãos tão calmos, porém, tão incisivos como se estivessem representados na linguagem corporal correspondente, percebi com espanto que o olhar zombeteiro e condescendente se desfazia tão logo eu mantivesse firme e sério o meu, como quem dissesse: “e aí, o que é que você quer de mim?” O poderoso olhar de Lisa passava rapidamente para o de uma tristeza, uma depressão profunda levemente revelada na superfície da face como uma ponta de iceberg, como uma melancolia apaixonada de quem diz: “eu sou fraca... por favor, me ajude...”
A vitalidade quieta, a naturalidade de Mona Lisa sempre me assombraram. Estudando a composição mais famosa de Leonardo da Vinci percebemos, como se estivéssemos diante do Mágico de Oz, os meios e razões desse assombro. O sopro de vida em Mona Lisa revela-se na técnica do “sfumato”, ou seja, ao misturar traços e cores de forma a se fazer uma passagem gradativa e vaga de uns aos outros, como se víssemos o quadro através de névoa e de sombras. As partes do rosto humano onde mais se percebe a expressão – e o seu significado – estão na face de Lisa envoltas em leves sombras: os cantos da boca e os cantos dos olhos. Isso dá a ela aquele caráter vago ou dissimulado que tanto nos incomoda – principalmente aos homens. Será este o mesmo mistério feminino que Machado de Assis tinha em mente ao compor sua Capitu de olhos de ressaca, oblíquos e dissimulados?
Mas não é só o “sfumato” que dá a vida peculiar e assombrosa à Mona Lisa. A assimetria entre os lados esquerdo e direito do quadro também contribui para o canto de sereia que a moça executa para nós. Tal assimetria percebe-se claramente no cenário onírico em que se coloca Lisa: é um truque inteligente de Leonardo para que passemos a régua ao meio do quadro e descubramos com susto a dupla face da moça. Com o lado esquerdo do lábio, ela zomba de nós; com o direito, ela revela sua própria fragilidade. Entretanto, o mais interessante é não “estudar” a Mona Lisa; apenas deixá-la exercer seus efeitos ambíguos e agradavelmente perturbadores em nosso inconsciente.
De Leonardo, não nos cansamos de admirar o irracional (a assimetria) calculada e sutilmente injetado no seio do racional (a composição como um todo, que é marca-registrada da Renascença). Leonardo conseguiu realizar o sonho mítico de toda arte e de toda forma de linguagem: transformar o significante em seu significado, aproximar a linguagem ao máximo do seu referente, dando vida a ela (é fantástico que neste particular, Leonardo seja mais sucedido até do que alguns cineastas – tendo-se o cinema como a mais “realista” das artes). Conforme diz E. H. Gombrich, na magnífica obra The Story of Art:
“Long ago, in the distant past, people had looked at portraits with awe, because they had thought that in preserving the likeness the artist could somehow preserve the soul of the person he portrayed. Now the great scientist, Leonardo, had made some of the dreams and fears of these first image-makers come true. He knew the spell which would infuse life into the colours spread by his magic brush.”
Continua no post abaixo.
A vitalidade quieta, a naturalidade de Mona Lisa sempre me assombraram. Estudando a composição mais famosa de Leonardo da Vinci percebemos, como se estivéssemos diante do Mágico de Oz, os meios e razões desse assombro. O sopro de vida em Mona Lisa revela-se na técnica do “sfumato”, ou seja, ao misturar traços e cores de forma a se fazer uma passagem gradativa e vaga de uns aos outros, como se víssemos o quadro através de névoa e de sombras. As partes do rosto humano onde mais se percebe a expressão – e o seu significado – estão na face de Lisa envoltas em leves sombras: os cantos da boca e os cantos dos olhos. Isso dá a ela aquele caráter vago ou dissimulado que tanto nos incomoda – principalmente aos homens. Será este o mesmo mistério feminino que Machado de Assis tinha em mente ao compor sua Capitu de olhos de ressaca, oblíquos e dissimulados?
Mas não é só o “sfumato” que dá a vida peculiar e assombrosa à Mona Lisa. A assimetria entre os lados esquerdo e direito do quadro também contribui para o canto de sereia que a moça executa para nós. Tal assimetria percebe-se claramente no cenário onírico em que se coloca Lisa: é um truque inteligente de Leonardo para que passemos a régua ao meio do quadro e descubramos com susto a dupla face da moça. Com o lado esquerdo do lábio, ela zomba de nós; com o direito, ela revela sua própria fragilidade. Entretanto, o mais interessante é não “estudar” a Mona Lisa; apenas deixá-la exercer seus efeitos ambíguos e agradavelmente perturbadores em nosso inconsciente.
De Leonardo, não nos cansamos de admirar o irracional (a assimetria) calculada e sutilmente injetado no seio do racional (a composição como um todo, que é marca-registrada da Renascença). Leonardo conseguiu realizar o sonho mítico de toda arte e de toda forma de linguagem: transformar o significante em seu significado, aproximar a linguagem ao máximo do seu referente, dando vida a ela (é fantástico que neste particular, Leonardo seja mais sucedido até do que alguns cineastas – tendo-se o cinema como a mais “realista” das artes). Conforme diz E. H. Gombrich, na magnífica obra The Story of Art:
“Long ago, in the distant past, people had looked at portraits with awe, because they had thought that in preserving the likeness the artist could somehow preserve the soul of the person he portrayed. Now the great scientist, Leonardo, had made some of the dreams and fears of these first image-makers come true. He knew the spell which would infuse life into the colours spread by his magic brush.”
Continua no post abaixo.
continuação de Mona Lisa e Madeleine
Não admira, assim, que haja tanta e tão variada mitologia em cima de seu mais famoso quadro. Os maiores artistas, de todos os tempos, têm essa competência de magos. A verdadeira transcendência da obra de arte não se dá através da mera recusa do real; mas sim, graças ao mergulho às profundezas mais secretas da realidade (daí o “cientista” Leonardo), onde se encontrará a vida, a alma, a razão das coisas e, conseqüentemente, se conquistará a competência necessária para reproduzi-las, “aprisionando” essa alma em uma obra artística. Há muitas obras, em todas as artes, proposital e vulgarmente “fantasmagóricas” que não são, entretanto, tão fantasmagóricas quanto a Mona Lisa. Nenhum monstro, ET ou criatura das trevas assusta tanto quanto a bem iluminada Lisa.
Esse poder de esconder e revelar (ambigüidade maravilhosa) sutil e inconscientemente o irreal por trás das aparências do real tem a ver com o que Freud chama de unheimlish (o “familiar e estranho” ao mesmo tempo) – e que estudamos num post recente a propósito do cinema “surreal” de David Lynch. É literalmente fantástico que a maior e mais conhecida obra da arte “realista” e “mimética” tenha, ao mesmo tempo, tamanho poder de sugestão, de transcendência, de assombroso que vai se derramando lentamente das beiras da “realidade”. Leonardo da Vinci é um gênio único.
Mas e quanto ao cinema? Na Sétima Arte talvez encontramos algo que, longe de se igualar à Mona Lisa, procura caminhar nos seus passos: falo da obra de Alfred Hitchcock – mestre da sugestão e do “unheimlish” – particularmente no filme Um Corpo que Cai (“Vertigo”, EUA, 1958). Na cena em que Judy volta ao seu apartamento, ainda tensa do encontro casual que teve com Scottie, e sabendo que ele ficara extremamente assombrado com a semelhança entre ela e seu antigo amor Madeleine (de quem Judy assumira a identidade num golpe do qual Scottie fora uma das vítimas), a câmera começa a rodar em volta do rosto de Judy, a partir da nuca até a sua face em cheio, e o espectador tem uma sensação similar de quando olha para a Mona Lisa: um “unheimlish” tão forte que quase se transforma em terror explícito... É incrível que o rosto da belíssima atriz Kim Novak possa despertar tais sensações.
Esse poder de esconder e revelar (ambigüidade maravilhosa) sutil e inconscientemente o irreal por trás das aparências do real tem a ver com o que Freud chama de unheimlish (o “familiar e estranho” ao mesmo tempo) – e que estudamos num post recente a propósito do cinema “surreal” de David Lynch. É literalmente fantástico que a maior e mais conhecida obra da arte “realista” e “mimética” tenha, ao mesmo tempo, tamanho poder de sugestão, de transcendência, de assombroso que vai se derramando lentamente das beiras da “realidade”. Leonardo da Vinci é um gênio único.
Mas e quanto ao cinema? Na Sétima Arte talvez encontramos algo que, longe de se igualar à Mona Lisa, procura caminhar nos seus passos: falo da obra de Alfred Hitchcock – mestre da sugestão e do “unheimlish” – particularmente no filme Um Corpo que Cai (“Vertigo”, EUA, 1958). Na cena em que Judy volta ao seu apartamento, ainda tensa do encontro casual que teve com Scottie, e sabendo que ele ficara extremamente assombrado com a semelhança entre ela e seu antigo amor Madeleine (de quem Judy assumira a identidade num golpe do qual Scottie fora uma das vítimas), a câmera começa a rodar em volta do rosto de Judy, a partir da nuca até a sua face em cheio, e o espectador tem uma sensação similar de quando olha para a Mona Lisa: um “unheimlish” tão forte que quase se transforma em terror explícito... É incrível que o rosto da belíssima atriz Kim Novak possa despertar tais sensações.
Contudo, ainda mais perturbadora do que essa cena é aquela em que Scottie, a muito custo, consegue fazer Judy vestir-se, maquiar-se e pentear-se como Madeleine. Sentado perto da janela do apartamento, ele a vê sair lentamente do banheiro e parar a uma certa distância, inundada pela luz verde, fortíssima e nevoenta que vem do letreiro no prédio da frente e que mal permite divisar a figura de Judy-Madeleine. Aqui, Hitchcock – à sua própria maneira (numa chave mais negativa e mais propositalmente irreal) – parece buscar aquele “sfumato” que dá vida espiritual e fantasmagórica a uma figura que se encontra, em mais de um sentido, perdida entre a ilusão e a realidade. Quem é Judy? Quem é Madeleine? Quem é Mona Lisa?
sexta-feira, março 23, 2007
Marcel Martin e a Linguagem Cinematográfica
No mercado editorial brasileiro existem vários livros, livretos e cartilhas de introdução à estética do cinema. No entanto, enquanto uns são por demais simplificados – como Estética de Cinema, de Gerald Breton –, outros são muito complicados – caso de A Estética do Filme, organizado por Jacques Aumont. Algumas obras são mais equilibradas, mas, mesmo assim, eu não as recomendaria para uma exata primeira aproximação ao universo da sétima arte: O Discurso Cinematográfico: a Opacidade e a Transparência, de Ismail Xavier, é um bom exemplo de obra acadêmica acessível, mas ainda assim acadêmica.
A Linguagem Cinematográfica, de Marcel Martin, é a melhor obra de introdução ao cinema que eu já pude encontrar. É a mais completa no que traz e explica de modo não esquemático, mas crítico e sobretudo apaixonado todos os elementos da gramática do filme. Marcel Martin não possui aquela sanha “cientificizante” dos semióticos fílmicos, como os do grupo de Jacques Aumont; a sua principal obra não é uma dissecação árida e esterilizante da arte cinematográfica, ela é carregada de um interesse vivo que desperta em quem lê uma paixão entusiasmada pelo universo do cinema e uma ansiedade por buscar e conhecer os grandes filmes clássicos que Martin sempre usa como exemplos de toda e qualquer explicação que queira dar.
Aqui vai um índice dos capítulos de “A Linguagem Cinematográfica”, que as edições mais antigas não trazem:
Introdução
I – Os caracteres gerais da imagem
II – O papel criador da câmera
III – A iluminação
IV – Os costumes (figurino) e os décors
V – As Elipses
VI – As transições
VII – Metáforas e símbolos
VIII – Os fenômenos sonoros
IX – A montagem
X – A profundidade de campo
XI – Os diálogos
XII – Processos secundários de narração
XIII – O tempo
XIV – O espaço
Conclusão
Repito: a dissertação de Marcel Martin não é tão esquemática, resumida e ingênua quanto a enumeração acima pode sugerir. O autor discute pormenorizadamente os temas e técnicas que propõe sempre exemplificando com cenas muito bem descritas de grandes filmes; apresenta os mais variados elementos da estilística do cinema sob os seus vários aspectos, lembrando-se sempre dos diversos pontos de vista estéticos e teóricos que há sobre eles: a obra é profusa de citações de e comentários sobre os diferentes teóricos do filme e suas respectivas idéias, estabelecendo relações e analogias, embora perceba-se que Martin apóia com especial carinho as posições de André Bazin e da fenomenologia cinematográfica, em particular o seu conterrâneo francês Henri Agel.
O único ponto a lamentar é que a edição original de “A Linguagem Cinematográfica” seja de 1955, ou seja, o último meio século de conquistas “lingüísticas” do cinema fica de fora. Mas nessa defasagem reside algo de interessante e peculiar: a obra de Marcel Martin é o melhor veículo de apresentação aos clássicos mais clássicos e mais absolutos da sétima arte.
Aqui vai um trecho extraído da Conclusão:
“O cinema não se encontra mais no estágio em que a técnica parecia uma coisa tão maravilhosa e surpreendente que os diretores não podiam deixar de pôr em relevo as novas aquisições: as inovações estrepitosas foram lentamente substituídas pela sobriedade de expressão. Todavia, não obstante, em numerosos filmes “os efeitos” da técnica ou da montagem procuram distrair o espectador para desviar melhor seu juízo crítico e impedi-lo de compreender a vacuidade do argumento; a admiração por estes “efeitos” faz também com que o espectador ache lentos ou aborrecidos os filmes em que a técnica está submetida ao drama e em que a narração manifesta sua maestria por sua clareza e adequação ao desenvolvimento psicológico. Na realidade, o drama principal é a falta total de interesse humano na maioria dos filmes e, além disso, a necessidade vital de encontrar a adequação, já citada anteriormente, do conteúdo e da forma; tudo isto faz com que os realizadores sintam-se tentados a substituir as idéias pela técnica, que então aparece vazia.
Consideremos o Encouraçado Potemkim para ilustrar este problema. Por que este filme é considerado como um dos melhores do mundo, enquanto a maioria dos seus contemporâneos, quaisquer que sejam suas qualidades, envelheceram mais ou menos? É devido, em primeiro lugar, a que seu conteúdo humano é perfeitamente válido hoje em dia, porém especialmente ao estilo de narração empregado por Eisenstein. Este estilo caracteriza-se por uma técnica magistral, porém notavelmente assimilada e dominada. Sua clareza, sua flexibilidade, sua simplicidade, perfeitamente adequadas à mensagem otimista do drama, valeram ao filme seu triunfo excepcional e o prestígio inigualável que conserva trinta anos depois (lembremos que o texto de Marcel Martin é de 1955).”
É fato notório que a maioria das grandes obras, de qualquer forma de arte e de qualquer tempo, sabem aliar o “conteúdo humano perfeitamente válido” à “técnica magistral”. É natural que os padrões técnicos e temáticos – e o gosto por eles – podem variar bastante, mas a grande obra sempre encontra um ponto razoável de equilíbrio entre a forma e o conteúdo. Também é fato notável que muitas obras de arte que pendem demais para a técnica ou demais para o conteúdo fazem sucesso tremendo em suas próprias épocas, de acordo com as modas estéticas ou ideológicas. Mas o fato que mais se deve notar – e que dificilmente se nota – é que tais obras não costumam sobreviver ao seu próprio espetáculo: elas passam juntamente com os modismos aos quais tanto se apegam.
“Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”, conforme dizia Camões. A arte que sobrevive a tais mudanças é aquela arte que transcende, a arte que empreende um mergulho profundo e equilibrado rumo ao Universal. “O Encouraçado Potemkim” é uma obra-prima porque seu conteúdo vai muito além da propaganda ideológica de um regime político empreendida por um Estado que já não existe mais; o filme também vai além dos cacoetes estilísticos de uma determinada escola cinematográfica (por mais que gostemos pessoalmente de tais “cacoetes”). Para melhor apreciarmos “Potemkim”, devemos abordá-lo com a inteligência e a sensibilidade desarmadas: só assim será possível que o filme nos preencha com a sua grandeza humana; e assim também melhor entenderemos a sua estética.
A Linguagem Cinematográfica, de Marcel Martin, é a melhor obra de introdução ao cinema que eu já pude encontrar. É a mais completa no que traz e explica de modo não esquemático, mas crítico e sobretudo apaixonado todos os elementos da gramática do filme. Marcel Martin não possui aquela sanha “cientificizante” dos semióticos fílmicos, como os do grupo de Jacques Aumont; a sua principal obra não é uma dissecação árida e esterilizante da arte cinematográfica, ela é carregada de um interesse vivo que desperta em quem lê uma paixão entusiasmada pelo universo do cinema e uma ansiedade por buscar e conhecer os grandes filmes clássicos que Martin sempre usa como exemplos de toda e qualquer explicação que queira dar.
Aqui vai um índice dos capítulos de “A Linguagem Cinematográfica”, que as edições mais antigas não trazem:
Introdução
I – Os caracteres gerais da imagem
II – O papel criador da câmera
III – A iluminação
IV – Os costumes (figurino) e os décors
V – As Elipses
VI – As transições
VII – Metáforas e símbolos
VIII – Os fenômenos sonoros
IX – A montagem
X – A profundidade de campo
XI – Os diálogos
XII – Processos secundários de narração
XIII – O tempo
XIV – O espaço
Conclusão
Repito: a dissertação de Marcel Martin não é tão esquemática, resumida e ingênua quanto a enumeração acima pode sugerir. O autor discute pormenorizadamente os temas e técnicas que propõe sempre exemplificando com cenas muito bem descritas de grandes filmes; apresenta os mais variados elementos da estilística do cinema sob os seus vários aspectos, lembrando-se sempre dos diversos pontos de vista estéticos e teóricos que há sobre eles: a obra é profusa de citações de e comentários sobre os diferentes teóricos do filme e suas respectivas idéias, estabelecendo relações e analogias, embora perceba-se que Martin apóia com especial carinho as posições de André Bazin e da fenomenologia cinematográfica, em particular o seu conterrâneo francês Henri Agel.
O único ponto a lamentar é que a edição original de “A Linguagem Cinematográfica” seja de 1955, ou seja, o último meio século de conquistas “lingüísticas” do cinema fica de fora. Mas nessa defasagem reside algo de interessante e peculiar: a obra de Marcel Martin é o melhor veículo de apresentação aos clássicos mais clássicos e mais absolutos da sétima arte.
Aqui vai um trecho extraído da Conclusão:
“O cinema não se encontra mais no estágio em que a técnica parecia uma coisa tão maravilhosa e surpreendente que os diretores não podiam deixar de pôr em relevo as novas aquisições: as inovações estrepitosas foram lentamente substituídas pela sobriedade de expressão. Todavia, não obstante, em numerosos filmes “os efeitos” da técnica ou da montagem procuram distrair o espectador para desviar melhor seu juízo crítico e impedi-lo de compreender a vacuidade do argumento; a admiração por estes “efeitos” faz também com que o espectador ache lentos ou aborrecidos os filmes em que a técnica está submetida ao drama e em que a narração manifesta sua maestria por sua clareza e adequação ao desenvolvimento psicológico. Na realidade, o drama principal é a falta total de interesse humano na maioria dos filmes e, além disso, a necessidade vital de encontrar a adequação, já citada anteriormente, do conteúdo e da forma; tudo isto faz com que os realizadores sintam-se tentados a substituir as idéias pela técnica, que então aparece vazia.
Consideremos o Encouraçado Potemkim para ilustrar este problema. Por que este filme é considerado como um dos melhores do mundo, enquanto a maioria dos seus contemporâneos, quaisquer que sejam suas qualidades, envelheceram mais ou menos? É devido, em primeiro lugar, a que seu conteúdo humano é perfeitamente válido hoje em dia, porém especialmente ao estilo de narração empregado por Eisenstein. Este estilo caracteriza-se por uma técnica magistral, porém notavelmente assimilada e dominada. Sua clareza, sua flexibilidade, sua simplicidade, perfeitamente adequadas à mensagem otimista do drama, valeram ao filme seu triunfo excepcional e o prestígio inigualável que conserva trinta anos depois (lembremos que o texto de Marcel Martin é de 1955).”
É fato notório que a maioria das grandes obras, de qualquer forma de arte e de qualquer tempo, sabem aliar o “conteúdo humano perfeitamente válido” à “técnica magistral”. É natural que os padrões técnicos e temáticos – e o gosto por eles – podem variar bastante, mas a grande obra sempre encontra um ponto razoável de equilíbrio entre a forma e o conteúdo. Também é fato notável que muitas obras de arte que pendem demais para a técnica ou demais para o conteúdo fazem sucesso tremendo em suas próprias épocas, de acordo com as modas estéticas ou ideológicas. Mas o fato que mais se deve notar – e que dificilmente se nota – é que tais obras não costumam sobreviver ao seu próprio espetáculo: elas passam juntamente com os modismos aos quais tanto se apegam.
“Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”, conforme dizia Camões. A arte que sobrevive a tais mudanças é aquela arte que transcende, a arte que empreende um mergulho profundo e equilibrado rumo ao Universal. “O Encouraçado Potemkim” é uma obra-prima porque seu conteúdo vai muito além da propaganda ideológica de um regime político empreendida por um Estado que já não existe mais; o filme também vai além dos cacoetes estilísticos de uma determinada escola cinematográfica (por mais que gostemos pessoalmente de tais “cacoetes”). Para melhor apreciarmos “Potemkim”, devemos abordá-lo com a inteligência e a sensibilidade desarmadas: só assim será possível que o filme nos preencha com a sua grandeza humana; e assim também melhor entenderemos a sua estética.
Infelizmente, tamanho “desarme” não é muito bem visto pelas inteligências contemporâneas. Palavras como “Universal”, “Transcendência” e “Arte” (com A maiúsculo) provocam comichões que irritam muitas pessoas esclarecidas de nosso tempo. É uma pena. Mas não dá pra dizer nada. Só o futuro poderá falar melhor sobre a nossa era e sobre a quantidade e qualidade de “obras-primas” artísticas que ela produzirá. Por enquanto, leiamos Marcel Martin.
quinta-feira, março 22, 2007
Babel
O mundo inteiro falava a mesma língua, com as mesmas palavras. Ao emigrar do oriente, os homens encontraram uma planície no país de Senaar, e aí se estabeleceram. E disseram uns aos outros: “Vamos fazer tijolos e cozê-los no fogo!” Utilizaram tijolos em vez de pedras, e piche no lugar de argamassa. Disseram: “Vamos construir uma cidade e uma torre que chegue até o céu, para ficarmos famosos e não nos dispersarmos pela superfície da terra”.
Então Javé desceu para ver a cidade e a torre que os homens estavam construindo. E Javé disse: “Eles são um povo só e falam uma só língua. Isso é apenas o começo de seus empreendimentos. Agora, nenhum projeto será irrealizável para eles. Vamos descer e confundir a língua deles, para que um não entenda a língua do outro”.
Javé os espalhou daí para toda a superfície da terra, e eles pararam de construir a cidade. Por isso, a cidade recebeu o nome de Babel, pois foi aí que Javé confundiu a língua de todos os habitantes da terra, e foi daí que ele os espalhou por toda a superfície da terra. Gênesis 11, 1-9
É fascinante a universalidade do mito da Torre de Babel. Ele é ainda mais significativo em nossos prepotentes dias de “globalização”. Com tudo isso, é ainda mais estimulante imaginar o que o diretor de Amores Brutos (2000) e de 21 Gramas (2003) poderia fazer estabelecendo tais relações. Quão grande e bela seria a tragédia da nova Babel, expressa na visão fatalista e na narrativa não-linear, multi-facetada e fragmentária, com a fotografia e montagem nervosas que mostram a identidade do diretor Alejandro González Iñarrítu.
Não obstante, assistir a Babel (2006) é vislumbrar um potencial não-realizado, tal qual a masturbação do jovem pastor marroquino que, literalmente, dará o tiro inicial que ricocheteará pondo em movimento toda a história do filme. Assim como aquela masturbação, o tiro dado é uma atitude consciente, dotada de um propósito fixo e de um resultado esperado, porém... o ato é tão mal calculado que posteriormente só termos a lamentar tamanha pretensão. O tiro saiu pela culatra.
Atitudes mal calculadas perpassam “Babel” de cima a baixo. O caçador japonês que dá de presente seu rifle a um montanhês marroquino; o montanhês que vende esse rifle a um pastor; o pastor que dá o famigerado rifle nas mãos de seus filhos, para que matem os chacais que ameaçam as cabras; os filhos que usam o rifle para brincar, especialmente um deles, que faz tiro ao alvo em um ônibus de turistas; o marido da turista americana alvejada, que não dá folga para a babá dos seus filhos, mesmo sendo o dia do casamento do filho desta; a baba que, então, decide levar os filhos do patrão até o México. Por fim, um tanto quanto à parte, a filha do caçador japonês, adolescente surda-muda que toma medidas desesperadas para cortejar os homens de cujas carícias ela tanto necessita...
As conseqüências de tudo isso serão tão amplas e drásticas que nos assoma à mente a palavra tragédia. Contudo, diferentemente da tragédia clássica, esta aqui está exclusivamente nas mãos dos homens. Não há deuses caprichosos e impiedosos. Não há Prometeu que ajude os homens a construir Babel, mas também não há Javé que os puna por tal ousadia. Este filme poderia ser chamado mais adequadamente de uma “tragédia de erros”, porque de comédia não há sequer um risco de sombra. A não ser que entendamos “comédia” segundo Dante (A Divina Comédia) ou Balzac (A Comédia Humana). Talvez pendamos mais para Balzac.
Enfim, a nova produção de Alejandro González Iñarrítu discursa sobre atitudes mal calculadas e o seu próprio discurso é também uma atitude mal calculada. O filme em si é burocrático e cansativo, parece ter saído de cartilhas de roteiro, de linguagem cinematográfica, de antropologia, de psicologia, etc. A fita choca e entedia, particulariza e banaliza a um só tempo, de um modo que nos faz lembrar dos noticiários cotidianos em jornais e telejornais. É uma obra frouxa, não esperava isso do diretor de “Amores Brutos” e de “21 Gramas”.
“Babel” parece não se preocupar em realizar o potencial trágico e dramático de seu enredo e dos seus personagens. É raso, mas com águas turvadas artificialmente para parecerem profundas. É de um academicismo “pop”: não aprofunda a discussão dos problemas sequer propõe soluções. Desse jeito, talvez até agrade a jornalistas da CNN, cinéfilos esnobes, jovens universitários prepotentes e professores de geografia, de sociologia ou de atualidades que talvez queiram exibir o filme aos seus alunos com conhecimento de mundo defasado.
Mas quem não é iniciante, nem queira iniciar os outros, não se interessará muito por “Babel”. Não bastam “conteúdo” e “técnica” para se fazer uma obra de arte. É necessário colocar nela um certo tipo de sensibilidade, de sublime (e aprofundá-los sem exagerá-los), que façam transcender o caráter de noticiário, de tese, sob pena de o filme ficar demasiadamente artificial. Por isso, a única coisa que se salva é a parte “japonesa”. Ela daria um (ótimo) filme à parte, só ela tem algo desse “éter” que as boas obras artísticas possuem. Parte dele vem da atriz Rinko Kikuchi, indicada ao Globo de Ouro e ao Oscar pelo papel de Chieko. O próprio fato dessa estória parecer estar um tanto distante das outras (não no espaço mas na semântica, digamos assim) revela a sua superioridade e a desigualdade do filme: juntando as várias narrativas encadeadas, a japonesa é a que mais pesa, sem que haja uma explicação digamos orgânica para isso, ou seja, o drama da jovem surda-muda não tem relações muito próximas com o resto do filme. A não ser, é claro, se pensarmos na questão das atitudes mal calculadas e no problema da incomunicabilidade. Mas é aí que perceberemos o como a parte japonesa é melhor do que as outras... Ainda bem que o filme termina com ela! (Numa cena belíssima, aliás)
É fascinante a universalidade do mito da Torre de Babel. Ele é ainda mais significativo em nossos prepotentes dias de “globalização”. Com tudo isso, é ainda mais estimulante imaginar o que o diretor de Amores Brutos (2000) e de 21 Gramas (2003) poderia fazer estabelecendo tais relações. Quão grande e bela seria a tragédia da nova Babel, expressa na visão fatalista e na narrativa não-linear, multi-facetada e fragmentária, com a fotografia e montagem nervosas que mostram a identidade do diretor Alejandro González Iñarrítu.
Não obstante, assistir a Babel (2006) é vislumbrar um potencial não-realizado, tal qual a masturbação do jovem pastor marroquino que, literalmente, dará o tiro inicial que ricocheteará pondo em movimento toda a história do filme. Assim como aquela masturbação, o tiro dado é uma atitude consciente, dotada de um propósito fixo e de um resultado esperado, porém... o ato é tão mal calculado que posteriormente só termos a lamentar tamanha pretensão. O tiro saiu pela culatra.
Atitudes mal calculadas perpassam “Babel” de cima a baixo. O caçador japonês que dá de presente seu rifle a um montanhês marroquino; o montanhês que vende esse rifle a um pastor; o pastor que dá o famigerado rifle nas mãos de seus filhos, para que matem os chacais que ameaçam as cabras; os filhos que usam o rifle para brincar, especialmente um deles, que faz tiro ao alvo em um ônibus de turistas; o marido da turista americana alvejada, que não dá folga para a babá dos seus filhos, mesmo sendo o dia do casamento do filho desta; a baba que, então, decide levar os filhos do patrão até o México. Por fim, um tanto quanto à parte, a filha do caçador japonês, adolescente surda-muda que toma medidas desesperadas para cortejar os homens de cujas carícias ela tanto necessita...
As conseqüências de tudo isso serão tão amplas e drásticas que nos assoma à mente a palavra tragédia. Contudo, diferentemente da tragédia clássica, esta aqui está exclusivamente nas mãos dos homens. Não há deuses caprichosos e impiedosos. Não há Prometeu que ajude os homens a construir Babel, mas também não há Javé que os puna por tal ousadia. Este filme poderia ser chamado mais adequadamente de uma “tragédia de erros”, porque de comédia não há sequer um risco de sombra. A não ser que entendamos “comédia” segundo Dante (A Divina Comédia) ou Balzac (A Comédia Humana). Talvez pendamos mais para Balzac.
Enfim, a nova produção de Alejandro González Iñarrítu discursa sobre atitudes mal calculadas e o seu próprio discurso é também uma atitude mal calculada. O filme em si é burocrático e cansativo, parece ter saído de cartilhas de roteiro, de linguagem cinematográfica, de antropologia, de psicologia, etc. A fita choca e entedia, particulariza e banaliza a um só tempo, de um modo que nos faz lembrar dos noticiários cotidianos em jornais e telejornais. É uma obra frouxa, não esperava isso do diretor de “Amores Brutos” e de “21 Gramas”.
“Babel” parece não se preocupar em realizar o potencial trágico e dramático de seu enredo e dos seus personagens. É raso, mas com águas turvadas artificialmente para parecerem profundas. É de um academicismo “pop”: não aprofunda a discussão dos problemas sequer propõe soluções. Desse jeito, talvez até agrade a jornalistas da CNN, cinéfilos esnobes, jovens universitários prepotentes e professores de geografia, de sociologia ou de atualidades que talvez queiram exibir o filme aos seus alunos com conhecimento de mundo defasado.
Mas quem não é iniciante, nem queira iniciar os outros, não se interessará muito por “Babel”. Não bastam “conteúdo” e “técnica” para se fazer uma obra de arte. É necessário colocar nela um certo tipo de sensibilidade, de sublime (e aprofundá-los sem exagerá-los), que façam transcender o caráter de noticiário, de tese, sob pena de o filme ficar demasiadamente artificial. Por isso, a única coisa que se salva é a parte “japonesa”. Ela daria um (ótimo) filme à parte, só ela tem algo desse “éter” que as boas obras artísticas possuem. Parte dele vem da atriz Rinko Kikuchi, indicada ao Globo de Ouro e ao Oscar pelo papel de Chieko. O próprio fato dessa estória parecer estar um tanto distante das outras (não no espaço mas na semântica, digamos assim) revela a sua superioridade e a desigualdade do filme: juntando as várias narrativas encadeadas, a japonesa é a que mais pesa, sem que haja uma explicação digamos orgânica para isso, ou seja, o drama da jovem surda-muda não tem relações muito próximas com o resto do filme. A não ser, é claro, se pensarmos na questão das atitudes mal calculadas e no problema da incomunicabilidade. Mas é aí que perceberemos o como a parte japonesa é melhor do que as outras... Ainda bem que o filme termina com ela! (Numa cena belíssima, aliás)
sexta-feira, março 16, 2007
A Conquista da Honra
O poder da imagem. A necessidade da imagem. Todos nós precisamos da imagem-mito para assimilarmos um fato ou uma idéia, e, principalmente, para podermos tomar uma atitude em relação a fatos ou idéias. Daí o poder e a necessidade da publicidade. E também o poder e a necessidade do cinema.
O poder do mito. A necessidade do mito.
A publicidade usa a imagem do herói-mito para vender os valores que ele representa; o cinema usa esses mesmos valores representados para nos chamar a atenção ao mero homem que (mal ou sequer) os encarna de fato. Já não há heróis, apenas homens. Eis uma fundamental diferença entre arte e publicidade.
Pois nós não temos necessidade de heroísmos. Apenas de heróis. Heroísmo é uma atitude que, tomada, passa muitas vezes desapercebida, porque não estamos lá para observar atitudes, e sim pessoas. O herói é uma construção. Construção mítica. O herói é sempre construído pelo outro, que projeta – compulsoriamente até – seus próprios valores na figura de um “pobre coitado” que, de repente, se vê aclamado e erguido aos mais altos pedestais. Que efeito isso trará ao simples sujeito-homem tomado de repente como “herói”?
Eis a grande preocupação e o grande valor de A Conquista da Honra (“Flags of our Fathers”: EUA, 2006, dir.: Clint Eastwood). Mais do que esmiuçar o complicado e problemático processo de construção do mito, mais do que revelar e pesar as distâncias que há entre o mito e a realidade (o mito é sempre uma mistura de real e ilusão), mais do que trazer à luz os heróis reais e não-creditados, o novo filme de Clint Eastwood coloca aos nossos olhos – com a emotividade sóbria característica do diretor – o efeito devastador que a necessidade coletiva de heróis exerce sobre o indivíduo-“herói”. Nesse aspecto, a personagem do “Chief” Ira Hayes (Adam Beach), soldado índio, e o destaque que o filme dá a ele, são terrivelmente belos e altamente significativos – especialmente por se tratar de um índio norte-americano. Só isso já daria um grande romance; reconhecemos em Ira Hayes um perfeito “herói” romanesco.
Vemos o filme de boca aberta ao testemunhar o absurdo do culto àqueles “heróis”; culto, entretanto, necessário psicológica e socialmente: os heróis embarcam numa absurda turnê pelos EUA para elevar o moral da nação e fazê-la investir seu dinheiro nos altos custos que a guerra exige para ser vencida. Toda essa grandeza que beira as raias do absurdo – às vezes do ridículo (como na representação do “heróico” hasteamento da bandeira, sobre um monte de papel marchê num estádio de futebol lotado) contrasta gritantemente com a pequenez apenas humana dos indivíduos “heroicizados”. Ao ser inquirido se a cena da famosa foto da colocação da bandeira sobre a montanha em Iwo Jima não passava de uma encenação, o soldado-“herói” John “Doc” Bradley (Ryan Phillipe) diz que, se soubesse que aquela foto seria tirada, teria saído de lá correndo, para longe.
Eis o “mito”. O mito, de acordo com a sua função pedagógica, não precisa ter qualquer coerência com a “realidade”. Todos os mitos são carregados de fantasia; partem, é certo, de um dado real, mas a fantasia é tanto mais carregada quanto mais se quer que o mito seja “eficiente”. Para que o mito funcione, os cidadãos norte-americanos que viram aquela foto de Iwo Jima não precisam saber a verdade sobre aquele acontecimento ou sobre as pessoas nele envolvidas. Basta o poder da foto como imagem em si e o que ela sugere. É uma lógica cruel, mas todas as mitologias com os seus altos e diversos valores são baseadas nela.
Mas e quanto aos soldados presentes na foto? Para eles, a lógica do mito não funciona, eles não conseguem de maneira alguma conviver com ela, pois eles não têm como se esquecer da “verdade” de quem são e o que fizeram, o que aconteceu realmente. Algumas pessoas até poderiam abraçar o jogo e encarnar cinicamente o mito. Mas não aqueles soldados, especialmente Ira Hayes. A fenomenologia do mito é curiosa: o mito é algo que está nos olhos do outro, que serve exclusivamente ao outro, e nunca ao próprio eu-mito. O eu-mito sabe que não passa de um ser humano, um soldado, um garoto que nada mais fez do que tentar não ser morto na guerra, tentando também evitar que fossem mortos os seus companheiros de batalha e amigos mais imediatos.
A irrealidade do mito e a sua função real: a bandeira hasteada quando a batalha ainda estava longe de ser vencida serve para levantar o moral das tropas; a foto tirada dessa bandeira levantará o moral de toda a nação. Essa bandeira não significa a vitória, mas ao mesmo tempo significa sim a vitória, pois a luta pela vitória exige espíritos entusiasmados e recursos financeiros, no que a tal bandeira ajudará grandemente.
O poder do mito. A necessidade do mito.
A publicidade usa a imagem do herói-mito para vender os valores que ele representa; o cinema usa esses mesmos valores representados para nos chamar a atenção ao mero homem que (mal ou sequer) os encarna de fato. Já não há heróis, apenas homens. Eis uma fundamental diferença entre arte e publicidade.
Pois nós não temos necessidade de heroísmos. Apenas de heróis. Heroísmo é uma atitude que, tomada, passa muitas vezes desapercebida, porque não estamos lá para observar atitudes, e sim pessoas. O herói é uma construção. Construção mítica. O herói é sempre construído pelo outro, que projeta – compulsoriamente até – seus próprios valores na figura de um “pobre coitado” que, de repente, se vê aclamado e erguido aos mais altos pedestais. Que efeito isso trará ao simples sujeito-homem tomado de repente como “herói”?
Eis a grande preocupação e o grande valor de A Conquista da Honra (“Flags of our Fathers”: EUA, 2006, dir.: Clint Eastwood). Mais do que esmiuçar o complicado e problemático processo de construção do mito, mais do que revelar e pesar as distâncias que há entre o mito e a realidade (o mito é sempre uma mistura de real e ilusão), mais do que trazer à luz os heróis reais e não-creditados, o novo filme de Clint Eastwood coloca aos nossos olhos – com a emotividade sóbria característica do diretor – o efeito devastador que a necessidade coletiva de heróis exerce sobre o indivíduo-“herói”. Nesse aspecto, a personagem do “Chief” Ira Hayes (Adam Beach), soldado índio, e o destaque que o filme dá a ele, são terrivelmente belos e altamente significativos – especialmente por se tratar de um índio norte-americano. Só isso já daria um grande romance; reconhecemos em Ira Hayes um perfeito “herói” romanesco.
Vemos o filme de boca aberta ao testemunhar o absurdo do culto àqueles “heróis”; culto, entretanto, necessário psicológica e socialmente: os heróis embarcam numa absurda turnê pelos EUA para elevar o moral da nação e fazê-la investir seu dinheiro nos altos custos que a guerra exige para ser vencida. Toda essa grandeza que beira as raias do absurdo – às vezes do ridículo (como na representação do “heróico” hasteamento da bandeira, sobre um monte de papel marchê num estádio de futebol lotado) contrasta gritantemente com a pequenez apenas humana dos indivíduos “heroicizados”. Ao ser inquirido se a cena da famosa foto da colocação da bandeira sobre a montanha em Iwo Jima não passava de uma encenação, o soldado-“herói” John “Doc” Bradley (Ryan Phillipe) diz que, se soubesse que aquela foto seria tirada, teria saído de lá correndo, para longe.
Eis o “mito”. O mito, de acordo com a sua função pedagógica, não precisa ter qualquer coerência com a “realidade”. Todos os mitos são carregados de fantasia; partem, é certo, de um dado real, mas a fantasia é tanto mais carregada quanto mais se quer que o mito seja “eficiente”. Para que o mito funcione, os cidadãos norte-americanos que viram aquela foto de Iwo Jima não precisam saber a verdade sobre aquele acontecimento ou sobre as pessoas nele envolvidas. Basta o poder da foto como imagem em si e o que ela sugere. É uma lógica cruel, mas todas as mitologias com os seus altos e diversos valores são baseadas nela.
Mas e quanto aos soldados presentes na foto? Para eles, a lógica do mito não funciona, eles não conseguem de maneira alguma conviver com ela, pois eles não têm como se esquecer da “verdade” de quem são e o que fizeram, o que aconteceu realmente. Algumas pessoas até poderiam abraçar o jogo e encarnar cinicamente o mito. Mas não aqueles soldados, especialmente Ira Hayes. A fenomenologia do mito é curiosa: o mito é algo que está nos olhos do outro, que serve exclusivamente ao outro, e nunca ao próprio eu-mito. O eu-mito sabe que não passa de um ser humano, um soldado, um garoto que nada mais fez do que tentar não ser morto na guerra, tentando também evitar que fossem mortos os seus companheiros de batalha e amigos mais imediatos.
A irrealidade do mito e a sua função real: a bandeira hasteada quando a batalha ainda estava longe de ser vencida serve para levantar o moral das tropas; a foto tirada dessa bandeira levantará o moral de toda a nação. Essa bandeira não significa a vitória, mas ao mesmo tempo significa sim a vitória, pois a luta pela vitória exige espíritos entusiasmados e recursos financeiros, no que a tal bandeira ajudará grandemente.
Todo o filme baila, no passo poético característico de Clint Eastwood, entre a dimensão real e a irreal do mito. Nisso, há cenas belas e grandes em significação, como a já discutida representação no estádio lotado, mas também o sorvete oferecido aos heróis, no formato escultural da famosa foto, sendo despejado sobre ele calda vermelha de morango – morango-sangue que vai desfazendo os soldados-sorvete que tanto derramaram o seu próprio na guerra. No final do filme temos, dentro de um único quadro, a dimensão real e a irreal do mito: em primeiro plano a bandeira hasteada no alto do monte em Iwo Jima; no plano de fundo, muito, muito distante, vê-se pequenos pontinhos que são os mesmos soldados que hastearam aquela bandeira nadando e brincando como garotos na praia. Então, a câmera sobe e descobre, em alto-mar, a frota da marinha norte-americana, todo o poder da guerra. Grande!
terça-feira, março 13, 2007
Os Infiltrados
Frank Costello (Jack Nicholson) é um personagem construído para entrar no rol das grandes figuras – de criminosos – do cinema. A sua apresentação é em grande estilo: vemo-lo discursar em off como se numa entrevista, enquanto se ocupa de coisas “cotidianas” como extorquir um pequeno comerciante, sem nunca vermos claramente o seu rosto – envolto em sombras. Isso já dá um ar mítico para o personagem, mas ao mesmo tempo vago, desimportante. Planos de rostos cortados por sombras fazem lembrar Cidadão Kane (Orson Welles, 1941). O próprio Martin Scorsese confessou que, ao realizar Os Infiltrados, procurou inspirar-se em filmes noir antigos, particularmente os de gângsters. O sombreamento da face é algo interessante porque, ao mesmo tempo que engrandece o personagem, o faz diminuir, como se fosse uma vergonha. É a ambigüidade do ato de esconder: esconde-se tanto o que é de alto e raro valor, e por isso deve ser preservado longe da perscrutação demolidora do olhar alheio, quanto o que é de baixo valor, o constrangido e constrangedor; esconder um rosto também é tirar a individualidade do ser, como se reduzindo-o a mera função social.
E aqui é onde a coisa se torna significativa e tensa, pois a frase que inicia o filme, dita por Frank Costello, é: “I don’t wanna be a product of my environment, but my environment to be a product of me”. Essa é uma das angústias que mais atormentam o homem moderno e pós-moderno: os limites dos determinismos sociais. Em que medida somos, e podemos nos fazer, autênticos? Em que medida podemos exercer um papel consciente e importante na comunidade em que vivemos? Acredito que a idéia mais em voga entre os intelectuais é a negativa: somos irremediavelmente determinados pelo meio social; as conquistas e liberdades que podemos ter são ou ilusórias ou mínimas. Entretanto, os personagens dos filmes de Martin Scorsese lutam com todas as suas forças – mesmo já combalidas – para conquistar a sua liberdade e afirmar a sua identidade pessoal e diferenciada. Eis o drama que procura tomar espaço nas tragédias que são as histórias de Scorsese. Tragédias, pois afinal o personagem não conseguirá, ou conseguirá de maneira ilusória e mínima, ou ainda às muitas e terríveis expensas, conquistar a sua individualidade. Em Os Infiltrados, os clamores do policial undercover William Costigan (Leonardo diCaprio) para que lhe seja devolvida a sua identidade revelam o fundo e também o patético do drama individual no palco da tragédia social.
Também é significativa na composição desse quadro a alegria com que o investigador Ellerby (Alec Baldwin) elogia o Patrioct Act, sem o qual seus trabalhos poderiam ser largamente ineficientes.
A primeira vez em que vemos, à luz e de frente, o rosto de Frank Costello, é quando ele pergunta ao seu pupilo (o jovem Collin Sullivan, na fase adulta vivido por Matt Damon) se ele quer ser um policial ou um criminoso. O próprio Frank imediatamente já responde – com o rosto colocando-se de frente na luz: “when you’re facing a loaded gun, there is no diference”. Essa fala revela e explica muito do comportamento dos dois personagens infiltrados (Collin Sullivan na polícia e William Costigan no crime), ao longo do filme. Quando se tem uma arma apontada para si – que é uma das experiências-limite na vida do sujeito em sociedade – todas as funções sociais perdem o sentido; só interessa, nesse caso, a sobrevivência e a afirmação do indivíduo em si, colocado então em xeque. Eis porque se ilumina o rosto de Frank Costello.
N’Os Infiltrados, mocinhos e bandidos, polícia e crime, bem e mal não se equivalem; apenas se dissolvem quando despejados na panela onde ferve a sopa do indivíduo.
“The Departed”: os mortos, os enviados, os abandonados, os relegados, os entregues, etc. Os personagens procuram libertar-se de quaisquer determinantes que se lhes impõem como limites ao vôo do indivíduo. Costello, o gângster-mor, quer sempre mais de si mesmo, quer ser um produtor em seu meio; Sullivan, infiltrado de Costello na polícia, cogita o como seria a sua vida se pudesse fazer faculdade de direito à noite enquanto trabalha na polícia de dia; Costigan, expulso da academia de polícia, mas escolhido para o trabalho sujo de infiltrar-se na gangue de Costello, quer romper o histórico de fracasso e preconceito de que sua família é alvo. O resultado e o patético de tudo isso já é dado no título do filme. O banho de sangue no final é quase cômico, farsesco, mas também aí está o patético de uma tragédia que se quer viver como drama.
Exceto por uma coisa: o personagem policial de Mark Wahlberg (Dignam) é o único no controle total de suas ações e intenções; é o único indivíduo que é o que quer e faz o que quer. Sua participação é demais! Será que há esperança? Talvez os outros, se por um lado buscam a auto-afirmação, por outro não deitam abaixo as máscaras sociais; querem ser produtores de seu meio, mas não têm coragem de deixar totalmente de serem produto: Costello renega o conselho de Costigan para abandonar o crime e se aposentar; o próprio Costigan não se demite do seu “trabalho”; Sullivan não consegue dizer não a Costello. Dignam é o único que age à sua própria maneira, sem se preocupar com as reações de outras pessoas nem com as relações. É o único que sai vitorioso.
E aqui é onde a coisa se torna significativa e tensa, pois a frase que inicia o filme, dita por Frank Costello, é: “I don’t wanna be a product of my environment, but my environment to be a product of me”. Essa é uma das angústias que mais atormentam o homem moderno e pós-moderno: os limites dos determinismos sociais. Em que medida somos, e podemos nos fazer, autênticos? Em que medida podemos exercer um papel consciente e importante na comunidade em que vivemos? Acredito que a idéia mais em voga entre os intelectuais é a negativa: somos irremediavelmente determinados pelo meio social; as conquistas e liberdades que podemos ter são ou ilusórias ou mínimas. Entretanto, os personagens dos filmes de Martin Scorsese lutam com todas as suas forças – mesmo já combalidas – para conquistar a sua liberdade e afirmar a sua identidade pessoal e diferenciada. Eis o drama que procura tomar espaço nas tragédias que são as histórias de Scorsese. Tragédias, pois afinal o personagem não conseguirá, ou conseguirá de maneira ilusória e mínima, ou ainda às muitas e terríveis expensas, conquistar a sua individualidade. Em Os Infiltrados, os clamores do policial undercover William Costigan (Leonardo diCaprio) para que lhe seja devolvida a sua identidade revelam o fundo e também o patético do drama individual no palco da tragédia social.
Também é significativa na composição desse quadro a alegria com que o investigador Ellerby (Alec Baldwin) elogia o Patrioct Act, sem o qual seus trabalhos poderiam ser largamente ineficientes.
A primeira vez em que vemos, à luz e de frente, o rosto de Frank Costello, é quando ele pergunta ao seu pupilo (o jovem Collin Sullivan, na fase adulta vivido por Matt Damon) se ele quer ser um policial ou um criminoso. O próprio Frank imediatamente já responde – com o rosto colocando-se de frente na luz: “when you’re facing a loaded gun, there is no diference”. Essa fala revela e explica muito do comportamento dos dois personagens infiltrados (Collin Sullivan na polícia e William Costigan no crime), ao longo do filme. Quando se tem uma arma apontada para si – que é uma das experiências-limite na vida do sujeito em sociedade – todas as funções sociais perdem o sentido; só interessa, nesse caso, a sobrevivência e a afirmação do indivíduo em si, colocado então em xeque. Eis porque se ilumina o rosto de Frank Costello.
N’Os Infiltrados, mocinhos e bandidos, polícia e crime, bem e mal não se equivalem; apenas se dissolvem quando despejados na panela onde ferve a sopa do indivíduo.
“The Departed”: os mortos, os enviados, os abandonados, os relegados, os entregues, etc. Os personagens procuram libertar-se de quaisquer determinantes que se lhes impõem como limites ao vôo do indivíduo. Costello, o gângster-mor, quer sempre mais de si mesmo, quer ser um produtor em seu meio; Sullivan, infiltrado de Costello na polícia, cogita o como seria a sua vida se pudesse fazer faculdade de direito à noite enquanto trabalha na polícia de dia; Costigan, expulso da academia de polícia, mas escolhido para o trabalho sujo de infiltrar-se na gangue de Costello, quer romper o histórico de fracasso e preconceito de que sua família é alvo. O resultado e o patético de tudo isso já é dado no título do filme. O banho de sangue no final é quase cômico, farsesco, mas também aí está o patético de uma tragédia que se quer viver como drama.
Exceto por uma coisa: o personagem policial de Mark Wahlberg (Dignam) é o único no controle total de suas ações e intenções; é o único indivíduo que é o que quer e faz o que quer. Sua participação é demais! Será que há esperança? Talvez os outros, se por um lado buscam a auto-afirmação, por outro não deitam abaixo as máscaras sociais; querem ser produtores de seu meio, mas não têm coragem de deixar totalmente de serem produto: Costello renega o conselho de Costigan para abandonar o crime e se aposentar; o próprio Costigan não se demite do seu “trabalho”; Sullivan não consegue dizer não a Costello. Dignam é o único que age à sua própria maneira, sem se preocupar com as reações de outras pessoas nem com as relações. É o único que sai vitorioso.
Este mais recente filme de Scorsese é sobre “ratos”, que em inglês são gíria para espiões infiltrados. Ratos também são a imagem da covardia, da vergonha. Ratos são um dos mais fortes e terríveis produtos de um meio social que pode ser julgado justamente por ter ratos como um de seus principais “produtos”. Contudo, ratos acabam sendo também produtores: produzem (ainda mais) sujeira, nojo, doenças, enfim, decadência. Ratos têm consciência dessas coisas? Certamente não. E se tivessem? Eis a estimulante premissa de Os Infiltrados.
quinta-feira, março 08, 2007
Elogio de Georges Méliès
Parafraseando Edgar Morin: se Lumière é pai do cinematógrafo, Méliès é pai do cinema. Sentimos em Méliès a força e a graça do pioneiro, do desbravador. Vendo os seus filmes, ficamos a imaginar como eram os sets de filmagem: o entusiasmo e a ansiedade pairando no ar, frente a um mundo totalmente novo, que estava sendo criado ali mesmo.
Méliès foi o inventor do cinema, pois foi ele o primeiro a enxergar e trabalhar exclusivamente em função do poder mágico das imagens em movimento. O cinematógrafo já não era um mero instrumento de captação do real. O cinema veio então para transformar o real, misturando-o ao supra-real criado pelo cineasta com a ajuda dessa máquina cujo poder científico-tecnológico constitui algo tão fascinante, possui decorrências tão assombrosas que não é à toa que os “astrônomos” mostrados em Viagem à Lua (1902) sejam caracterizados com as vestes e chapéus de magos...
Não é difícil imaginar o quanto o cinema, em seu nascedouro, era visto no tênue limite entre o científico e o mágico, assim como o céu estrelado. Ambos são o desconhecido ao qual temerariamente arrebatamos. Georges Méliès soube trabalhar genialmente tal situação. Suas ficções (dentre as primeiras da arte cinematográfica) não são científicas; elas atualizam o olhar fantástico que inicialmente se tem a respeito das novidades e das descobertas da ciência e da tecnologia. A modernidade não poderia prescindir de uma inteligência ingênua – ou de uma ingenuidade inteligente – como a do realizador de Viagem ao Impossível (1905).
A fascinação que transcorre nesses dois principais filmes não orbita as esferas da ciência, mas do humano sobretudo: são autênticas epopéias que dão formas exatas e detalhadas ao nosso espírito demiúrgico, à nossa vocação pela transcendência. As aventuras das viagens à “lua” e ao “impossível” ainda hoje nos comovem e (aposto) sempre comoverão – isso prova sua profundidade universal. O que pode parecer hoje “ridículo” e “primário” quanto à decupagem, ao roteiro e à atuação não fala mais alto do que o sonho que ali se quer representar, com o qual todos nos identificamos. E mesmo em termos de “decupagem”, sentimos claramente que o gênio e a vontade de Méliès fizeram de tudo para que o máximo de efeito fosse alcançado em tal sonho.
De quantos cineastas contemporâneos podemos dizer o mesmo? – Mas estou sendo muito chato, é claro que o gênio é sempre coisa rara... De qualquer maneira, imagine o que teria feito Georges Méliès se tivesse em mãos todos os recursos das mais caras produções audiovisuais de hoje em dia?...
Stanley Kubrick, em 2001, Uma Odisséia no Espaço, é o que mais talvez se aproxime da foto-audio-genia, da experiência de vida única e completa, presente e providenciada pelos filmes do mago francês. Por mais banal que se torne, o cinema deve sempre, sempre buscar novas formas e maneiras de manter a fascinação ingênua perante as imagens (e sons) em movimento. Isso não implica necessariamente em constante reinvenção técnica ou tecnológica; o mais importante é que a imaginação (que pode se expressar na forma ou no conteúdo) mantenha a sua caminhada rumo a esferas cada vez mais superiores. A imaginação deve, incondicionalmente, pautar a criação e a realização de filmes. Caso contrário, o cinema estará com os seus dias contados, não importam os recursos materiais que tenha à sua disposição.
As grandes obras são plenas de espírito, que não se manifesta necessariamente em subjetividade – lembrem-se os conceitos de “antropomorfismo” e de “cosmomorfismo”, explicados por Morin. Filmes como O Senhor dos Anéis podem ser colocados no rol das grandes obras, mas o mesmo não pode ser feito com Eragon. A lição de Méliès ainda está para ser muito melhor aprendida pela indústria do cinema “de ilusão”.
A paixão pelo cinema leva muitas vezes a priorizar o lado formal, estético. Mas a experiência de ver um filme fraco ou enganado de conteúdo, de imaginação, é muito pior do que a experiência de ver um filme tecnicamente “mal feito”. Além disso, se a imaginação for fraca, a própria realização “técnica” não terá muito a oferecer.
Por isso Georges Méliès é genial. A precariedade dos seus meios materiais (em comparação com o que temos hoje) não o impediram de realizar grandes obras. O espírito está presente tanto nas histórias, nos temas tratados, quanto nos cenários, nos “efeitos especiais” que ajudaram a definir a nascente linguagem cinematográfica – especialmente as fusões e os encadeados. E um ponto importante: não interessa se os propósitos do francês eram os de um artista “independente”, intelectual, ou de um filósofo; ou ainda se Méliès era apenas um prestidigitador interessado apenas em manter e aumentar sua platéia pagante. O que interessa é o que está lá, os seus filmes o efeito que eles exercem em nós e no mundo.
Méliès foi o inventor do cinema, pois foi ele o primeiro a enxergar e trabalhar exclusivamente em função do poder mágico das imagens em movimento. O cinematógrafo já não era um mero instrumento de captação do real. O cinema veio então para transformar o real, misturando-o ao supra-real criado pelo cineasta com a ajuda dessa máquina cujo poder científico-tecnológico constitui algo tão fascinante, possui decorrências tão assombrosas que não é à toa que os “astrônomos” mostrados em Viagem à Lua (1902) sejam caracterizados com as vestes e chapéus de magos...
Não é difícil imaginar o quanto o cinema, em seu nascedouro, era visto no tênue limite entre o científico e o mágico, assim como o céu estrelado. Ambos são o desconhecido ao qual temerariamente arrebatamos. Georges Méliès soube trabalhar genialmente tal situação. Suas ficções (dentre as primeiras da arte cinematográfica) não são científicas; elas atualizam o olhar fantástico que inicialmente se tem a respeito das novidades e das descobertas da ciência e da tecnologia. A modernidade não poderia prescindir de uma inteligência ingênua – ou de uma ingenuidade inteligente – como a do realizador de Viagem ao Impossível (1905).
A fascinação que transcorre nesses dois principais filmes não orbita as esferas da ciência, mas do humano sobretudo: são autênticas epopéias que dão formas exatas e detalhadas ao nosso espírito demiúrgico, à nossa vocação pela transcendência. As aventuras das viagens à “lua” e ao “impossível” ainda hoje nos comovem e (aposto) sempre comoverão – isso prova sua profundidade universal. O que pode parecer hoje “ridículo” e “primário” quanto à decupagem, ao roteiro e à atuação não fala mais alto do que o sonho que ali se quer representar, com o qual todos nos identificamos. E mesmo em termos de “decupagem”, sentimos claramente que o gênio e a vontade de Méliès fizeram de tudo para que o máximo de efeito fosse alcançado em tal sonho.
De quantos cineastas contemporâneos podemos dizer o mesmo? – Mas estou sendo muito chato, é claro que o gênio é sempre coisa rara... De qualquer maneira, imagine o que teria feito Georges Méliès se tivesse em mãos todos os recursos das mais caras produções audiovisuais de hoje em dia?...
Stanley Kubrick, em 2001, Uma Odisséia no Espaço, é o que mais talvez se aproxime da foto-audio-genia, da experiência de vida única e completa, presente e providenciada pelos filmes do mago francês. Por mais banal que se torne, o cinema deve sempre, sempre buscar novas formas e maneiras de manter a fascinação ingênua perante as imagens (e sons) em movimento. Isso não implica necessariamente em constante reinvenção técnica ou tecnológica; o mais importante é que a imaginação (que pode se expressar na forma ou no conteúdo) mantenha a sua caminhada rumo a esferas cada vez mais superiores. A imaginação deve, incondicionalmente, pautar a criação e a realização de filmes. Caso contrário, o cinema estará com os seus dias contados, não importam os recursos materiais que tenha à sua disposição.
As grandes obras são plenas de espírito, que não se manifesta necessariamente em subjetividade – lembrem-se os conceitos de “antropomorfismo” e de “cosmomorfismo”, explicados por Morin. Filmes como O Senhor dos Anéis podem ser colocados no rol das grandes obras, mas o mesmo não pode ser feito com Eragon. A lição de Méliès ainda está para ser muito melhor aprendida pela indústria do cinema “de ilusão”.
A paixão pelo cinema leva muitas vezes a priorizar o lado formal, estético. Mas a experiência de ver um filme fraco ou enganado de conteúdo, de imaginação, é muito pior do que a experiência de ver um filme tecnicamente “mal feito”. Além disso, se a imaginação for fraca, a própria realização “técnica” não terá muito a oferecer.
Por isso Georges Méliès é genial. A precariedade dos seus meios materiais (em comparação com o que temos hoje) não o impediram de realizar grandes obras. O espírito está presente tanto nas histórias, nos temas tratados, quanto nos cenários, nos “efeitos especiais” que ajudaram a definir a nascente linguagem cinematográfica – especialmente as fusões e os encadeados. E um ponto importante: não interessa se os propósitos do francês eram os de um artista “independente”, intelectual, ou de um filósofo; ou ainda se Méliès era apenas um prestidigitador interessado apenas em manter e aumentar sua platéia pagante. O que interessa é o que está lá, os seus filmes o efeito que eles exercem em nós e no mundo.
terça-feira, março 06, 2007
Eraserhead
Em Sigmund Freud encontramos o conceito denominado unheimlish, de difícil tradução: no alemão, o termo é ambíguo, podendo significar tanto algo que é familiar quanto algo não-familiar, estranho. Particularmente, entendo o "unheimlish" como o processo de estranhamento que temos, de vez em quando, com relação a certas coisas familiares. Esse estranhamento pode crescer em desconforto até transformar-se em verdadeiro pânico.
A literatura fantástica e de terror freqüentemente trabalha o "unheimlish", desde o conto “O homem de areia” (Der Sandman), do romântico alemão E.T.A. Hoffmann – analisado por Freud no artigo “O Estranho”, em que o pai da psicanálise tenta desvendar as estruturas do terror e do fantástico. Para ele, o terror não é provocado por algo inteiramente fora do comum, desconhecido, sobrenatural, estranho; mas sim por alguma coisa estranha e inexplicavelmente familiar (a explicação talvez só se encontre no inconsciente). A nossa impotência diante de tal coisa é o que despertaria a sensação de medo e horror.
Mas não é apenas o gênero do terror, com seus monstros, fantasmas e ameaças diversas, que desperta o “unheimlish”. Este aparece de modo mais interessante naquilo que é simplesmente fantástico, surreal. O cinema, com suas imagens “reais” em movimento, é um veículo especialmente poderoso para provocar os processos de estranhamento. Filmes surrealistas e experimentais me assustam mais do que filmes de monstros e de fantasmas. E David Lynch é, há trinta anos, o melhor nome do kino unheimlish.
Repito: um filme como Cidade dos Sonhos (“Mulholland Drive”, 2002) provoca em mim muito mais pesadelos do que qualquer película de M. Night Shyamalan. Lynch parece seguir à risca a cartilha freudiana do “unheimlish”: as misturas ambíguas que há, em seus filmes, entre o familiar e o estranho, especialmente em relação à identidade individual (uma mesma mulher que é uma e duas ao mesmo tempo, loira e morena – como vemos em “Cidade dos Sonhos” e também em A Estrada Perdida, “Lost Highway”, 1996), mas também o estranho a partir da familiaridade do universo do subúrbio burguês, tal como aparece em Veludo Azul (“Blue Velvet”, 1987). David Lynch também sabe transformar elementos da cultura dos anos 50, particularmente as músicas românticas, em algo estranho e arrepiante.
Boa parte dos elementos do cinema de Lynch já estão presentes em seu primeiro longa, Eraserhead (sem tradução, pois o filme nunca foi lançado no Brasil, mas o título poderia ser livremente traduzido como “o cabeça de borracha apagadora”). Esse filme é bizarro... O que é aquele bebê? O que é aquele palco onde canta aquela loira “bochechuda”? Quem é ela? Quem é Henry, afinal? O que diz a história? São perguntas que se fazem a muitos filmes de Lynch, mas não deve ser feito disso uma gincana – como quis o marketing de “Cidade dos Sonhos”. Fitas como “Eraserhead” não devem ser vistas com os olhos da razão apegada ao real e ao verossímil, visão que costumeiramente temos a respeito de filmes e que nos foi ensinada pela literatura realista do século XIX e seus romances “de tese”. O cinema de David Lynch é como os sonhos: devemos apenas curtir a “viagem”...
De qualquer maneira, o “unheimlish” é muitas vezes evidente: é familiar para nós uma planta em cima de um criado-mudo; mas é estranho essa planta ser apenas galhos secos e retorcidos e estar – em cima do criado-mudo – em um punhado de terra sem vaso. Eis apenas um dos elementos que compõem o cenário do quarto de Henry, o “eraserhead”.
Estarei entregando a minha idade, mas mesmo assim aqui vai: “Eraserhead” me assusta tanto quanto me aterrorizavam as aberturas do Fantástico nos anos 80. Freud explica. Poltergeist (EUA, 1982, dir.: Tobe Hooper) nunca fez nada em mim – se bem que aquele palhaço e aquela árvore... mas é aí que entra o “unheimlish”.
Enfim, Freud explica.
A literatura fantástica e de terror freqüentemente trabalha o "unheimlish", desde o conto “O homem de areia” (Der Sandman), do romântico alemão E.T.A. Hoffmann – analisado por Freud no artigo “O Estranho”, em que o pai da psicanálise tenta desvendar as estruturas do terror e do fantástico. Para ele, o terror não é provocado por algo inteiramente fora do comum, desconhecido, sobrenatural, estranho; mas sim por alguma coisa estranha e inexplicavelmente familiar (a explicação talvez só se encontre no inconsciente). A nossa impotência diante de tal coisa é o que despertaria a sensação de medo e horror.
Mas não é apenas o gênero do terror, com seus monstros, fantasmas e ameaças diversas, que desperta o “unheimlish”. Este aparece de modo mais interessante naquilo que é simplesmente fantástico, surreal. O cinema, com suas imagens “reais” em movimento, é um veículo especialmente poderoso para provocar os processos de estranhamento. Filmes surrealistas e experimentais me assustam mais do que filmes de monstros e de fantasmas. E David Lynch é, há trinta anos, o melhor nome do kino unheimlish.
Repito: um filme como Cidade dos Sonhos (“Mulholland Drive”, 2002) provoca em mim muito mais pesadelos do que qualquer película de M. Night Shyamalan. Lynch parece seguir à risca a cartilha freudiana do “unheimlish”: as misturas ambíguas que há, em seus filmes, entre o familiar e o estranho, especialmente em relação à identidade individual (uma mesma mulher que é uma e duas ao mesmo tempo, loira e morena – como vemos em “Cidade dos Sonhos” e também em A Estrada Perdida, “Lost Highway”, 1996), mas também o estranho a partir da familiaridade do universo do subúrbio burguês, tal como aparece em Veludo Azul (“Blue Velvet”, 1987). David Lynch também sabe transformar elementos da cultura dos anos 50, particularmente as músicas românticas, em algo estranho e arrepiante.
Boa parte dos elementos do cinema de Lynch já estão presentes em seu primeiro longa, Eraserhead (sem tradução, pois o filme nunca foi lançado no Brasil, mas o título poderia ser livremente traduzido como “o cabeça de borracha apagadora”). Esse filme é bizarro... O que é aquele bebê? O que é aquele palco onde canta aquela loira “bochechuda”? Quem é ela? Quem é Henry, afinal? O que diz a história? São perguntas que se fazem a muitos filmes de Lynch, mas não deve ser feito disso uma gincana – como quis o marketing de “Cidade dos Sonhos”. Fitas como “Eraserhead” não devem ser vistas com os olhos da razão apegada ao real e ao verossímil, visão que costumeiramente temos a respeito de filmes e que nos foi ensinada pela literatura realista do século XIX e seus romances “de tese”. O cinema de David Lynch é como os sonhos: devemos apenas curtir a “viagem”...
De qualquer maneira, o “unheimlish” é muitas vezes evidente: é familiar para nós uma planta em cima de um criado-mudo; mas é estranho essa planta ser apenas galhos secos e retorcidos e estar – em cima do criado-mudo – em um punhado de terra sem vaso. Eis apenas um dos elementos que compõem o cenário do quarto de Henry, o “eraserhead”.
Estarei entregando a minha idade, mas mesmo assim aqui vai: “Eraserhead” me assusta tanto quanto me aterrorizavam as aberturas do Fantástico nos anos 80. Freud explica. Poltergeist (EUA, 1982, dir.: Tobe Hooper) nunca fez nada em mim – se bem que aquele palhaço e aquela árvore... mas é aí que entra o “unheimlish”.
Enfim, Freud explica.
sábado, março 03, 2007
Pequena Miss Sunshine
Uma elegia à vida. Pois a vida é maior do qualquer um dos complicados esquemas dentro dos quais nós constantemente ficamos tentando aprisioná-la, condicioná-la. Podemos chamar esses esquemas de sonhos, planos de vida, conquistas, vitórias, mas não podemos nos deixar dominar por sua mesquinharia. Contudo, sejamos sensatos: não se trata aqui de abandonar o que nos move e comove; apenas lidar com os planejamentos e expectativas de uma maneira desapegada, aproveitando ao máximo o que eles tem de melhor a oferecer, mas não condicionar – de modo algum – nosso ser ou o conjunto das nossas experiências à algum determinado objetivo que atinjamos ou não (principalmente se o não atingirmos).
Viver a vida de maneira alegre e “desencanada”: essa é a lição do velho “Grandpa”. Obrigado, vovô! Foi bem dado o Oscar a Alan Arkin por esse personagem. Dentro de uma família tipicamente disfuncional, o vovô “chapado” é uma presença curiosa e estimulante. É uma daquelas personagens cujo brilho é fazer as outras brilharem. Pelo que se entende, o vovô é uma daquelas pessoas que só descobrem o que é a vida de verdade, e o que dá graça a ela, tarde demais; ainda assim, it ain’t over till its over. Desse modo, temos um vovô tarado, usuário de heroína (a velhice, para ele, é o momento certo para se usar essa droga), e sobretudo alegre, daquela alegria simples e pouco exigente das crianças. Não é à toa que o vovô e a pequena Olive são as figuras que mantêm a família unida no que ela tem de bom, e ainda ajudam cada um de seus membros a despertarem- se, conhecerem-se melhor em seu interior e, assim, a viverem melhor – consigo mesmos e com os outros.
Pequena Miss Sunshine (“Little Miss Sunshine”, EUA, 2006, dir.: Jonathan Dayton e Valerie Faris) consegue a façanha de trazer personagens com todas as características do tipo, mas, ainda assim, dotados de uma especificidade e densidade humanas trabalhadas muito bem pelo filme, em paralelo com o lado típico. Não é um daqueles filmes indie com pessoas esquisitas e sorumbáticas; mas também não é daqueles filmes de tese, onde as pessoas são apenas cascas a serem preenchidas com idéias e ideologias. Esses dois tipos de filmes costumam ser bem recebidos nos meios cinéfilos mais alternativos e cultos. Entretenato, “Pequena Miss Sunshine” é um filme profundamente humano, a um tempo cômico e dramático. Tudo nele é bem mesurado e encaixado com graça e sutileza.
A galeria de personagens é fantástica: o pai, Richard (Greg Kinnear) é um guru da auto-ajuda que não consegue ajudar a si próprio, não faz sucesso nem ganha dinheiro com a sua fórmula mágica do sucesso. A ingenuidade com que ele repete para todo mundo (especialmente para a sua filha, a pequena Olive), convictamente, aqueles lugares-comuns da auto-ajuda para profissionais e esportistas fazem dele a figura mais patética do filme. A cena, logo no início, em que vemos Richard palestrar com paixão e ímpeto e, no plano seguinte, vemos que a sua “platéia” é composta apenas de uma meia dúzia de “gatos pingados”, é de uma força e graça cinematográficas exemplares. Bonito é o momento em que, finalmente, Richard usará de suas baboseiras para tomar uma atitude realmente positiva e eficiente para si e para todos os outros. A mãe, Sheryl (Toni Collette), é a mãe típica, a “Marge Simpson” não muito esclarecida mas profundamente preocupada com a sua família. O filho mais velho, Dwayne (Paul Dano), é o adolescente revoltado, justamente a figura “indie” esquisita e sorumbática, leitor assíduo de Nietzche que sonha em entrar para a Academia da Força Aérea. A filha mais nova, Olive (Abigail Breslin), sonha em ser “Miss” e batalha, desde já, em concursos de beleza infantis. O tio – irmão de Sheryl – Frank (Steve Carrell), é o segundo maior especialista em Marcel Proust nos EUA; as razões de ele não ser o número um ajudam a compor a sua tragédia, que tinha acabado de levá-lo a uma tentativa de suicídio. É o novo membro, que entra na família para ser cuidado pela irmã. E, a figura mais interessante, “figuraça” até, fica a cargo do “grandpa” (Alan Arkin) – pai de Richard, do qual já falamos.
Pois é tal família que entrará numa Kombi amarela com defeitos de embreagem e buzina para levar a pequena Olive ao concurso de beleza “Pequena Miss Sunshine”. Com esses personagens, já vá imaginando como será a viagem. E acredite: o filme não decepcionará qualquer imaginação.
A fotografia é muito bonita e significativa, especialmente na cena em profundidade de campo, quando a família tenta resgatar Dwayne – literalmente – do fundo da ribanceira. A ação da pequena Olive nesta cena, filmada de tal maneira, constitui um momento de grandiosidade cinematográfica como fazia tempo que eu não via. As gags são muito bem captadas e montadas, como na cena da palestra no início, que já comentamos, e também a cena em que a buzina da Kombi dispara continuamente por conta própria – num som ao mesmo tempo chinfrim e altamente irritante – o que chama a atenção de um policial que, naquele momento, não seria bom que revistasse o veículo...
A moral do filme pode parecer óbvia e banal, mas é daquelas que continuamente nos esquecemos. Além do mais, o roteiro e a decupagem desculpariam qualquer ingenuidade de conteúdo. Mas o final não é nem um pouco ingênuo. Temos aqui uma crítica bem astuta. Não gosto de “spoilers”, por isso apenas colocarei a seguinte questão: os concursos de beleza infantis para meninas exploram descaradamente a sexualidade precoce: as meninas ali, de 6 ou 7 anos, em trajes sumários, com maquiagem pesada e atitudes “provocantes” parecem pequenas bonecas representando a futura mulher-objeto. É perturbador, elas não parecem seres humanos de verdade. Sendo assim, como pode ser mal visto o fato de uma delas realmente assumir esse fato e jogar pra valer o “jogo”, fazendo a sua apresentação sob a forma de strip-tease? É claro que esse “strip-tease” não passará do maiôzinho que ela veste, mas o fato de alguém assumir corajosamente a máscara e entregar-se de fato às funções exigidas por tal máscara revela muito a nossa hipocrisia, quando imediatamente desqualificamos com nojo um “exagero” desses.
Por isso, agradeçamos mais uma vez: Obrigado, vovô!
Viver a vida de maneira alegre e “desencanada”: essa é a lição do velho “Grandpa”. Obrigado, vovô! Foi bem dado o Oscar a Alan Arkin por esse personagem. Dentro de uma família tipicamente disfuncional, o vovô “chapado” é uma presença curiosa e estimulante. É uma daquelas personagens cujo brilho é fazer as outras brilharem. Pelo que se entende, o vovô é uma daquelas pessoas que só descobrem o que é a vida de verdade, e o que dá graça a ela, tarde demais; ainda assim, it ain’t over till its over. Desse modo, temos um vovô tarado, usuário de heroína (a velhice, para ele, é o momento certo para se usar essa droga), e sobretudo alegre, daquela alegria simples e pouco exigente das crianças. Não é à toa que o vovô e a pequena Olive são as figuras que mantêm a família unida no que ela tem de bom, e ainda ajudam cada um de seus membros a despertarem- se, conhecerem-se melhor em seu interior e, assim, a viverem melhor – consigo mesmos e com os outros.
Pequena Miss Sunshine (“Little Miss Sunshine”, EUA, 2006, dir.: Jonathan Dayton e Valerie Faris) consegue a façanha de trazer personagens com todas as características do tipo, mas, ainda assim, dotados de uma especificidade e densidade humanas trabalhadas muito bem pelo filme, em paralelo com o lado típico. Não é um daqueles filmes indie com pessoas esquisitas e sorumbáticas; mas também não é daqueles filmes de tese, onde as pessoas são apenas cascas a serem preenchidas com idéias e ideologias. Esses dois tipos de filmes costumam ser bem recebidos nos meios cinéfilos mais alternativos e cultos. Entretenato, “Pequena Miss Sunshine” é um filme profundamente humano, a um tempo cômico e dramático. Tudo nele é bem mesurado e encaixado com graça e sutileza.
A galeria de personagens é fantástica: o pai, Richard (Greg Kinnear) é um guru da auto-ajuda que não consegue ajudar a si próprio, não faz sucesso nem ganha dinheiro com a sua fórmula mágica do sucesso. A ingenuidade com que ele repete para todo mundo (especialmente para a sua filha, a pequena Olive), convictamente, aqueles lugares-comuns da auto-ajuda para profissionais e esportistas fazem dele a figura mais patética do filme. A cena, logo no início, em que vemos Richard palestrar com paixão e ímpeto e, no plano seguinte, vemos que a sua “platéia” é composta apenas de uma meia dúzia de “gatos pingados”, é de uma força e graça cinematográficas exemplares. Bonito é o momento em que, finalmente, Richard usará de suas baboseiras para tomar uma atitude realmente positiva e eficiente para si e para todos os outros. A mãe, Sheryl (Toni Collette), é a mãe típica, a “Marge Simpson” não muito esclarecida mas profundamente preocupada com a sua família. O filho mais velho, Dwayne (Paul Dano), é o adolescente revoltado, justamente a figura “indie” esquisita e sorumbática, leitor assíduo de Nietzche que sonha em entrar para a Academia da Força Aérea. A filha mais nova, Olive (Abigail Breslin), sonha em ser “Miss” e batalha, desde já, em concursos de beleza infantis. O tio – irmão de Sheryl – Frank (Steve Carrell), é o segundo maior especialista em Marcel Proust nos EUA; as razões de ele não ser o número um ajudam a compor a sua tragédia, que tinha acabado de levá-lo a uma tentativa de suicídio. É o novo membro, que entra na família para ser cuidado pela irmã. E, a figura mais interessante, “figuraça” até, fica a cargo do “grandpa” (Alan Arkin) – pai de Richard, do qual já falamos.
Pois é tal família que entrará numa Kombi amarela com defeitos de embreagem e buzina para levar a pequena Olive ao concurso de beleza “Pequena Miss Sunshine”. Com esses personagens, já vá imaginando como será a viagem. E acredite: o filme não decepcionará qualquer imaginação.
A fotografia é muito bonita e significativa, especialmente na cena em profundidade de campo, quando a família tenta resgatar Dwayne – literalmente – do fundo da ribanceira. A ação da pequena Olive nesta cena, filmada de tal maneira, constitui um momento de grandiosidade cinematográfica como fazia tempo que eu não via. As gags são muito bem captadas e montadas, como na cena da palestra no início, que já comentamos, e também a cena em que a buzina da Kombi dispara continuamente por conta própria – num som ao mesmo tempo chinfrim e altamente irritante – o que chama a atenção de um policial que, naquele momento, não seria bom que revistasse o veículo...
A moral do filme pode parecer óbvia e banal, mas é daquelas que continuamente nos esquecemos. Além do mais, o roteiro e a decupagem desculpariam qualquer ingenuidade de conteúdo. Mas o final não é nem um pouco ingênuo. Temos aqui uma crítica bem astuta. Não gosto de “spoilers”, por isso apenas colocarei a seguinte questão: os concursos de beleza infantis para meninas exploram descaradamente a sexualidade precoce: as meninas ali, de 6 ou 7 anos, em trajes sumários, com maquiagem pesada e atitudes “provocantes” parecem pequenas bonecas representando a futura mulher-objeto. É perturbador, elas não parecem seres humanos de verdade. Sendo assim, como pode ser mal visto o fato de uma delas realmente assumir esse fato e jogar pra valer o “jogo”, fazendo a sua apresentação sob a forma de strip-tease? É claro que esse “strip-tease” não passará do maiôzinho que ela veste, mas o fato de alguém assumir corajosamente a máscara e entregar-se de fato às funções exigidas por tal máscara revela muito a nossa hipocrisia, quando imediatamente desqualificamos com nojo um “exagero” desses.
Por isso, agradeçamos mais uma vez: Obrigado, vovô!
quinta-feira, março 01, 2007
Borat
Para Louis Lumière, o cinematógrafo era uma invenção sem futuro. Então, apareceu o mago Georges Méliès e o resto é história. Mesmo assim, o cinema documental continuou e desenvolveu-se de modo exemplar, ao lado do cinema narrativo de ficção / ilusão.
O que acontece quando essas duas poderosas vertentes da sétima arte se encontram? Não estou falando de filmes como Roma Cidade Aberta (Itália, 1945, dir.: Roberto Rosselini), que podem inspirar-se numa estética documental, mas ninguém dirá que são ou parecem ser documentários. Refiro-me a obras raras tais quais Zelig (EUA, 1983, dir.: Woody Allen) e este Borat: O Segundo Melhor Repórter do Glorioso País Cazaquistão Viaja à América (“Borat: Cultural Learnings of America for Make Benefit Glorious Nation of Kazakhstan”, EUA, 2006, dir.: Larry Charles).
Por que esses filmes ficcionais se disfarçam completamente de documentários? A resposta poderia ser esta: porque tais filmes pretendem ser como piadas (“jokes”) – no caso particular da película protagonizada por Sacha Baron Cohen, uma piada prática, ou pegadinha (“practical joke”). Toda piada que se conta é melhor crível e risível se assumir ares de fato verídico; o bom contador de piadas também é um bom contador de “causos”. E como muitas e muitas piadas trazem à tona diferenças culturais, preconceitos, condições físicas e (ou) psicológicas dos indivíduos, nada mais natural que o filme “Borat” traga em si todos esses aspectos e temas tratados em nossas piadas cotidianas.
Mas ainda há outro lado que compõe essa moeda: a piada, às vezes, exerce a função de farsa, ou seja, gosta de desmascarar questões psicológicas e sociais que preferimos varrer para debaixo do tapete. O humor farsesco, contundentemente vulgar, escatológico até, está nas raízes das nossas manifestações culturais: na Idade Média, a farsa, assim como os autos (peças de devoção) eram as maiores expressões do teatro popular. O grande dramaturgo Gil Vicente, no início do século XVI português, dotou suas farsas de comentários e críticas sociais que fizeram-no universalizar-se e ser, até hoje, talvez o maior nome do teatro lusitano.
Nos dias de hoje, a farsa se faz presente sobremaneira em programas humorísticos de TV – particularmente em desenhos animados como Os Simpsons. No cinema, agora temos este “Borat”. Seu pseudo-documentário serve também para o melhor desmascaramento promovido pela farsa. Ao mesmo tempo, o fato de ser, no fundo, uma obra de ficção, humorística ainda por cima, torna-o inofensivo a quem ele poderia afetar. É apenas um filme, uma comédia, uma piada, ninguém levará a sério – é o que se poderia dizer. Mesmo assim, ainda há gente que reclama... Não quero aqui discutir o mérito ou os limites envolvidos nas “pegadinhas”; apenas tentar desvendar a sua lógica.
Nas farsas, pelo menos nas de Gil Vicente, o caráter crítico e moralizante é evidente. Mas evidente para quem? Como essas “críticas” serão recebidas? Serão elas sequer percebidas? Eu fico pensando naquele senhor do rodeio que disse, em “entrevista” a Borat (diz-se que as pessoas mostradas no filme não sabiam que se tratava de uma ficção), que na América lutava-se (o governo) para que se pudessem enforcar os homossexuais... Será que tal senhor, ao ver posteriormente o filme, vai reconhecer e refletir em sua própria atitude e pensamento, entendendo que o filme faz uma crítica a eles? Ou será que ele vai simplesmente recostar-se para trás, dar risada e dizer: “você me pegou de jeito, hein?”, esvaziando o sentido da coisa toda, já que é apenas uma piada... Talvez, o mais provável é que pessoas assim fiquem extremamente ofendidas com o filme e queiram processá-lo. Mas não seriam justamente a essas pessoas que se dirigiria a “moral” do filme? Assim, o filme acaba correndo o – inevitável – risco de ser apenas “pregação para convertidos”...
Em outras palavras, só enxerga o desmascaramento aqueles que querem desmascarar. Os desmascarados nunca enxergariam a própria máscara; se enxergam, jamais a admitiriam aos desmascaradores.
Enfim, “Borat” é passível da mesma ambigüidade, da mesma contradição que tantas outras farsas: o filme é sério e não-sério; mas acaba sendo levado a sério por razões em que não deveria ser levado a sério, e, por outro lado, não é levado a sério nos aspectos em que deveria ser levado a sério.
O que acontece quando essas duas poderosas vertentes da sétima arte se encontram? Não estou falando de filmes como Roma Cidade Aberta (Itália, 1945, dir.: Roberto Rosselini), que podem inspirar-se numa estética documental, mas ninguém dirá que são ou parecem ser documentários. Refiro-me a obras raras tais quais Zelig (EUA, 1983, dir.: Woody Allen) e este Borat: O Segundo Melhor Repórter do Glorioso País Cazaquistão Viaja à América (“Borat: Cultural Learnings of America for Make Benefit Glorious Nation of Kazakhstan”, EUA, 2006, dir.: Larry Charles).
Por que esses filmes ficcionais se disfarçam completamente de documentários? A resposta poderia ser esta: porque tais filmes pretendem ser como piadas (“jokes”) – no caso particular da película protagonizada por Sacha Baron Cohen, uma piada prática, ou pegadinha (“practical joke”). Toda piada que se conta é melhor crível e risível se assumir ares de fato verídico; o bom contador de piadas também é um bom contador de “causos”. E como muitas e muitas piadas trazem à tona diferenças culturais, preconceitos, condições físicas e (ou) psicológicas dos indivíduos, nada mais natural que o filme “Borat” traga em si todos esses aspectos e temas tratados em nossas piadas cotidianas.
Mas ainda há outro lado que compõe essa moeda: a piada, às vezes, exerce a função de farsa, ou seja, gosta de desmascarar questões psicológicas e sociais que preferimos varrer para debaixo do tapete. O humor farsesco, contundentemente vulgar, escatológico até, está nas raízes das nossas manifestações culturais: na Idade Média, a farsa, assim como os autos (peças de devoção) eram as maiores expressões do teatro popular. O grande dramaturgo Gil Vicente, no início do século XVI português, dotou suas farsas de comentários e críticas sociais que fizeram-no universalizar-se e ser, até hoje, talvez o maior nome do teatro lusitano.
Nos dias de hoje, a farsa se faz presente sobremaneira em programas humorísticos de TV – particularmente em desenhos animados como Os Simpsons. No cinema, agora temos este “Borat”. Seu pseudo-documentário serve também para o melhor desmascaramento promovido pela farsa. Ao mesmo tempo, o fato de ser, no fundo, uma obra de ficção, humorística ainda por cima, torna-o inofensivo a quem ele poderia afetar. É apenas um filme, uma comédia, uma piada, ninguém levará a sério – é o que se poderia dizer. Mesmo assim, ainda há gente que reclama... Não quero aqui discutir o mérito ou os limites envolvidos nas “pegadinhas”; apenas tentar desvendar a sua lógica.
Nas farsas, pelo menos nas de Gil Vicente, o caráter crítico e moralizante é evidente. Mas evidente para quem? Como essas “críticas” serão recebidas? Serão elas sequer percebidas? Eu fico pensando naquele senhor do rodeio que disse, em “entrevista” a Borat (diz-se que as pessoas mostradas no filme não sabiam que se tratava de uma ficção), que na América lutava-se (o governo) para que se pudessem enforcar os homossexuais... Será que tal senhor, ao ver posteriormente o filme, vai reconhecer e refletir em sua própria atitude e pensamento, entendendo que o filme faz uma crítica a eles? Ou será que ele vai simplesmente recostar-se para trás, dar risada e dizer: “você me pegou de jeito, hein?”, esvaziando o sentido da coisa toda, já que é apenas uma piada... Talvez, o mais provável é que pessoas assim fiquem extremamente ofendidas com o filme e queiram processá-lo. Mas não seriam justamente a essas pessoas que se dirigiria a “moral” do filme? Assim, o filme acaba correndo o – inevitável – risco de ser apenas “pregação para convertidos”...
Em outras palavras, só enxerga o desmascaramento aqueles que querem desmascarar. Os desmascarados nunca enxergariam a própria máscara; se enxergam, jamais a admitiriam aos desmascaradores.
Enfim, “Borat” é passível da mesma ambigüidade, da mesma contradição que tantas outras farsas: o filme é sério e não-sério; mas acaba sendo levado a sério por razões em que não deveria ser levado a sério, e, por outro lado, não é levado a sério nos aspectos em que deveria ser levado a sério.
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